Plataformas da Petrobras no Rio de Janeiro: o uso político da estatal já era evidente três décadas atrás (Germano Luders/Exame)
Da Redação
Publicado em 15 de agosto de 2016 às 05h56.
São Paulo — Em meados de 1989, o então presidente da Petrobras, Carlos Sant’Anna, chamou um grupo de funcionários para uma reunião que começou com o seguinte discurso: ‘Precisamos de uma estratégia para proteger a Petrobras’. E continuou: ‘Não temos mais o general daqui para resolver os problemas com o general de lá’.
Sant’Anna referia-se à relação direta entre os militares que comandaram o país após o golpe de 1964 e os presidentes da estatal, muitos dos quais também foram militares. Até aquele momento, a Petrobras tinha sido presidida por militares em 25 dos 35 anos de sua existência. E a maioria dos presidentes civis que comandaram a petroleira até ali era altamente identificada com a cultura militar.
Sant’Anna era exceção. Formado em geografia e história, começou a trabalhar na Petrobras como temporário e, em 1958, foi efetivado ao passar num concurso público. Galgou cargos até chegar à presidência em abril de 1989. Naquele ano, a situação do país não era de ruptura, como em 1964, mas o cenário mostrava-se altamente desafiador.
O Brasil vivia um período de efervescência política e de grave crise econômica. O presidente José Sarney finalizava seu mandato e, depois de 25 anos, os brasileiros se preparavam para votar novamente para presidente da República. Na economia, o país beirava o caos. A inflação fechou 1989 em inacreditáveis 1 972%. Para a Petrobras, a explosão dos preços e a desvalorização cambial eram ainda mais nocivas.
O governo impedia a estatal de reajustar o preço dos combustíveis, numa tentativa inútil de segurar a inflação. A empresa perdia 100 milhões de dólares por mês devido à defasagem no preço de seus produtos.
Depois de ter registrado em balanço lucros acima do bilhão de dólares (em 1986 e 1988), a Petrobras apresentou em 1989 um resultado que se limitava a 160 milhões, muito pouco para uma gigante com mais de 80 000 funcionários na folha de pagamentos. Nesse ambiente, o que era um dos cargos mais cobiçados do Brasil, a presidência da Petrobras, transformou-se num desafio não tão atraente.
Nos cinco anos de governo Sarney, a empresa teve cinco presidentes, uma rotatividade inédita. Sant’Anna temia um futuro pouco venturoso para a estatal, e ele não estava sozinho. Os funcionários com mais tempo de empresa, principalmente os que ocupavam cargo de gestão, já tinham percebido que a democratização aumentaria a exposição da empresa ao uso político.
‘Os políticos civis vieram com um apetite danado para cima da Petrobras’, disse Roberto Villa, diretor industrial da Petrobras na época. O primeiro grande escândalo de corrupção envolvendo a Petrobras veio a público no final de 1988 por meio de uma reportagem da jornalista Suely Caldas, do jornal O Estado de S. Paulo.
A reportagem revelou que dirigentes de três bancos privados — Bradesco, BCN e Banco Geral do Comércio — haviam procurado Armando Guedes Coelho, então presidente da empresa, para fazer uma denúncia. Eles diziam que um funcionário da BR Distribuidora estava por trás de um esquema montado para saquear a estatal em conluio com instituições financeiras que aceitassem operar a fraude.
O golpe se daria no serviço de cobrança realizado por diversos bancos contratados pela BR e consistia em receber o pagamento das duplicatas de inúmeros postos de combustíveis que compravam produtos da BR. No trâmite normal, os bancos eram remunerados com um percentual de cada cobrança realizada em nome da BR.
O banco que ‘colaborasse’ no esquema seria privilegiado com uma fatia maior das cobranças da companhia. Para isso, a instituição financeira teria de fraudar a data de recebimento dos pagamentos, aplicar o dinheiro — sem que a BR soubesse — e dividir os ganhos da aplicação com o proponente do negócio ilícito. Num período de inflação alta, os ganhos seriam altos.
A pessoa que visitara os bancos propondo o esquema garantia ter o aval de executivos do alto escalão da subsidiária. A instituição financeira que não ‘colaborasse’ trabalharia menos ou não trabalharia para a empresa. Ao receber a denúncia, o presidente da Petrobras, Armando Coelho, afastou toda a direção da BR e abriu uma investigação interna.
A apuração, realizada em dez dias, confirmou que bancos pouco expressivos, escolhidos sem obedecer aos critérios normalmente utilizados pela estatal, vinham recebendo depósitos milionários em razão das cobranças feitas para a BR. A pessoa que visitava os bancos era Eid Mansur, que não trabalhava nem lá nem na Petrobras.
