Revista Exame

Quanto falta para o Brasil aproveitar, de fato, a indústria 4.0

Baixo uso de roôs mostra quanto a indústria brasileira tem de evoluir para se digitalizar

Centro de pesquisa do Boticário: 70% das operações da empresa já estão digitalizadas (Marcelo Almeida/Exame)

Centro de pesquisa do Boticário: 70% das operações da empresa já estão digitalizadas (Marcelo Almeida/Exame)

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Da Redação

Publicado em 12 de fevereiro de 2021 às 08h00.

Você já imaginou ouvir um perfume? A fabricante paranaense de cosméticos Boticário diz que, em breve, seus perfumes podem virar músicas. “É um projeto revolucionário”, afirma Sérgio Sampaio, diretor de operações do Grupo Boticário. “O som vai trazer a percepção da fragrância que você está adquirindo.” A novidade do Boticário, que está sendo desenvolvida em parceria com uma start­up paranaense, pretende agregar mais uma experiência na decisão de compra do consumidor e deve estar no mercado em até dois anos.

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Ela segue outras inovações do Boticário, como um perfume criado por meio de inteligência artificial, em 2019, e que são resultados das novas tecnologias adotadas pela empresa e que a habilitam a ser classificada como uma indústria 4.0. Cunhado há quase uma década pelos alemães, o termo alude à quarta revolução industrial, caracterizada pela adoção de um conjunto de tecnologias que integram o mundo físico, digital e biológico na atividade fabril.

Se as primeiras três revoluções industriais foram marcadas pela máquina a vapor, pela produção em massa e energia elétrica e pela automação, respectivamente, a palavra-chave da 4.0 é a conectividade. 

Atuando desde o desenvolvimento do produto até a fabricação e o varejo no segmento de beleza, o Boticário já apresenta cerca de 70% de suas operações digitalizadas e integradas, incluindo os fornecedores.

“Até 2023, atingiremos os 100% de integração digital, com a tomada de decisão em tempo real”, diz Sampaio. “Quando o varejo vender muito determinado produto, vamos automaticamente acelerar a produção, e frear quando vender pouco.”

A jornada do Boticário rumo à indústria 4.0 ganhou velocidade a partir de 2015, com a adoção de diversas tecnologias, como os robôs autônomos, internet das coisas (IoT), inteligência artificial, data analytics e sistemas de virtualização. “O primeiro passo foi mudar o software do ser humano, capacitando todo o time de operações”, diz Sampaio. Entre os ganhos obtidos está um aumento de 17% na produtividade e na capacidade de desenvolvimento, que subiu de 2.500 para 3.500 novos produtos ao ano, além de reduzir pela metade o tempo médio de um lançamento.

A digitalização do Boticário no varejo também ganhou um grande impulso no enfrentamento da pandemia do coronavírus. A empresa afirma ter antecipado em três anos a meta de digitalização dos canais de venda. A Natura, outra fabricante de produtos de beleza, também acelerou o processo de digitalização, que se inicia no desenvolvimento do produto e termina na jornada da consultora. Em outubro de 2020, a Natura contava com mais de 1 milhão de lojas online de suas consultoras, um crescimento de 75% em relação ao ano anterior. Só nos últimos seis meses a empresa anunciou investimentos de 400 milhões de reais em transformação tecnológica e digital. 

Mas não foram só as empresas de beleza que se saíram bem na pandemia graças às novas tecnologias digitais. No Brasil, um levantamento realizado pela Confederação Nacional da Indústria e pelo Instituto FSB Pesquisa, com 509 executivos, no final de 2020, revelou que as empresas que utilizam tecnologias da indústria 4.0 lucraram mais e conseguiram manter ou até mesmo ampliar o quadro de funcionários no período pandêmico. A pesquisa trouxe, porém, dados preocupantes.

Quase a metade (45%) dos entrevistados não conhecia os conceitos de indústria 4.0 e 52% consideravam sua empresa atrasada na adoção das tecnologias. Entre os que já usam, as tecnologias mais citadas foram as de computação em nuvem, sensores e softwares de gestão avançada na produção. “O processo de incorporação de tecnologias 4.0 se dá a partir da lógica de que vai tornar essa empresa mais eficiente”, diz João Emilio Gonçalves, gerente de política industrial da CNI. “A regra é começar por projetos, onde posso ganhar mais competitividade no mês que vem.” 

A pandemia também ajudou a sacudir os planos de digitalização de algumas empresas ou, pelo menos, aumentou a conscientização para a necessidade. “Na pandemia, muitas empresas pensaram que estavam mais digitalizadas e viram que não era bem assim”, diz Bruno Jorge, gerente de difusão de tecnologias da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial. A internet industrial das coisas, que usa sensores para monitorar o comportamento das máquinas, está entre as tecnologias mais popularizadas.

