(Germano Luders/Exame)
Maria Luíza Filgueiras
Publicado em 16 de fevereiro de 2017 às 05h55.
Última atualização em 16 de fevereiro de 2017 às 05h55.
São Paulo — Não é difícil encontrar setores que são dominados por poucas empresas no Brasil. Alguns deles, como o aéreo e o de telecomunicações, é verdade, funcionam assim em muitos países: como as empresas precisam de escala para ser competitivas, duas ou três controlam o mercado e o consumidor tem de se virar com as opções disponíveis. Mas há exemplos bem típicos do Brasil: não é todo dia que se vê uma companhia deter 70% do mercado de cerveja, como é o caso da Ambev. Um segmento que está se tornando mais competitivo no exterior é o de bolsas de valores.
Nos Estados Unidos, existem mais de dez bolsas, que negociam ações, derivativos e commodities. Na Austrália, um mercado de porte parecido com o brasileiro, são duas. No Brasil, tudo está a cargo da BM&F Bovespa, e isso acabou chamando a atenção de possíveis concorrentes. Entre 2011 e 2012, quando ainda havia alguma euforia com o potencial da economia e do mercado brasileiro de capitais, três empresas estrangeiras anunciaram que pretendiam montar uma bolsa de valores aqui. Duas desistiram pouco depois. Mas EXAME apurou que uma dessas empresas está desde então em disputa com a BM&F para conseguir operar aqui — e a briga ficou mais feia no último ano, em paralelo ao anúncio da fusão da BM&F com a companhia de registro de títulos Cetip.
A empresa em questão é a Americas Trading Group (ATG), uma companhia brasileira de tecnologia fundada por ex-executivos da corretora carioca Ágora, que foi vendida ao banco Bradesco em 2008. No projeto da bolsa, a sócia minoritária da ATG, que vende serviços de negociação eletrônica, é a bolsa de Nova York. O plano da ATG, tornado público em 2012, é criar uma plataforma de negociação de ações no Brasil — as empresas abertas continua-riam sendo listadas na BM&F Bovespa, mas os investidores poderiam escolher se comprariam ou venderiam as ações dessas empresas por meio da própria BM&F Bovespa ou da ATG, dependendo de quem cobrasse menos ou tivesse a melhor tecnologia de operação, por exemplo. Para montar essa plataforma, a ATG precisaria de uma pesada es-trutura tecnológica para conseguir liquidar as operações realizadas em sua plataforma e também manter as ações sob custódia. Para melhorar e integrar seus sistemas de liquidação, a BM&F levou quatro anos e investiu centenas de milhões de reais.
A ATG queria poupar todo esse trabalho e pagar para usar o sistema de tecnologia já montado da BM&F, mas a bolsa decidiu não colocar o acesso à venda. Edemir Pinto, presidente da BM&F Bovespa, chegou a dar entrevistas dizendo que “não facilitaria para a concorrência”. Como não conseguiu mostrar aos reguladores que teria como liquidar as operações de compra e venda de ações feitas em sua plataforma, a ATG não obteve autorização para operar no Brasil. A empresa, então, resolveu desenvolver o próprio sistema de liquidação. “A competição ajudará a reduzir custos para os investidores”, diz Arthur Machado, presidente da ATG. Vencida essa etapa, em 2015 solicitou à BM&F uma proposta comercial para pagar pelo uso do sistema de custódia — uma instrução da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) obriga a BM&F a dar acesso a esse sistema a terceiros. Mas a bolsa, novamente, disse não.
A ATG se queixou à CVM, que notificou a BM&F, que, por sua vez, disse que já havia entregado uma proposta à concorrente. EXAME apurou que a ATG mostrou à CVM um histórico de troca de e-mails com diretores da bolsa cobrando a proposta por mais de cinco meses, no início de 2016. A BM&F, então, admitiu que não havia feito proposta alguma — e disse que só faria isso quando a ATG tivesse, de fato, uma licença para operar uma bolsa no Brasil. O problema é que a licença somente seria concedida se ela tivesse como comprovar o acesso ao sistema de custódia.
Os superintendentes da CVM se juntaram aos do Banco Central para checar os argumentos das partes e enviaram um ofício à BM&F obrigando-a a formalizar uma proposta. Dessa vez, a bolsa usou a reputação da ATG para se recusar a seguir a determinação. Segundo um processo na Comissão de Valores Mobiliários ao qual EXAME teve acesso, a BM&F disse que “não tinha conforto em estabelecer relações comerciais com a contraparte”. O motivo: em janeiro de 2016, Milton Lyra, que na época era conselheiro da ATG, passou a ser investigado na Operação Lava-Jato como possível operador de propinas do PMDB.
Além disso, Machado, sócio e presidente da ATG, foi citado na CPI dos Fundos de Pensão — o Postalis, fundo de pensão dos Correios que teve diretores indiciados por gestão temerária, investiu 400 milhões de reais na ATG. Os investimentos do fundo no passado estão sendo analisados pelo Ministério Público. “Hoje, temos assento no conselho da ATG e acompanhamos o projeto de perto. Vemos um potencial de 25% de participação de mercado para a nova bolsa”, diz Christian Schneider, novo diretor de investimentos do Postalis. A bolsa de Nova York tem 20% do capital da ATS, nome da bolsa da ATG, e o sistema de liquidação foi desenvolvido pelo grupo indiano Tata Group, que fornece o mesmo serviço para bolsas na Europa e na Ásia.
A postura da BM&F mudou depois do anúncio da fusão com a Cetip, em abril de 2016. Edemir Pinto parou de rechaçar a concorrência. “Estamos prontos para dar acesso a terceiros”, diz. Segundo executivos de mercado, a BM&F quer evitar qualquer prática que possa levar o Cade, órgão que analisa a concorrência empresarial no Brasil, a vetar a fusão ou colocar restrições demais para aprová-la, obrigando a venda de ativos. A nova empresa, avaliada em 40 bilhões de reais, terá o monopólio da negociação de ações, do registro de títulos de renda fixa e de financiamentos de veículos novos no país.
Em dezembro, o Cade usou argumentos da ATG ao analisar a união entre BM&F e Cetip. Num relatório sobre a fusão, os relatores afirmam que o fato de a BM&F -atuar em todas as etapas da negociação de ações é uma “barreira significativa de mercado, que tem sido constantemente explorada” pela bolsa. Edemir rebate as críticas. “Temos competição. Hoje a concorrência é global, tanto é que 54% do volume de ações e 43% do volume de derivativos da BM&F Bovespa são negociados por estrangeiros.”
Em outubro de 2016, a BM&F finalmente fez uma proposta comercial à ATG. A candidata à nova bolsa diz que a BM&F está cobrando valores de cinco a sete vezes superiores à média internacional para fazer a custódia. Edemir afirma que os preços da BM&F são similares aos de outras bolsas (procurados, Banco Central, Cade e CVM dizem que não comentam processos em andamento).
A decisão do Cade sobre a fusão é esperada para 22 de fevereiro, mas o prazo pode ser prorrogado. A expectativa de quem acompanha o processo é que o Cade deixe claro que a BM&F precisa permitir que outras empresas tenham acesso a seus sistemas de liquidação e custódia e também defina que preços vai cobrar por isso. Se o resultado for esse, já será algo a celebrar. Regras claras e transparência são pilares de um mercado financeiro sólido — isso, não importa de que lado se esteja, ninguém há de contestar.