Posse do presidente Jair Bolsonaro: os primeiros dias do governo foram marcados por cabeçadas entre as equipes | Dida Sampaio/Estadão Conteúdo /
André Jankavski
Publicado em 17 de janeiro de 2019 às 05h00.
Última atualização em 17 de janeiro de 2019 às 05h00.
Confusões, desencontros, tropeços, cabeçadas, trapalhadas. Não faltam termos para descrever as ocorrências dos primeiros dias que se sucederam à posse do presidente Jair Bolsonaro, marcados por idas e vindas. Alguns tropeços enriquecem a literatura das bobagens de início de mandato no país, como o aceno de ceder espaço a uma base militar americana em território brasileiro sem que nem sequer os Estados Unidos tenham pedido isso. Já as cabeçadas que entraram na seara da equipe econômica incomodaram bem mais. O episódio mais ruidoso foi aquele em que Bolsonaro, em entrevista ao SBT, disse que a idade mínima para aposentadoria, ponto crucial da reforma da Previdência, seria de 62 anos para homens e 57 para mulheres, requisito que ficaria aquém da proposta que está hoje no Congresso, herdada do governo Michel Temer. A declaração pegou de surpresa nomes do primeiro escalão do governo, que vieram a público dizer que não era bem assim e tentar amenizar a repercussão negativa. Afinal, Bolsonaro não saberia de pontos tão elementares do principal projeto da área econômica após um período de 54 dias do chamado governo de transição? Até agora permanece a dúvida: a escorregada seria fruto da inexperiência de quem chega ao Palácio do Planalto ou revelaria uma falta de convicção sobre a medida mais importante para a economia?
Cientistas políticos e observadores do cenário político não se surpreenderam com a confusão. Afinal, Bolsonaro ganhou a eleição com uma estrutura amadora de campanha e seu partido, o PSL, era nada mais do que um nanico na legislatura que se encerra no final de janeiro. Faltariam, portanto, gente experimentada e traquejo nas primeiras ações da nova administração. Mudar a chave mental de que campanha é campanha, governo é governo, também ajudaria a evitar erros considerados crassos. Mas prevalece, por ora, a versão de que as cabeçadas são fruto do ajuste de sintonia. “É normal que ocorram trapalhadas de largada. Se numa empresa acontece isso em uma mudança de gestão, imagine quando ocorre uma troca de governo”, diz o empresário Luiz Renato Durski Junior, dono da rede de 141 restaurantes Madero. “O que importa é a disposição para fazer as mudanças na economia e ter a equipe técnica para isso.”
Em outras palavras, é a confiança no superministro da Economia, Paulo Guedes, que tem sustentado o otimismo reinante. Uma pesquisa inédita da Câmara Americana de Comércio com 58 presidentes de grandes empresas mostra que mais da metade dos executivos acredita que a economia brasileira deverá crescer acima de 2% já em 2019 — o restante espera um desempenho que varia de zero a 2%. A maioria também projeta que o faturamento de suas empresas deva crescer acima de 10%. Otimismo é o que não falta no mercado financeiro. Na segunda-feira 14, o índice Ibovespa superou pela primeira vez na história os 94.000 pontos. “Os primeiros sinais dados pelo governo Bolsonaro são positivos. O que se percebe é que há um alinhamento entre o ministro da Economia, o mercado financeiro e o setor produtivo, algo que gera um cenário mais favorável para fazer negócios”, diz Shelly Shetty, analista-chefe de rating da agência de classificação de risco Fitch para a América Latina.
As relações entre governo, empresários e mercado financeiro devem se manter cordiais se o projeto da reforma da Previdência avançar. O próprio Guedes vem falando o que o mercado quer ouvir sobre o tema. No discurso de posse no ministério, ele foi duro e disse que o atual sistema de aposentadoria é “uma fábrica de desigualdades”. Nos próximos dias, a primeira versão do projeto de reforma gestado pela equipe econômica deve chegar às mãos de Bolsonaro. A ideia é apresentar uma reforma com idade mínima elevada e regras de transição mais aceleradas do que a proposta do ex-presidente Michel Temer. Um dos motivos para o endurecimento é o rombo fiscal. Outro é dar abertura a modificações no texto que não alterem tanto o valor que o governo pretende economizar nos próximos anos. Nos corredores do Ministério da Economia fala-se que a economia com a reforma chegaria a 1 trilhão de reais em dez anos. A previsão de despesas com a Previdência é de 768 bilhões em 2019. “O mercado está apostando que tudo vai dar certo no novo governo, mas não vai aceitar qualquer reforma”, afirma Sérgio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados. Ou seja, uma reforma fraca pode afetar diretamente o crescimento econômico do Brasil no longo prazo.