Entretanto, Mansur dizia ser diretamente ligado a Geraldo Magela de Oliveira e Geraldo Nóbrega, dois assistentes do presidente da BR, o general Albérico Barroso Alves, o Barrosinho, como era conhecido nas Forças Armadas. O problema é que o general Barroso era amigo e compadre do presidente José Sarney.
Foi ele que o nomeou como diretor industrial da Petrobras e presidente da subsidiária BR (os diretores da petroleira costumavam acumular a presidência de uma das subsidiárias do grupo). Ao final, a comissão interna que investigou o caso concluiu que Eid Mansur fazia parte de uma quadrilha formada por Magela e Nóbrega, ambos levados para a BR Distribuidora havia poucos meses por Barroso.
Depois que a história foi parar no jornal, o Legislativo criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Em depoimento à CPI, Magela, Nóbrega e o general Barroso negaram conhecer Mansur. No dia seguinte aos depoimentos na CPI, porém, a jornalista Suely Caldas recebeu um telefonema de um funcionário da estatal que tinha um vídeo que desmentia a versão dos três envolvidos.
Nas imagens captadas numa festa da BR, o general Barroso e seus subordinados Magela e Nóbrega brindavam alegremente com taças de champanhe com Mansur. Uma nova reportagem estampou uma sequência de fotos que mostravam Mansur se dirigindo a Barroso, enquanto apoiava a mão esquerda nas costas do general e apontava para Magela com a mão direita.
Nóbrega, o quarto elemento da foto, observava ao fundo. A reportagem demoliu o falso testemunho dos três. Os dois assessores de Barroso foram demitidos, mas Armando Coelho não conseguiu afastar o general presidente da BR. Ao telefonar para Sarney e pedir a ele que demitisse Barroso, Coelho ouviu uma resposta desconcertante do presidente.
‘Eu não demito amigos’, teria dito Sarney ao então presidente da Petrobras. Diante do argumento, Coelho entregou o cargo. Alegou que não podia trabalhar com um diretor em quem não confiava, e foi contratado por uma fábrica de catalisadores que pertencia à Petrobras. Depois, aceitou o convite para dirigir a Suzano Petroquímica.
Barroso permaneceu ainda algum tempo na diretoria da Petrobras e na presidência da BR, mas foi remanejado para a presidência da Petrofértil, subsidiária de fertilizantes do grupo, onde ficou por poucos meses, logo deixando a empresa de vez. Mais tarde, descobriu-se que Coelho teve total apoio de Ernesto Geisel, ex-presidente da República e ex-presidente da Petrobras, para realizar a investigação.
Geisel, que ainda contava com alto prestígio político, convenceu os militares a não proteger o general Barroso. Atualmente, Coelho não aceita falar sobre o diálogo que teve com Sarney. Mas também não desmente a história contada por dois auxiliares que eram muito próximos a ele na época.
Ambos confirmam que ficaram estupefatos com a justificativa do presidente da República, confidenciada pelo chefe no calor dos acontecimentos. Ao comunicar sua saída da empresa aos diretores e gerentes no auditório da Petrobras, Coelho foi aplaudido de pé por quase 5 minutos.
Mais do que uma homenagem ao presidente que deixava o cargo, as palmas dos funcionários eram um protesto contra o ataque à empresa e a saída de um presidente que não aceitou acobertar a corrupção.
Depois do escândalo, o fato é que em 1989 a Petrobras não tinha um plano estratégico. E era o que Carlos Sant’An- na pretendia mudar. Por quatro meses, a equipe incumbida de elaborar o plano discutiu cenários econômicos e políticos, nacionais e internacionais, com 40 executivos da companhia.
Ao final, chegaram à conclusão de que, nos novos tempos de competição global que se anunciavam, a raiz nacionalista da empresa deveria ser substituída por eficiência e competitividade perante as maiores e melhores petroleiras do mundo. Só assim as empresas e os países prosperariam. Essa foi uma das principais mensagens do plano.
Coordenado pelo engenheiro José Paulo Silveira, superintendente da área de planejamento da estatal, o trabalho foi finalizado em 15 de dezembro de 1989. O plano foi aprovado pelo conselho da Petrobras em janeiro do ano seguinte e divulgado por Sant’Anna aos gerentes num auditório lotado. Quase dois meses depois, no domingo de 4 de fevereiro de 1990, o plano foi parar no jornal O Estado de S. Paulo.
O título era ‘Petrobras muda para os anos 1990’. A reportagem deixou o presidente eleito, Fernando Collor, furioso. Ele ainda não havia tomado posse, o que aconteceria em 15 de março.
Em sua interpretação, o tal plano estratégico era uma forma de resistência ao seu governo. Assim que assumiu, destituiu não só o presidente e os diretores como também metade do grupo de gestores logo abaixo deles. Sant’Anna aproveitou para se aposentar. E o que seria o primeiro plano estratégico da Petrobras acabou engavetado.”