Alex Ferguson e Cristiano Ronaldo: para o ex-técnico, nenhum brasileiro é páreo para o português (Alex Livesey/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 3 de agosto de 2016 às 14h21.
São Paulo — O retrospecto de Alex Ferguson é único. Ele foi técnico do Manchester United entre o final de 1986 e maio de 2013 — inacreditáveis 26 anos. Nesse período, ganhou 38 títulos, dos quais 13 da Premier League, a primeira divisão do campeonato inglês, e dois da Liga dos Campeões, torneio dos melhores times da Europa.
Foi essa história de sucesso que chamou a atenção de Michael Moritz, presidente do Sequoia Capital, um dos primeiros fundos de capital de risco a investir em companhias como Apple, Google, PayPal e LinkedIn.
Com o objetivo de inspirar executivos do mundo dos negócios, Moritz decidiu escrever um livro em parceria com Ferguson sobre como o técnico escocês conseguiu levar grupos diferentes de jogadores a ter um altíssimo nível de desempenho. Leia a seguir trechos de Liderança, que começa a chegar às livrarias de todo o país em meados deste mês.
“Quando deixei a Govan High School, em Glasgow, na Escócia, aos 16 anos, para dar início à minha formação como aprendiz de ferramenteiro na Remington Rand e à minha vida no futebol no Queen’s Park FC, seria impossível imaginar que, 55 anos depois, estaria diante de um auditório na Harvard Business School falando sobre mim para uma turma de alunos de MBA.
Na primeira aula que dei, em outubro de 2012, a sala estava completamente lotada. De onde eu estava, dava para ver os alunos no auditório aguardando pacientemente nas cadeiras — cada um com um cartão de identificação à mostra — e os corredores mais lotados ainda. Era uma visão intimidante, mas também uma prova do fascínio do Manchester United.
Nosso clube estava em ótima companhia, pois, entre as organizações estudadas durante o curso de marketing estratégico em indústrias criativas, havia Burberry, a grife, Comcast, a gigante operadora de TV a cabo americana, Marvel Enterprises, o estúdio de Hollywood por trás dos quadrinhos e das franquias cinematográficas de Homem-Aranha e Homem de Ferro, e, para minha surpresa, as atividades comerciais de Beyoncé e Lady Gaga.
A aula teve início com a professora apresentando um panorama dos diversos elementos com os quais lidei como técnico do Manchester United — os jogadores, a equipe, os torcedores, a imprensa, a diretoria e os donos. Em seguida, apresentei aos alunos minhas opiniões sobre os principais elementos da liderança.
Depois respondi a perguntas. Essa foi a parte mais divertida do dia e foram levantadas questões sobre as quais eu refletiria nos dias seguintes.
Todos os alunos estavam curiosos para saber como eu havia me tornado um líder, quais foram os indivíduos que tiveram mais influência sobre minha forma de encarar a vida, como eu trabalhava com jovens absurdamente talentosos e com salários altíssimos, como o Manchester United mantinha a sede por excelência — e um sem-número de outras questões.
É claro que eles também estavam curiosos sobre os hábitos diários de nomes conhecidos da casa, como Cristiano Ronaldo e David Beckham. Levou um tempo para que eu me acostumasse ao fato de estar diante de um quadro-negro, e não no banco de um campo de futebol, mas aos poucos fui me dando conta de que existem algumas semelhanças entre lecionar e treinar jogadores.
Talvez o elemento mais importante das duas atividades seja inspirar um grupo de pessoas a dar o melhor de si mesmas. Passei grande parte da minha vida tentando extrair o melhor de jovens, e a sala de aula na Universidade Harvard era mais uma oportunidade para isso. Os jovens sempre conseguem o impossível — seja em um campo de futebol, seja em uma empresa, seja em qualquer outra grande organização.
Se eu administrasse uma empresa, iria querer sempre ouvir as ideias dos jovens mais talentosos, pois são eles que conhecem melhor a realidade e as perspectivas para o futuro. Os livros que escrevi anteriormente sobre minha paixão pelo futebol estão cheios de detalhes acerca de competições, jogos e a escalação dos times em que atuei como jogador e técnico.
Este livro é diferente. É a minha tentativa de resumir o que aprendi na vida de um modo geral e na minha trajetória como técnico — primeiro, na Escócia, por 12 anos com o East Stirlingshire, o St. Mirren e o Aberdeen, e depois, na Inglaterra, por 26 anos com o Manchester United.
Descobrir o que é necessário para ganhar troféus com uma bola é diferente dos desafios com que deparam os líderes de empresas como a petrolífera BP, a varejista Marks & Spencer, a empresa de telecomunicações Vodafone, a montadora Toyota, a fabricante de eletrônicos Apple, grandes hospitais, universidades ou instituições de caridade.
Contudo, há traços que se aplicam a todos os vencedores, bem como a organizações cujos líderes aspiram à vitória. Esta é minha tentativa de explicar como construí, liderei e administrei o Manchester United e o que funcionou para mim.
Não quero, de maneira alguma, passar a falsa impressão de que isso pode ser facilmente transplantado para outro lugar, mas espero que os leitores encontrem algumas ideias ou sugestões que possam ser emuladas ou modificadas para o próprio uso. Quando se administra uma organização, é preciso enxergar o mais longe possível.