É possível que a configuração final da proposta de reforma só seja conhecida no início de fevereiro, quando o novo Congresso iniciar a legislatura. Até lá, continuarão o debate e a disputa sobre pontos como maiores ou menores concessões a grupos como militares e servidores públicos. O que importa, porém, é o que virá depois. “A fase crucial para o governo Bolsonaro é a da defesa da proposta de reforma da Previdência”, diz Christopher Garman, diretor para as Américas da consultoria de risco político Eurasia. “A estratégia de comunicação política que o presidente adotará é fundamental. Se ele perder nisso, ele perde quase tudo.” Isso quer dizer que será decisivo o engajamento do presidente junto ao Congresso e nas redes sociais, tão caras a ele, na defesa de um projeto que é impopular.
É uma tarefa difícil, mas não impossível. Uma pesquisa da corretora XP Investimentos sugere que a população entendeu a importância da reforma: 71% das pessoas ouvidas acreditam que as mudanças no sistema de aposentadoria são necessárias. Ao mesmo tempo, muitos querem o fim dos privilégios. Cerca de 50% dos ouvidos são a favor da inclusão dos militares nas mesmas regras dos trabalhadores — 16% dizem que eles precisam dar sua contribuição, mas com regras especiais. Para completar, 41% das pessoas são a favor do aumento da contribuição dos servidores públicos para o INSS.
Além de se comunicar com a população, Bolsonaro precisará assumir o protagonismo na área política. Líderes partidários ouvidos por EXAME afirmaram que nenhuma reforma será aprovada no Congresso sem um esforço pessoal do presidente — colocando em risco, especialmente, sua popularidade. “O presidente terá de colocar seu capital político para aproveitar projetos que deixarão o Brasil em boa situação financeira”, diz Nilson Leitão, deputado federal e líder do PSDB na Câmara e derrotado na disputa pelo Senado em Mato Grosso. “Se ele usar essa popularidade para vaidade ou para aplausos fáceis, não chegará a lugar nenhum.”
A despeito do desprezo de Bolsonaro pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seria prudente que o novo presidente avaliasse o que é considerada uma das grandes vitórias da era Lula. Em 2003, em apenas oito meses, o ex-presidente conseguiu tirar uma reforma da Previdência do papel e aprová-la no Congresso. Mesmo sendo uma reforma mais fraca do que a esperada para este ano, o principal mérito de Lula foi ter obtido o apoio da oposição ao texto: reuniu quase 70% dos votos dos partidos contrários ao dele. Apesar de Bolsonaro manter um discurso bélico contra seus opositores, especialmente os ligados ao PT, uma ala à esquerda pode trazer votos importantes para a aprovação da reforma da Previdência. O bloco formado por PSB, PDT e PCdoB, que conta com 69 deputados, está acenando que aceita discutir a possibilidade de votar a favor da proposta do governo. “Não faremos a oposição de quanto pior, melhor”, afirma o deputado federal Tadeu Alencar, líder do PSB na Câmara dos Deputados. “Temos problemas monumentais no Brasil para agir com imaturidade.” O discurso é acompanhado pelo congressista André Figueiredo, líder do PDT. “Vamos discutir a reforma da Previdência, mas somos contra outras pautas, como privatização em setores estratégicos.” Já o PT, que possui a maior bancada, com 56 deputados, deve continuar sendo contra qualquer projeto de responsabilidade fiscal que o governo tente mandar ao Congresso. “A única coisa que se ouve falar é a reforma da Previdência, como se o ajuste fiscal fosse a única solução”, afirma o deputado federal José Guimarães, líder do PT.
