Revista Exame

Na Paraíba a ciência floresce no sertão

A Paraíba é um dos mais pobres e menos desenvolvidos estados brasileiros, mas duas instituições federais de lá têm se destacado em pesquisas e patentes

Laboratório da Universidade Federal da Paraíba: a pesquisadora Fabíola Nunes descobriu como combater o mosquito da dengue com uma receita do sertão (Raíssa Helena/ Ascom UFPB/Divulgação)

Laboratório da Universidade Federal da Paraíba: a pesquisadora Fabíola Nunes descobriu como combater o mosquito da dengue com uma receita do sertão (Raíssa Helena/ Ascom UFPB/Divulgação)

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Eduardo F. Filho

Publicado em 1 de agosto de 2019 às 05h48.

Última atualização em 1 de agosto de 2019 às 11h00.

Nos laboratórios do Centro de Biotecnologia da Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa, a veterinária Fabíola da Cruz Nunes mais seis pesquisadores tentavam transformar uma receita caseira, popular no sertão nordestino, em ciência de ponta. O ano era 2012 e a cientista estudava o suco de folhas de sisal, planta do semiárido cujas fibras são usadas em cordas e tecidos. O suco, quando aplicado na pele do gado, matava os carrapatos.

A ideia era entender a ação do inseticida natural e testá-lo no combate ao Aedes aegypti, mosquito transmissor de doenças como dengue, zika e chikungunya — só no primeiro semestre deste ano foram registrados 414 mortes e mais de 1 milhão de casos de dengue no país. Ao longo dos últimos sete anos, Fabíola descobriu que o suco de sisal é capaz de aniquilar o mosquito Aedes desde o ovo até a fase adulta.

A pesquisa, que recebeu apenas 30.000 reais de um programa de financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, gerou dois pedidos de patente depositados no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi). “Foi um tiro no escuro que deu certo. Estamos tentando agora usar o suco de sisal em forma de pó para aplicá-lo em caixas d’água, pneus e vasos, lugares onde o mosquito se multiplica”, diz Fabíola. Ela estima que o produto esteja pronto em um ano — atualmente, passa por testes toxicológicos. Falta uma empresa interessada em fabricar o inseticida de sisal.

A veterinária carioca, que já foi pesquisadora da universidade americana Cornell, é uma entre os 50 cientistas atuantes em inovação na Universidade Federal da Paraíba. Nos últimos três anos, mais de 200 pedidos de patentes foram depositados por pesquisadores da instituição.

Apenas em 2018, houve pedido de 92 registros, número recorde que pode levar a Federal da Paraíba ao topo da lista de pedidos de patentes de inovação do Inpi caso o ritmo de solicitações de outras universidades públicas tenha se mantido (em 2017, a líder nacional era a Universidade Estadual de Campinas, com 77 pedidos). O ranking de 2018 do Inpi ainda não foi finalizado, mas os números preliminares mostram que a Paraíba poderá ocupar não apenas o primeiro lugar mas o segundo também.

Em Campina Grande — cidade que fica a 133 quilômetros de João Pessoa,  com 407.000 habitantes, conhecida por ser um centro industrial e ter “a maior festa de São João do mundo” —, outra instituição tem produzido inovação. Pelos cálculos da universidade federal dessa cidade, 83 patentes foram solicitadas por 35 pesquisadores locais em 2018.

Desde que ganhou identidade própria em 2002 — antes fazia parte da Federal da Paraíba —, a Universidade de Campina Grande já depositou 236 registros de inovação. “Ainda que seja um estado pequeno e periférico, a Paraíba está se transformando em um polo de inovação”, diz Mauricio Pazini Brandão, secretário Nacional de Tecnologias Avançadas do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações.

No ranking global de inovação, o Brasil deixa muito a desejar, ocupando a 66a posição entre 129 países. No entanto, avançamos no depósito de patentes: estamos em 11o lugar entre 155 nações. Mas como a Paraíba, um estado que está entre os mais pobres do país — com PIB per capita de 14.774 reais, menos da metade da média nacional — e tem índices de desenvolvimento humano entre os piores, consegue se destacar no cenário da produção científica?

