Prisão na Inglaterra: parceria entre investidores e ONGs para minimizar a reincidência criminal (Ian Waldie/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 8 de outubro de 2014 às 21h05.
São Paulo - Até 2010, 63 em cada 100 ex-detentos do Reino Unido — num universo de 60 000 condenados por ano a penas curtas — voltavam a cometer crimes em, no máximo, 12 meses depois de deixar a cadeia. O peso financeiro disso para os cofres do governo britânico chegava a 20 bilhões de dólares por ano.
Mudar esse quadro exigia transformar a realidade com a qual o ex-detento se depara no momento em que deixa a prisão. Afinal, voltar para o crime costuma ser a forma mais fácil de sobreviver para um ex-detento que não tem dinheiro nem trabalho e é, muitas vezes, viciado em drogas.
Em agosto deste ano, porém, uma prisão na região de Peterborough, no leste da Inglaterra, destacou-se diante da preocupante média de reincidência criminal do país. Um trabalho de reinserção social feito nos últimos quatro anos com um grupo de 370 ex-presos gerou uma queda de quase 10% na volta ao crime e à cadeia — percentual considerado alto por especialistas.
Outros 710 homens que também saíram de Peterborough vêm passando pelo mesmo processo: eles recebem capacitação profissional e apoio psicológico. A expectativa de que os resultados alcançados sejam ainda melhores é alta. “Nesse segundo grupo, os presos se engajaram mais nas ações”, diz a consultora Marta Garcia, membro da Social Finance UK, entidade inglesa sem fins lucrativos.
A Social Finance foi responsável por selecionar as quatro ONGs que estão conduzindo as ações de reinserção e também por captar, com 17 fundações filantrópicas, os 8 milhões de dólares necessários para colocá-las em prática.
Em 2016, se a queda total de reincidência para os 1 080 ex-detentos que terão passado pelo programa for de pelo menos 7,5%, as fundações que apostaram na iniciativa não só receberão de volta seus 8 milhões de dólares como também ganharão uma bonificação, que poderá variar de 2,5% a 13% anuais, dependendo do resultado.
Ao que tudo indica, o Ministério da Justiça inglês vai economizar com a redução da reincidência dos detentos, e a sociedade deixará de sofrer com os crimes que eles cometeriam ao sair da cadeia. E a conquista desse resultado é fruto de uma parceria: o governo elege uma questão social crítica e promete uma bonificação em dinheiro a quem conseguir resolvê-la.
Para isso, um intermediário capta recursos com fundações e instituições financeiras dispostas a financiar a resolução do problema. Com o montante arrecadado, esse intermediário contrata ONGs especializadas no combate àquele problema social. Ao mesmo tempo, avaliadores independentes acompanham o processo e usam métricas para se certificar de que as mudanças estejam acontecendo.
Isso porque, se as metas do governo não forem alcançadas, os investidores perderão todo o dinheiro investido. Tal modelo, em que se remunera o bom desempenho de um serviço que visa solucionar uma questão social — e não sua simples prestação —, é chamado de social impact bond, ou título de impacto social, em português.
“É o tipo de inovação que mostra que impacto social e ganho financeiro não são excludentes entre si”, afirma Celia Cruz, diretora do Instituto Cidadania Empresarial, instituição que vem se dedicando a apoiar o modelo no Brasil.
Nos últimos quatro anos, os social bonds ganharam popularidade não só na Inglaterra mas também em outros seis países: Alemanha, Austrália, Bélgica, Canadá, Estados Unidos e Holanda. São 25 programas em andamento, que somam investimentos de cerca de 100 milhões de dólares. O pai da ideia é o inglês Ronald Cohen.
Um dos pioneiros do mercado de capitais de risco no país, Cohen foi um dos fundadores da Social Finance e é entusiasta da ideia de que governos, investidores e terceiro setor devem se unir para resolver dilemas sociais. Segundo a entidade, já existem mais de 100 propostas de social bonds sendo estudadas no mundo.
As primeiras experiências de social bonds contaram com a aposta financeira de instituições envolvidas em causas sociais, como a Fundação Rockefeller. No entanto, o movimento que se vê nos Estados Unidos desde agosto de 2012, quando o primeiro social bond surgiu por lá, indica um interesse cada vez maior de instituições financeiras.