Não ajuda a ganhar pontos entre os partidos a atual estratégia do governo Bolsonaro no Congresso. Egresso do chamado baixo clero, composto de deputados de baixa estatura política, o presidente tem afagado os representantes desse bloco. As negociações com as bancadas temáticas — sobretudo a do agronegócio e a dos evangélicos — parecem que também não devem ter vida longa. “A bancada temática ajudou a compor o governo, mas quem vai encaminhar os votos são os partidos. O sistema dentro da Câmara não mudou e não vai mudar”, diz Leitão, do PSDB. A movimentação do PSL, partido do presidente, para apoiar a reeleição de Rodrigo Maia à presidência da Câmara mostra que o governo reconhece esses desafios. Essa é a opinião de Luciano Bivar, deputado federal eleito e presidente do PSL. Segundo o futuro congressista, até as brigas do partido ficaram para trás. “As discussões públicas foram arrufos que já estão superados e o apoio ao Maia teve a anuência do próprio presidente Bolsonaro, que quer deixar claro que não é autoritário como a oposição diz”, afirma Bivar.
Antes do grande teste da Previdência, o governo Bolsonaro deve levar uma pauta correlata para testar as alianças que estão sendo costuradas no momento. O novo secretário de Previdência e Trabalho do ministro da Economia, Rogério Marinho, afirmou ao assumir a pasta que o governo editará uma medida provisória em breve para coibir fraudes no sistema previdenciário. Nas contas do novo governo, haveria mais de 2 milhões de benefícios previdenciários com indícios de fraude que precisam ser auditados pelo serviço federal. A medida provisória precisa ser aprovada pelo Congresso em até 120 dias e depois ser sancionada pelo presidente. “É uma oportunidade de mapear o número de votos com que o novo governo pode contar”, diz o analista Garman.
Se funcionar, haverá ganho de força para emplacar uma reforma mais dura. Outra possibilidade é aproveitar a reforma do governo Temer, a PEC 287, que já está no Congresso. “O governo não tem tempo a perder. Se votar e vencer no primeiro trimestre, aproveitando a PEC 287, será uma vitória estupenda. O governo se livra do desgaste logo no início”, afirma Fernando Schüler, cientista político e professor na escola de negócios Insper. Tudo depende da convicção e do empenho pessoal de Bolsonaro em transformar o principal projeto econômico de seu governo em realidade.
O CRIME NA MIRA
Bolsonaro cumpre uma promessa: facilita a posse de arma. Mas o mais esperado é o pacote que virá de Sergio Moro
Passados os desencontros iniciais, o presidente Bolsonaro se apressou em cumprir uma promessa de campanha. Na terça-feira 15, ele assinou o decreto que facilita a posse de armas de fogo. Foi um aceno aos parlamentares da chamada bancada da bala e aos eleitores que votaram no capitão da reserva na esperança de ver uma redução na criminalidade. Pelas novas regras, pessoas que moram em cidades com mais de dez homicídios a cada 100 000 habitantes podem guardar armamento em casa ou no local de trabalho, Isso torna três em cada quatro brasileiros aptos a ter uma arma. A medida representa apenas uma resposta rápida e, provavelmente, ineficiente para o grave problema da segurança pública. O ano começou com uma onda de ataques promovida pelo crime organizado no Ceará (a exemplo do que ocorreu em verões passados no Rio Grande do Norte, Espírito Santo e Maranhão, crises quase sempre associadas às saídas de presidiários autorizadas no fim de ano). Em sua posse, o ministro Sergio Moro, da Justiça, prometeu um pacote duro de segurança. “É preciso enfrentar os grupos com leis mais eficazes, inteligência e operações coordenadas entre as diversas agências policiais, federais e estaduais. O remédio é universal, embora nem sempre de fácil implementação, mas passa pela prisão dos membros, isolamento carcerário das lideranças, identificação da estrutura e confisco de seus bens.” As medidas ainda não foram anunciadas, mas já estão claras as linhas de ação de Moro. Entre elas está o investimento nas polícias estaduais com recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública e a padronização de procedimentos e estrutura. Outra é melhorar a qualidade das penitenciárias federais, estaduais e do Distrito Federal, oferecendo projetos e modelos de presídios. “Precisamos recuperar o controle do Estado sobre as prisões brasileiras com investimentos e inteligência”, disse Moro. Esse é um ponto crucial. A onda de ataques que tem assolado o Brasil é coordenada de dentro das penitenciárias, onde vivem 726 000 encarcerados, aumento de 706% em relação ao número de 1990. “O crime organizado nasce dentro das prisões”, diz Melina Risso, conselheira do Instituto Igarapé. “Esta é a primeira vez que podemos ter no Brasil um enfrentamento organizado com a ajuda da inteligência e chegar até os mandantes dos crimes.” É o que o país espera que aconteça.
