O fim das aulas cabuladas, em Manaus: professores e diretores têm metas de presença de alunos em sala de aula (Fabio Nutti/Exame)
Da Redação
Publicado em 30 de setembro de 2016 às 05h56.
Manaus (AM) — A escola municipal francisca pereira de Araújo, localizada numa rua esburacada do bairro Flores, no centro de Manaus, é daquelas com incontáveis problemas, como tantas outras Brasil afora. Numa passagem de 1 hora por ali, já é possível perceber rapidamente que as dez máquinas antigas da sala de computadores são insuficientes para os mais de 1 000 alunos do 6o ao 9o ano.
Ou que o pátio, que deveria ser uma quadra de esportes, não tem espaço para comportar duas equipes de futebol. Os ventiladores do refeitório, que não tem paredes, pouco aliviam o desconforto de fazer uma refeição em meio ao calorão amazônico. Até pouco tempo atrás, a escola era um caos.
No meio de um dos bairros mais violentos da capital amazonense, era invadida por traficantes nos fins de semana e o vandalismo era tamanho que, em média, os alunos tinham apenas 120 dos 200 dias letivos obrigatórios por lei. Todo ano, um de cada quatro alunos deixava os estudos, um recorde local.
Diante de tudo isso, é difícil acreditar que, agora, a Francisca Pereira de Araújo está dentro de um rol seleto de escolas brasileiras: em 2015, ela tirou nota 5,6 no Ideb, principal avaliação do ensino básico no país, feito pelo Ministério da Educação (MEC). Pode parecer uma nota apenas razoável, e de certa forma é mesmo.
Mas, com a pontuação, não apenas a escola atingiu a meta estipulada pelo MEC para 2015 — uma proeza que apenas um terço das escolas do 6o ao 9o ano no país conseguiu — como alcançou um patamar de qualidade no ensino que o ministério só esperava que fosse alcançado após 2021. Mas o que aconteceu por ali? “Percebemos que não faltava dinheiro, e sim uma boa gestão”, diz o diretor Antonio Lacerda.
A transformação, é verdade, não foi apenas na Francisca Pereira de Araújo. A escola é apenas um retrato do que ocorre em outras unidades municipais de Manaus. A prefeitura local é dona do nono orçamento do país e da terceira maior rede de ensino municipal — com 232 000 alunos em 492 escolas, a cidade só perde para Rio de Janeiro e São Paulo.
Em 2014, Manaus atingiu a marca de 1 bilhão de reais em investimentos na educação — o triplo de 2003 em moeda corrente. Até dois anos atrás a Secretaria Municipal de Ensino aplicava os recursos em dezenas de projetos pedagógicos diferentes com o objetivo de melhorar o desempenho dos alunos, mas não media os ganhos com os esforços.
O resultado é que os estudantes manauaras costumavam ocupar os piores lugares no Ideb — em 2013, com nota média de 3,4 para os anos finais do fundamental, estavam no 18o lugar entre as capitais. “Era uma posição grotesca”, diz o atual prefeito, Arthur Virgílio Neto (PSDB).
Mas, no Ideb mais recente, divulgado em setembro, Manaus deu sinais de que fez a lição de casa. Pela primeira vez desde o início do ranking, em 2005, a média das escolas locais superou a média do país em todos os níveis.
Nos anos finais do fundamental, nos quais o Brasil ainda não atingiu sua meta, Manaus teve o maior avanço entre as capitais desde 2013, e hoje ocupa o 11o lugar, com nota 4,3 — patamar que o MEC esperava ter atingido somente em 2019.
A melhoria se deu justamente num momento em que a prefeitura precisou apertar o cinto por causa da crise econômica. Na capital amazonense, cerca de 80% do PIB vem das empresas da Zona Franca, cujo faturamento caiu 25% desde 2014, em termos reais, por causa da menor demanda pelos bens fabricados ali.
Com isso, os recursos para a educação minguaram: o orçamento de 2016 é 10% inferior, em termos nominais, ao de 2014.
Não bastasse o aperto na receita, as escolas públicas precisaram abrir vagas às pressas para atender os filhos de trabalhadores demitidos pelas indústrias locais — foram 40 000 postos de trabalho cortados em dois anos — que saíram das escolas particulares. “Tivemos de fazer mais com menos”, diz Kátia Schweickardt, secretária de Educação de Manaus.
Como melhorar o resultado sobre o investimento realizado em educação é uma discussão que está ganhando força no país. Caso o Congresso aprove a lei do teto para os gastos públicos, uma tentativa do governo de Michel Temer de arrumar as finanças públicas, até mesmo o MEC deverá apertar o cinto — o que já está causando a chiadeira de muitos educadores.
De fato, boa educação custa caro: é preciso ter salários que atraiam os melhores profissionais, além dos gastos com merenda, material didático e manutenção da escola. Mas muito do investimento feito não é revertido em melhoria efetiva do ensino. É o que se viu em municípios beneficiados por royalties de petróleo.
Um estudo recente da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro analisou, durante dez anos, os gastos com educação em 239 municípios que recebem royalties em comparação com os gastos em outros de porte semelhante que não tiveram o benefício.
As cidades com royalties gastaram, em média, 14% mais e tiveram as mesmas conquistas educacionais dos locais sem royalties. “É um indício de desperdício de dinheiro”, diz a economista Joana Monteiro, professora na FGV-RJ e autora da pesquisa.
A lição de Manaus mostra o caminho do que pode ser cortado sem prejuízo da qualidade. Antes, a secretaria local de ensino tinha pouco controle sobre a compra de material, como merenda, apostilas e artigos de higiene, que podia ser feita diretamente pela escola. Não era raro faltar comida numa escola e sobrar em outra. A secretaria tinha uma frota de 52 carros que frequentemente serviam para fins particulares.