“A empresa se beneficia não só pela gestão da produção mas também pela gestão da manutenção”, diz Paulo Roberto dos Santos, diretor da Zorfatec, consultoria em inovação. “Com menos paradas imprevistas, há um ganho efetivo de produtividade.” Mas o processo de evolução na indústria brasileira ainda é bastante assimétrico, concentrado em grandes empresas, lideradas pelo setor automotivo. Para as empresas que já priorizavam o processo de transformação digital, os desafios continuam grandes.

“Os obstáculos incluem questões técnicas, financeiras e também de pessoas”, resume José Rizzo Hahn Filho, presidente da Associação Brasileira de Internet Industrial e fundador da empresa de tecnologia industrial Pollux.

Uma das empresas que deflagraram seu projeto 4.0 durante a pandemia é a Krona, fabricante catarinense de tubos e conexões, que começa a operar em março sua produção 4.0. A empresa apostou na instalação maciça de sensores para a geração de dados, de olho no aumento da eficiência operacional e na manutenção preditiva e prescritiva dos equipamentos.

“O nosso custo de manutenção representa em torno de 24% do custo de transformação do quilo produzido”, diz Edson Fritsch, diretor industrial da Krona. “Com todos os processos digitalizados, desde a entrada da matéria-prima até a expedição do produto, teremos mais dados para a tomada de decisão.”

Para a construção do projeto, Fritsch diz que buscou parcerias com startups locais e universidades. “Elas nos ajudaram a identificar as tecnologias viáveis.” 

Baixo uso de robôs

Ainda considerado parte da terceira revolução industrial, o uso de robôs na indústria mostra quanto as fábricas brasileiras precisam avançar na automação, em relação ao resto do mundo, e quão concentrado ele está aqui. Em 2019, o Brasil contava com 15.300 robôs industriais, ante um estoque de 2,7 milhões de robôs na indústria mundial.

A densidade brasileira é de 15 robôs por 10.000 trabalhadores, enquanto a média mundial é de 113, liderada por países como Singapura (918), Coreia do Sul (855), Japão (364) e Alemanha (346), ficando atrás também da Argentina (21).

“A baixíssima utilização de robôs no Brasil evidencia que nossas fábricas têm muito trabalho inseguro e repetitivo, quando comparadas às de outros países”, diz Rizzo. “À medida que o custo da mão de obra no Brasil aumentar, essa situação deve mudar.”

Linha de produção de chassis de ônibus da Mercedes-Benz: desde o primeiro parafuso, tudo é monitorado digitalmente Foto: Germano Lüders 30/06/2020 (Germano Lüders/Exame)

Com processos automatizados desde a década de 1980, a alemã Mercedes-Benz vem fazendo o que chama de “revolução” em suas fábricas brasileiras com conceitos da indústria 4.0, já aplicados nas unidades de caminhões, cabinas e chassis para ônibus. “Adaptamos prédios, fluxos logísticos e toda a inteligência da fábrica, com conceitos totalmente diferentes”, explica Ricardo Bocciardi, diretor de planejamento industrial da Mercedes-Benz do Brasil.

Na última fábrica, inaugurada em 2020, de chassis para ônibus, a operação foi totalmente simulada em 3D antes de ser instalada, para detectar problemas e melhorar performances, reduzindo em 35% o tempo de desenvolvimento e implantação. O complexo é todo digitalizado, usando tecnologias como internet das coisas, sensores inteligentes, robôs colaborativos, veículos autônomos para o transporte de peças, big data e analytics.

“Desde o primeiro parafuso que é montado em determinado veículo até a entrega do produto ao cliente, tudo é monitorado digitalmente, em tempo real”, diz Bocciardi. O resultado de tudo isso é um aumento de produtividade entre 12% e 15%, nos dois primeiros anos de operação de cada linha remodelada — o tempo de montagem de um caminhão caiu de 100 para 85 horas, além de ganhos em flexibilidade para atender às demandas do mercado. No caso dos chassis, eles permitem cerca de 2.000 configurações diferentes — no passado, seria impossível produzir tudo isso no mesmo ambiente.

Rápida reconfiguração

Com o lema de “nunca automatizar o desperdício”, a jornada da fabricante de eletroeletrônicos Whirlpool dentro da indústria 4.0 passou pela coleta automatizada de dados, para identificar as maiores oportunidades em sua operação. Em algumas áreas, a produtividade aumentou 50% e, na média, cresceu de 5% para mais de 10% ao ano. Outra aposta da empresa, que fabrica produtos Brastemp e Consul, é em soluções de equipamentos ágeis, que permitem uma reconfiguração da produção em até 48 horas, ante 30 dias no passado.