Mas, se a organização tem alguma semelhança com o Manchester United, sua perspectiva está sempre mudando. Às vezes, era possível antecipar muitos anos, e em outras era impossível enxergar além do próximo desafio — no nosso caso, do próximo jogo.
Contudo, priorizar uma estratégia de longo prazo para o clube era crucial, e no Manchester United era necessário pensar sempre na composição do time com algumas temporadas de antecedência. Assim, precisávamos ter uma linha de produção de talentos. Todo jogo precisa de 11 titulares e sete reservas, e toda a nossa organização tinha por objetivo produzi-los.
Eu sempre queria saber como estava a linha de produção de jogadores para o time que escalaríamos três anos depois. É muito mais fácil alcançar um nível consistente de alto desempenho quando preparamos os jovens, ajudando-os a se desenvolver e oferecendo-lhes um caminho para o sucesso.
Fazer isso não era uma tarefa simples, pois significava avaliar os milhões de meninos que sonhavam em se tornar jogadores de futebol. Significava assistir a dezenas de milhares de jogos — muitos deles debaixo de chuva e em bairros decadentes.
Recentemente, li que Steve Coppell, que jogou no Manchester United de 1975 a 1983 antes de seguir carreira como técnico, disse: ‘São como as tartarugas nos mares do sul. Milhares são chocadas nas praias, mas poucas chegam à água’. Steve está certíssimo.
Todo mundo tem uma definição diferente de ‘primeira linha’, as palavras que parecem ter substituído ‘incrível’ ou ‘excelente’. Ao ler os jornais ou ouvir os comentaristas da televisão, percebemos que, pelo visto, há uma torrente de jogadores de futebol de ‘primeira linha’. Na minha opinião, temos apenas dois jogadores de primeira linha em campo hoje: Lionel Messi e Cristiano Ronaldo.
Há um número considerável de grandes jogadores e até um grupo ainda maior de bons jogadores, mas, entre os milhares de atletas profissionais da atualidade, apenas Cristiano Ronaldo e Messi têm o direito de ser descritos como de ‘primeira linha’. Outros atletas podem protagonizar momentos de ‘primeira linha’ — um gol espetacular, um passe extraordinário ou uma defesa surpreendente.
Mas há centenas de momentos em um jogo e milhares em uma carreira. Uso uma série de critérios subjetivos e objetivos para classificar os atletas.
Os subjetivos incluem a habilidade com os dois pés, o senso de equilíbrio, a disciplina com que cuidam da forma física, a atitude em relação aos treinos, a consistência entre os jogos e ao longo de temporadas sucessivas, a mestria que demonstram em diversas posições e o talento acrescentado a qualquer time em que jogam.
Os objetivos, e por isso inquestionáveis, são: o número de gols marcados, o número de partidas jogadas em vários dos melhores times do mundo, o número de medalhas em copas e campeonatos nacionais e o número de jogos em Copas do Mundo. Ao empregar esse tipo de métrica, torna-se muito mais fácil definir os mais altos níveis de desempenho.
Há quem ache complicada a junção dessas avaliações subjetivas e objetivas. Mas as pessoas que ficam menos confusas em relação a isso são os outros jogadores. Atualmente há um número razoável de ótimos jogadores no esporte: Thomas Müller, do Bayern de Munique, Luis Suárez e Neymar, do Barcelona, e Alexis Sánchez, do Arsenal.
Entretanto, tenho certeza de que todos os quatro admitiriam que não estão no mesmo nível de Messi e Cristiano Ronaldo. Não pretendo diminuir nem criticar nenhum dos grandes ou bons atletas comandados por mim durante meus 26 anos no Manchester United, mas apenas quatro deles eram de primeira linha: Éric Cantona, Ryan Giggs, Cristiano Ronaldo e Paul Scholes.
E, dos quatro, Cristiano Ronaldo era como um enfeite no topo de uma árvore de Natal. Era ele quem dava aquele toque final. Roy Keane, Bryan Robson e Steve Bruce eram ótimos jogadores, mas alcançaram tal distinção mais pela atitude, ambição, capacidade de liderança e intensidade do que por outros atributos.
No futebol, um técnico é um afortunado se tiver pelo menos um jogador de primeira linha no time; a maioria dos clubes não tem esse luxo. No entanto, mesmo para aqueles que não contam com um fora de série, ainda é possível colocar uma ótima equipe em campo. Harmonizados de maneira apropriada, 11 bons jogadores podem formar um time que é mais do que a soma de todas as partes.
Contudo, não consigo pensar em um que tenha tido grandes conquistas de altíssimo nível sem um jogador de primeira linha. Uma das coisas necessárias para desenvolver a excelência em uma organização é o cuidado ao definir o que é sucesso. Sempre me certifiquei de estabelecer metas específicas e abrangentes.
Eu nunca dizia: ‘Esperamos ganhar a Premier League e dois troféus nesta temporada’. Em primeiro lugar, isso transmite a mensagem errada, porque soa insolente e arrogante. Em segundo, gera uma grande dose de pressão extra para todo mundo sem gerar nenhum benefício real. Em terceiro, deixa todos mais suscetíveis à frustração.
Era muito mais fácil dizer: ‘No Manchester United, esperamos vencer todos os jogos’, porque isso vinha acontecendo mais ou menos desde 1993, além de ser uma frase que representava bem o estilo do clube. Garantir que todo mundo compreendesse que esperávamos triunfar em todos os jogos estabelecia um plano com foco na excelência e me permitia administrar regularmente doses extras de intensidade.”