A resposta está em políticas pragmáticas criadas nos últimos anos nas universidades paraibanas para ampliar a cultura de proteção à propriedade intelectual. Em 2013, a Federal da Paraíba, que tem 32.000 alunos de graduação e pós-graduação, criou uma agência, a Inova-UFPB, que analisa o potencial inovador de uma tecnologia e sua viabilidade econômica, além de conferir se as pesquisas seguem as normas técnicas do Inpi.

O processo preliminar dura uns 20 dias, mas a concessão oficial da patente pode levar até dez anos — há uma fila de 244.000 pedidos em análise no órgão federal. Por causa da demora, desde a criação da agência 225 patentes foram depositadas pela Federal da Paraíba e apenas duas foram definitivamente concedidas, ainda que a proteção da propriedade intelectual tenha efeito desde o início do processo.

A Inova-UFPB também tem atuado na motivação dos pesquisadores. Antes da agência, os professores desenvolviam pesquisas acadêmicas mirando apenas a publicação dos resultados em periódicos científicos, algo que rende pontos para a progressão na carreira universitária, ou seja, impacta o salário no longo prazo.

Já uma patente só traz ganho se virar um produto comercial. “Um professor que só vai à universidade para dar aula e outro que desenvolve um produto inovador ganham o mesmo salário”, diz o biotecnólogo Valdir Braga, da Federal da Paraíba. Ele mesmo já solicitou oito registros, um deles de um remédio para redução da pressão arterial, desenvolvido em parceria com o Instituto Karolinska, da Suécia.

Fazer parcerias além dos muros da instituição também tem ajudado a promover a inovação na Paraíba. De 2013 a 2017, a Federal da Paraíba fechou 176 acordos com instituições públicas e privadas, como a Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, e o Instituto de Tecnologia de Massachusetts, dos Estados Unidos, para o desenvolvimento de pesquisas em conjunto.

A área que mais ganhou espaço no portfólio da Inova-UFPB é a de tecnologia de alimentos e bebidas, que em 2017 foi responsável por 32 pedidos de registros. “Ter um número alto de patentes não é um objetivo por si só. A meta é ter um polo tecnológico que crie produtos”, diz Petrônio Filgueiras de Athayde Filho, presidente da Inova-UFPB.

Por ora, só 22 invenções são comercializadas. Uma das ideias para estreitar o relacionamento com o setor privado é copiar a Unicamp, uma estadual de São Paulo que atrai empresas e startups para instalar filiais no campus. A Inova-UFPB já lançou um edital de pré-incubação e pretende atrair dez empresas até 2022.

Biblioteca de universidade na China: o país acelerou a formação de pessoal e já gera por ano mais que o dobro de patentes criadas nos Estados Unidos | Jeff Greenberg/AGB Photo

São justamente os laços com a iniciativa privada que têm feito avançar a inovação científica na Universidade Federal de Campina Grande, que tem 16.000 alunos. Desde 2015, uma unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), organização social que recebe recursos federais para unir centros de pesquisa e empresas, opera na instituição. Ali foram feitos 126 projetos com 73 companhias brasileiras e multinacionais, gerando 30 milhões de reais por ano para a universidade.

“A Embrapii serve de ponte entre a universidade e a empresa. E, como não estamos presos à burocracia estatal, tudo flui mais rapidamente”, diz Jorge Guimarães, presidente da Embrapii, que mantém também uma unidade em João Pessoa. Outro grupo em Campina Grande, este ligado ao Núcleo de Inovação e Transferência de Tecnologia da universidade, criado em 2008, reúne 300 pessoas, entre pesquisadores, desenvolvedores, professores e alunos, que criam dispositivos eletrônicos e softwares.