“O ciclo de vida dos produtos está cada vez mais curto”, diz Vinícius Tokuda, diretor da unidade da Whirlpool em Rio Claro, no interior paulista. “Precisamos de agilidade para entregar novos produtos ao mercado, com baixo investimento em adaptações e que possam ser implementadas em um final de semana.” Nos últimos dois anos, a empresa multiplicou por 3 o número de robôs colaborativos, em atividades chatas e repetitivas.

Com uma digitalização que atinge hoje 70% de suas operações, a Whirlpool pretende ter sua cadeia de valor 100% conectada em dois anos, incluindo os fornecedores, até 2030.

Entre os maiores desafios da indústria 4.0 estão a inteligência na seleção da tecnologia que melhor se ajusta ao processo e a capacitação da mão de obra. “Nossa preocupação é não gerar uma colcha de retalhos, que seria difícil de se conectar”, diz Tokuda. “E de nada adianta ter todas as tecnologias se o seu fator humano não está conectado.” O mesmo tipo de preocupação se observa na fabricante de papel e celulose Klabin em sua escalada dentro da indústria 4.0.

“Muitos fornecedores vieram oferecer soluções de tecnologia para problemas que eu não tinha”, diz Francisco Razzolini, diretor de tecnologia industrial, inovação, sustentabilidade e projetos da Klabin. “Precisava saber o que fazer primeiro e não entrar na onda de só usar porque é bonito ter indústria 4.0.” A Klabin, que possui 24 unidades no país e começou a adotar soluções digitais na década de 1980, estabeleceu, em 2019, seu plano diretor de digitalização, para mapear seu nível tecnológico e saber aonde queria chegar.

Com atuação em toda a cadeia, os desafios tecnológicos diferem em cada unidade industrial. Ao mesmo tempo que opera fábricas antigas, a Klabin inaugura na metade deste ano o Puma II, um megaprojeto para a produção de papéis para embalagens, com investimentos de 9 bilhões de reais e capacidade de produção de 920.000 toneladas ao ano. Em Ortigueira, no Paraná, o Puma II já nasce dentro dos conceitos da indústria 4.0, 100% digitalizado e com cerca de 80.000 pontos de informação instalados — as unidades mais antigas da Klabin têm entre 8.000 e 20.000 sensores cada. “O Puma II traz um sistema totalmente integrado de sensores, que mede a qualidade da fibra, as temperaturas, vazões e fluxos químicos, entre outros”, diz Razzolini. 

Fábrica da WEG em Jaraguá do Sul (SC): aumento de eficiência e gestão da manufatura em tempo real (Germano Lüders/Exame)

As oportunidades da indústria 4.0 devem se ampliar com a tecnologia 5G de transmissão de dados, já chamada de “a nova eletricidade” por Guo Ping, executivo da chinesa Huawei, uma das provedoras do serviço. Em fase de testes no Brasil, o 5G promete acelerar ainda mais as possibilidades de ganhos nas operações de dados digitais, o coração da indústria 4.0. A Controls, fabricante de contatores e disjuntores, entre outros produtos, do Grupo WEG, é uma das empresas que participam dos testes de avaliação da nova tecnologia na indústria.

Entre os quesitos analisados estão a alta capacidade de transmissão de dados wireless, a densificação, que é a capacidade de suportar centenas de dispositivos, e a latência, o tempo de resposta da informação. “Vamos medir as vantagens, as desvantagens e os limites da tecnologia numa fábrica real”, diz Carlos Bastos Grillo, diretor de negócios digitais da WEG. “Acreditamos que ela vai alavancar a conectividade, permitindo muito mais sensores em nossas máquinas.”

A Controls, que fabrica cerca de 2.000 itens diferentes, com vários processos de produção, como injeção de plástico, estamparia, montagem e eletrônica, embarcou na jornada 4.0 em 2015. “Quando a diversidade de processos é muito intensa, os conceitos da 4.0 trazem melhores resultados”, diz Grillo. O sistema digitaliza o chão de fábrica, monitorando as máquinas, as pessoas e o produto. Entre os ganhos obtidos, na linha de injetoras de plásticos, por exemplo, a eficiência operacional cresceu de 70% para 86%.

Com mais ou menos intensidade, os ganhos de eficiência se repetem nas empresas que abraçaram as oportunidades da indústria 4.0 e mostram o caminho a ser seguido. “Se você olhar o ganho de produtividade de quem avançou na 4.0, não imagina como as empresas que não fizeram esse investimento vão concorrer com ele no médio prazo”, diz Gonçalves, da CNI. “O Brasil ainda está num momento de grande oportunidade para acelerar esse processo.”

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