O RISCO NO COMÉRCIO EXTERIOR
A política adotada pelo Itamaraty nos primeiros dias do governo incomoda parceiros que geram grande parte do superávit comercial | André Jankavski e Letícia Naísa
Se a equipe econômica goza da total confiança dos agentes do mercado, o mesmo não pode ser dito daqueles que serão responsáveis pelas relações internacionais e pelo comércio exterior. A começar pelas declarações antiglobalistas do presidente Jair Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo, passando pela nomeação e demissão atabalhoada do ex-presidente da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), Alecxandro Carreiro, especialistas estão preocupados com a defesa de pautas que afetam a relação com alguns dos principais parceiros do país. Os mais ressabiados são os árabes e os chineses.
A decisão que parece estar mais próxima de ocorrer incomoda os árabes: a mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. A Liga Árabe, formada por 22 países da região, avisou Araújo que, caso se confirme, a decisão pode trazer impactos políticos e econômicos para o Brasil. Para tentar amenizar a situação, a Câmara de Comércio Árabe-Brasileira reuniu-se com integrantes do governo e mostrou o que está em jogo. Em 2018, o Oriente Médio recebeu 4% das exportações brasileiras, cerca de 10 bilhões de dólares. De acordo com estimativas da Câmara, as vendas do Brasil a esses países têm potencial de alcançar 20 bilhões de dólares daqui a quatro anos, especialmente em produtos agropecuários. “Se a mudança ocorrer, não haverá uma ruptura instantânea, mas é provável que as relações fiquem estremecidas no longo prazo, prejudicando o comércio”, afirma Rubens Hannun, presidente da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira.
Bolsonaro terá um problema ainda maior se endurecer com a China. O país asiático é o maior importador do Brasil. De nossas exportações, 27% têm como destino os portos chineses — 82% da soja exportada vai para lá. O superávit comercial com a China em 2018 foi de 29 bilhões de dólares. Para completar, nos últimos dez anos as empresas chinesas investiram 55 bilhões de dólares por aqui, segundo levantamento do Conselho Empresarial Brasil-China. “A China tem grande responsabilidade por não ter sido pior a crise no Brasil”, diz Charles Tang, presidente da Câmara de Comércio Brasil-China. Para ele, se o presidente Bolsonaro não se retratar e deixar clara a confiança que tem nos chineses, é provável que os asiáticos procurem outros países para investir.
Na outra ponta, Estados Unidos e Israel comemoram a guinada à direita do governo brasileiro. Curiosamente, ambos representam déficits comerciais para o país: 848 milhões de dólares com os israelenses e 194 milhões com os americanos. “Vemos essa aproximação de forma muito positiva”, diz Deborah Vieitas, presidente da Amcham, a Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos. Há três temas prioritários para a melhoria da relação bilateral: facilitação de comércio; um acordo de imigração para agilizar idas e vindas de empresários; e mecanismos de cooperação em áreas estratégicas, como saúde, tecnologia, infraestrutura e segurança. A aproximação ajudaria o Brasil num eventual cenário de desaceleração mundial, segundo Deborah. “Uma redução na velocidade do crescimento tem um impacto econômico relevante, mas os Estados Unidos continuarão a ser o maior mercado do mundo”, diz ela. “É o país para o qual o Brasil mais vende manufaturados e semimanufaturados, que é uma exportação de valor agregado.”
O Brasil, por tradição diplomática, sempre soube se equilibrar entre os diferentes polos de poder no mundo. Por isso, mantém relação com praticamente todos os países e ganha comercialmente com isso. É um legado e tanto, a ser devidamente ponderado pelo governo Bolsonaro.