Os 45 maiores contratos com fornecedores, com gastos anuais de 300 milhões de reais, não eram auditados há anos. Nos últimos dois anos, isso começou a mudar. A compra de merenda foi centralizada, o que gerou 20% de economia. O uso particular da frota foi proibido — metade dos carros, que eram alugados, foi devolvida.
Os maiores contratos, como o das apostilas, foram renegociados, resultando numa economia de 100 milhões de reais em dois anos. O montante permitiu expandir 20% a oferta de vagas. Hoje, as escolas comportam 248 000 alunos. Oito de cada dez novas vagas ocuparam espaços que estavam mal utilizados, como depósitos de material didático antigo ou de merenda.
Para motivar professores e diretores a se aplicar na melhoria do ensino foram adotadas práticas de gestão consagradas em empresas como Toyota e AB InBev, como a fixação de metas de desempenho, o acompanhamento de indicadores de qualidade e o pagamento de bônus por resultados.
Desde 2014 os 17 000 funcionários municipais da área de educação têm objetivos a cumprir em indicadores como a frequência escolar, a participação de pais em reuniões e as notas dos alunos em avaliações aplicadas na rede inteira a cada dois meses.
O cumprimento das metas é checado no fim de cada bimestre em encontros que lembram reuniões de conselho de empresa: quem não atinge a meta precisa apresentar um plano para chegar lá. Para ajudar nessas horas, a secretaria criou uma nova função: a de assessor de gestão. Cem professores experientes foram deslocados para esses postos.
Na Francisca Pereira de Araújo, quem tomou as rédeas foi Jeane Andrade, de 38 anos. Sabendo que a escola tinha uma grande evasão de alunos, Jeane fez da atração de pais para o ambiente escolar uma obsessão. A medida adotada foi de uma simplicidade que beira o óbvio, mas que, no caos de antes, era esquecida.
Hoje, a cada cinco faltas do aluno, o professor aciona Jeane e ela, juntamente com a diretoria da escola e o conselho tutelar, se encarrega de uma blitz no paradeiro do aluno. A reunião de entrega do boletim ganhou novas funções. “Temos vídeos e palestras sobre o papel da educação na carreira, ponto que também interessa aos adultos”, diz Jeane.
Em dois anos, a presença dos pais em reuniões subiu de 35% para 92% — os números, junto com outros 27 indicadores, estão num painel de gestão na entrada da escola. “Como enxergam ali as melhorias, os pais não toleram mais voltar à realidade anterior”, diz a professora Val dos Santos Guimarães.
Por causa da evolução e do bom resultado da escola no Ideb, os 39 professores da Francisca de Araújo vão ganhar um salário extra no fim deste ano. O monitoramento constante de indicadores também reduziu outro problemão de escolas públicas país afora: a desigualdade no aprendizado.
Na Prova Brasil, a nota de matemática no 9o ano nas piores escolas de Manaus, estagnada desde 2005, já cresceu 13% sobre 2013, para 226 pontos.
Entre as escolas que já estavam no topo, o avanço foi menor, de 8%. “Pela primeira vez, as piores escolas atingiram um patamar aceitável de aprendizado”, diz a pedagoga Maria Helena Pádua Coelho de Godoy, do Instituto Áquila, consultoria mineira em gestão escolar que assessorou a prefeitura de Manaus na adoção de controle de qualidade.
Mesmo as 85 salas de aula em povoados rurais ou indígenas do município, que antes seguiam diretrizes próprias — o que costumava resultar num aprendizado pior do que o da cidade —, agora monitoram resultados como as demais escolas.
Na escola indígena Três Unidos, uma casinha de madeira à beira do rio Negro, a 2 horas de barco de Manaus, o acompanhamento dos erros dos 17 alunos da tribo kambeba permitiu enxergar erros básicos em matemática e português, corrigidos em sessões de reforço ao longo de 2015.
Hoje os alunos dali acertam, em média, sete em cada dez questões nas provas aplicadas bimestralmente — 54% mais do que no ano passado. “Não devemos nada para as melhores escolas da cidade”, diz o diretor Raimundo Cruz. A adoção de indicadores para medir o desempenho escolar não é exclusividade de Manaus.
A prática começou no Brasil na década passada e talvez o exemplo mais emblemático seja o de Pernambuco, que adotou o sistema em 2002, quando houve uma reforma curricular de algumas escolas de ensino médio.
Criado na administração do governador Jarbas Vasconcelos, que tinha o atual ministro da Educação, Mendonça Filho, como vice, o sistema de metas foi ampliado nas gestões seguintes e é tido como uma das razões de Pernambuco ter hoje a melhor rede de ensino médio do país. No Ideb de 2015, a média do estado foi de 3,9 — empatado com São Paulo.
Entretanto, manter a prática no longo prazo ainda é um desafio no país. No estado do Rio de Janeiro, um regime semelhante, implantado em 2011, foi interrompido no ano passado por pressão de estudantes e do sindicato fluminense de professores.
“O gestor público que compra a briga pela análise dos resultados em educação leva muita pedrada”, diz Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, um dos principais centros de pesquisa em educação no país, e secretário de Educação de Pernambuco durante a implantação da análise dos resultados. “É um dos motivos para o compasso lento das melhorias no ensino.”
As escolas de Manaus já demonstram que monitorar indicadores em educação dá certo. Lá, a questão é manter e ampliar as conquistas. Em boa parte do Brasil, o desafio ainda é abrir os olhos para os ganhos de uma boa gestão do ensino.