Em parceria com a filial americana da empresa japonesa de tecnologia Sony, por exemplo, o grupo fez um aplicativo que ajuda cientistas da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, a pesquisar curas para doenças como Alzheimer e câncer. Trata-se de uma plataforma pela qual qualquer usuário doa o poder computacional ocioso de seus dispositivos, como smartphones e tablets, ao processamento de cálculos científicos. “Temos atuado muito nas áreas de engenharia e computação, atraindo o interesse das empresas”, diz Nilton Silva, coordenador do núcleo de inovação em Campina Grande.

Inovação científica não ocorre ao acaso. É preciso ter dinheiro e gente capacitada. As duas universidades paraibanas tiveram neste ano 30% dos orçamentos contingenciados, o que equivale a 44 milhões de reais na Federal da Paraíba e 27 milhões na de Campina Grande. O bloqueio foi anunciado em abril após o ministro da Educação, Abraham Weintraub, dizer que cortaria recursos de universidades federais com baixo desempenho e que promovessem “balbúrdia”.

No final, todas as instituições federais foram afetadas. Profissionais preparados para inovar também não surgem do nada. A cultura de inovação que chegou ao sertão começou nos anos 70 com o engenheiro Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque, antigo reitor da Universidade da Paraíba e fundador da instituição de Campina Grande. Morto em 2011, Cavalcanti, como era conhecido, sabia que não seria numa Paraíba essencialmente rural que encontraria gente qualificada para as universidades locais.

Foi buscar, então, professores em centros de ensino, como o Instituto Tecnológico de Aeronáutica, em São José dos Campos, além de profissionais de países como Índia, Alemanha e Polônia. Alunos paraibanos também foram enviados ao exterior para melhorar a qualificação. “Naquela época, ele foi muito criticado porque estava criando um campus no interior do estado, onde não havia nada. Hoje, todo mundo quer uma faculdade no interior para levar o progresso a lugares inóspitos”, diz o farmacêutico e professor José Maria Barbosa Filho, ex-aluno de Cavalcanti e um dos acadêmicos mais respeitados da Paraíba. O sonho de levar ciência para o sertão deu certo.


A EXPANSÃO SEM QUALIDADE

Constituídas em rincões, as 18 universidades federais criadas nos anos PT formam 15.000 estudantes por ano. Os resultados de boa parte delas são decepcionantes

O ex-presidente Lula: 45% das chamadas “UniLulas” estão entre as piores do país | Antônio Gaudério/Folhapress

Elas foram criadas, em sua maioria, em rincões do Brasil, como o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e Marabá, no sudeste do Pará. As 18 universidades fundadas de 2003 a 2016 pelos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff ficaram conhecidas como as “UniLulas”-. Hoje, elas reúnem 146.000 estudantes e empregam 13.000 professores, com salários médios mensais de 9.000 reais.

Com orçamento de 4,1 bilhões para 2019, cerca de 8% do total destinado às 63 universidades federais do país, essas instituições padecem de problemas comuns na área da educação: qualidade aquém do esperado e gestão ruim. Nas federais criadas nos anos do PT, há 11 estudantes, em média, por professor contratado — um terço da média das faculdades privadas, mas número similar ao de instituições como a Universidade de São Paulo e a Universidade Federal de Minas Gerais.

A baixa relação aluno-professor, o que em tese garantiria maior atenção a quem estuda ali, não conseguiu fazer com que elas se destacassem em qualidade. De acordo com avaliação do Ministério da Educação, que verifica a qualidade do ensino, as federais criadas nos anos PT têm notas próximas de 3 (a pontuação vai de 1 a 5). A mais bem classificada universidade federal do país é a do Rio Grande do Sul, com nota 4,3.