No estado de Nova York, o banco Goldman Sachs fez um aporte de 9,6 milhões de dólares em um programa de prevenção da reincidência criminal para adolescentes infratores. A meta é reduzir a reincidência desses jovens em mais de 10% até 2016. Em 2012, quando o programa teve início, metade dos adolescentes que deixavam os centros de reabilitação voltava a infringir a lei no prazo de um ano.
A estimativa é que, se o projeto for bem-sucedido, o Goldman Sachs receberá um adicional de cerca de 2%, e o governo de Nova York economizará cerca de 2 milhões de dólares. Existem quatro social bonds em operação hoje no país, e 20 estados já demonstraram interesse em implementar o modelo.
No Brasil, não são poucas as instituições do terceiro setor que estão discutindo os social bonds. Mas, a despeito da empolgação com o modelo, sabe-se que alguns obstáculos impedem que ele seja facilmente replicável aqui. Um deles é a falta de dados precisos do governo sobre os custos dos problemas sociais.
No Reino Unido, por exemplo, as bases de dados do sistema prisional são robustas e permitem que o custo da reincidência de um detento para os cofres públicos seja calculado com precisão. “Os dados do sistema carcerário brasileiro não são unificados ou coletados com a regularidade necessária e têm baixa qualidade”, diz Fernando Salla, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.
Outro empecilho é a forma como os contratos entre o poder público e as ONGs são firmados no Brasil. “A lógica que impera hoje é a quantificação dos gastos, e não o real impacto que as iniciativas terão sobre as pessoas beneficiadas”, afirma Priscila Pasqualin, advogada especializada em terceiro setor do escritório PLKC, em São Paulo.
Superados esses dois desafios, será preciso ainda lidar com outra questão, não menos complexa: uma rejeição cultural a um modelo que prega que é legítimo lucrar à custa da solução de um problema social.
“A sociedade brasileira ainda é avessa à participação do setor privado nessa seara”, diz o economista Ricardo Paes de Barros, maior especialista brasileiro em questões sociais e subsecretário da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência. “E há o risco de que o modelo dos social bonds seja percebido como uma mercantilização dos serviços públicos.”
Ainda que o caminho dos social bonds no Brasil pareça tortuoso, há quem esteja disposto a tentar. No ano passado, o governo de Minas Gerais lançou uma consulta pública para o estabelecimento de parcerias público-privadas em vários setores, entre eles a exploração de áreas de conservação ambiental, como é o caso do Parque da Rota das Grutas Lund, que corta cinco cidades, incluindo Belo Horizonte.
Um edital foi preparado e aguarda o lançamento. Quem vencer a licitação vai receber do governo um pagamento de valor fixo, ainda não revelado, pela gestão e conservação da área, e poderá ganhar uma bonificação de 10% sobre esse montante caso os indicadores de emprego e de renda das regiões vizinhas ao parque sejam elevados.
Quem participou da elaboração desse modelo foi o Instituto Semeia, ONG com sede em São Paulo que promove a exploração sustentável das unidades de conservação ambiental do país.
“Os social bonds podem não apenas gerar uma economia para o governo mas viabilizar a oferta de um serviço que ele não consegue prover, como é o caso da gestão e da conservação de nossos parques”, diz Ana Luisa da Riva, diretora executiva do Instituto Semeia.
É provável, porém, que a PPP do Parque da Rota das Grutas Lund não seja, por muito tempo, a única investida no campo dos social bonds no Brasil. Isso porque, em setembro, a consultora Marta Garcia, da Social Finance, esteve em São Paulo para conversar com investidores brasileiros sobre o trabalho feito na Inglaterra.
Além disso, o Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID) anunciou neste ano um aporte de 5,3 milhões de dólares para impulsionar o desenvolvimento do modelo na região.
“Acreditamos que ele possa ser uma excelente ferramenta de apoio para os governos da América Latina, que estão sendo cada vez mais pressionados a oferecer serviços de qualidade que promovam o desenvolvimento social”, diz Zachary Levey, associado sênior do Fundo Multilateral de Investimentos do BID.
Lá fora, o modelo tem mostrado a que veio. É torcer para que essa fórmula ousada de solução de problemas sociais e ambientais também se prove bem-sucedida aqui.