Em outro levantamento, o Ranking Universitário Folha, criado pelo jornal Folha de S.Paulo em 2012, no qual são avaliadas 196 instituições públicas e privadas do país, oito das 18 “UniLulas” aparecem depois da 100a posição. A pior federal é justamente uma delas: a do Sul e Sudeste do Pará, em 190o lugar. Piores do que essa somente algumas instituições estaduais e duas particulares — a última da lista é a Universidade Estadual do Tocantins. “Falta eficiência na gestão dos recursos. É preciso ampliar a capacidade de atendimento ou enxugar a máquina dessas universidades”, diz Romário Davel, diretor da consultoria educacional Atmã.

Apesar de as instituições criadas nos anos PT graduarem 15.000 jovens por ano, o propósito de parte delas é questionado. Um exemplo é a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab, a 170a no ranking da Folha), com unidades em Redenção, no Ceará, e São Francisco do Conde, na Bahia. Criada em 2010, ela tinha como principal objetivo integrar estudantes brasileiros e de outros países cuja língua oficial é o português. Dos 6 700 alunos, 800 vieram de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

Recentemente, a universidade foi alvo de polêmica ao criar um vestibular específico para transgêneros e intersexuais a fim de aumentar a diversidade por lá. Ao todo, seriam oferecidas 120 vagas para cursos como psicologia e administração, mas o Ministério da Educação cancelou o processo seletivo depois de o presidente Jair Bolsonaro criticar a iniciativa pelo Twitter.

Construída do zero, a Unilab teve investimento de 189 milhões de reais em sua fase de implantação, nos quatro primeiros anos. Nove anos depois da fundação, porém, há prédios inacabados. A biblioteca e a moradia estudantil ainda não estão prontas. “Houve um crescimento desordenado, sem planejamento e com investimentos em obras e infraestrutura que não tiveram continuidade”, afirma o sociólogo Simon Schwartzman, especialista em educação.

Segundo o Reuni, programa de apoio à reestruturação e à expansão das universidades federais, das 2.440 obras iniciadas entre 2007 e 2014, já foram concluídas 81%, entre elas 511 laboratórios, 390 salas de aula e 68 bibliotecas. Um relatório da Controladoria Geral da União, que analisou 88 obras do Reuni de 2009 a 2014, concluiu que metade do dinheiro destinado à infraestrutura foi mal gasta ou desperdiçada. Neste ano, o orçamento do Reuni é de 38 bilhões de reais.

É improvável que novas rodadas tão generosas voltem a irrigar as federais. Pelo menos, não de dinheiro público. Diante de um cenário de corte geral de gastos na União e de contingenciamento das verbas das universidades federais (em abril, o Ministério da Educação bloqueou 30% dos recursos de custeio), uma possível boa notícia surgiu no horizonte para essas instituições do governo.

No dia 17 de julho, o ministério lançou o Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras, o Future-se. A proposta é ampliar a participação de verbas privadas no orçamento universitário, assim como ocorre em instituições de ensino nos Estados Unidos e na Europa. Com o programa, as universidades poderão fazer parcerias público-privadas e criar fundos com doações de empresas e de ex-alunos para financiar pesquisas ou investimentos de longo prazo.

Também poderão vender o nome de campi e edifícios, assim como ocorre nos estádios de futebol que levam marcas de empresas, e criar ações de cultura que possam se inscrever em editais de fomento, como a Lei Rouanet. No evento de lançamento do programa, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, disse que o projeto havia recebido mais de 50 bilhões de reais em lotes, imóveis e edifícios da União, patrimônio que, em tese, será convertido em um fundo imobiliário e negociado com a iniciativa privada.

Um desses ativos é um terreno de 65.000 metros quadrados próximo à Ponte Juscelino Kubitschek, um dos cartões-postais de Brasília. O retorno desses ativos financiaria atividades das universidades. Para o Future-se virar realidade, no entanto, será necessária a alteração de 18 leis, que vão desde legislações específicas da área de educação até regras dos fundos constitucionais do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste, os quais poderão repassar recursos às federais e a startups a ser criadas a partir do projeto. Se concretizada, essa será uma mudança e tanto num setor que costuma olhar apenas para o próprio umbigo — e para os cofres federais.

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