Revista Exame

Britânicos têm missão difícil à frente: decidir o que querem

Anthony Giddens, um dos grandes pensadores europeus, recebe EXAME no Parlamento britânico para refletir sobre o futuro do Reino Unido e a ameaça do populismo.

Anthony Giddens: professor na Universidade de Cambridge por quase 30 anos, foi diretor da London School of Economics e um dos grandes nomes da sociologia no século 20 (Jeff Morgan / Alamy / Fotoarena)

Anthony Giddens: professor na Universidade de Cambridge por quase 30 anos, foi diretor da London School of Economics e um dos grandes nomes da sociologia no século 20 (Jeff Morgan / Alamy / Fotoarena)

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Da Redação

Publicado em 30 de julho de 2016 às 05h56.

Londres — A entrevista só começou depois que a mesa foi cercada por três italianos. Estávamos na casa de chá da Câmara dos Lordes, a câmara alta do Parlamento britânico, em Londres. Os três, garçons no lugar, mostravam alguma intimidade com lorde Anthony Giddens, que estava recebendo EXAME em seu local de trabalho para uma entrevista.

Depois de tirar o pedido, um deles perguntou a Giddens: “Então chegou a hora de prepararmos as malas?” No dia 23 de junho, 52% dos eleitores britânicos votaram pela retirada do Reino Unido da União Europeia.

Desde o anúncio do resultado ninguém sabe qual será o futuro dos trabalhadores na ilha oriundos de outros países da Europa e como será a relação entre as instituições britânicas e seus equivalentes do outro lado do Canal da Mancha. Talvez por isso Giddens não tenha respondido à pergunta. Aproveitei seu silêncio para tomar a palavra e começar a perguntar sobre a conjuntura britânica.

Até aquele momento tínhamos passado mais de meia hora andando pelo Palácio de Westminster, onde fica o Parlamento britânico. Giddens, de 78 anos, é, há décadas, um dos sociólogos mais citados em trabalhos acadêmicos. Autor de mais de 40 livros, criou a Teoria da Estruturação, sobre a influência da livre- iniciativa e da reprodução das práticas sociais no comportamento humano.

Seu trabalho também foi importante na elaboração do que é chamado de teorias da modernidade, centradas nas mudanças provocadas pelo fim do feudalismo e pelo desenvolvimento do capitalismo. Professor de sociologia na Universidade de Cambridge por quase 30 anos, tornou-se diretor da London School of Economics em 1997.

Foi nessa época que passou a ser mais conhecido fora da academia ao lançar a ideia de uma nova vertente política, a Terceira Via, uma tentativa de criar uma ponte entre a esquerda e a direita. Tony Blair, Bill Clinton, Gerhard Schröder e Fernando Henrique Cardoso, todos no poder naquele momento, gostaram do que ouviram, e Giddens ganhou ares de guru.

Por sua trajetória e influência, foi indicado em 2004 para fazer parte da Câmara dos Lordes, uma espécie de Senado britânico, mas que não é eleito democraticamente. De lá para cá, tem acompanhado, de dentro do Parlamento, os altos e baixos da política do Reino Unido. Giddens recebeu EXAME no dia 12 de julho, às 16 horas, na recepção da Câmara dos Lordes.

Logo na entrada percebe-se por que os políticos britânicos chamam o Palácio de Westminster de Hogwarts, a escola de magia e bruxaria dos livros de Harry Potter. O lugar dá mesmo a impressão de ser uma mistura de museu e igreja com escola britânica. Funcionários vestidos de gravata-borboleta branca e casaca escura parecem pertencer a outra era.

Após os cumprimentos, Giddens sugeriu um tour pelo prédio. Ao chegar ao lobby que dá acesso à Câmara dos Comuns, onde se reúnem os membros eleitos do Parlamento, disse que estava marcada para o dia seguinte, 13 de julho, a última intervenção de David Cameron como primeiro-ministro naquele local. Em 2013, Cameron havia prometido que convocaria um referendo se fosse reeleito.

Favorável à permanência no bloco europeu e confiante de que a maioria de seus conterrâneos pensava da mesma forma, lançou a ideia de uma consulta popular numa tentativa de derrotar os adversários dentro do Partido Conservador. Cameron ganhou as eleições de 2015, mas, com o inesperado resultado do referendo no final de junho, teve de sair.

Na manhã daquele 12 de julho, Theresa May tinha chegado cedo à sua sala no Parlamento para tratar da montagem de seu ministério. Antes das 10 horas da manhã, dirigiu-se até Dow­ning Street, residência oficial do primeiro-ministro, a poucos metros do Palácio de Westminster, para a der­radeira reunião do gabinete de Cameron.

Na saída, foi em direção ao carro errado e voltou atrás com um sorriso no rosto, provocando comentários ­jocosos de que se tratava de seu primeiro recuo. Enquanto isso, na porta de trás de 10 Downing Street, vans e caminhões chegavam com caixas de papelão para a mudança da família Came­ron.

No dia seguinte, no Palácio de Buckingham, a rainha Elizabeth II oficializaria Theresa May no comando do país, a segunda mulher na história a ocupar o cargo e o 13o primeiro-ministro de seu reinado — o primeiro foi Winston Churchill.

Hora do chá

Já sentado na sala de chá dos lordes, Giddens falou sobre Theresa May e fez uma análise da conjuntura. Para ele, a política do Partido Conservador pa­rece ser decente e capaz, mas isso não será suficiente. “É difícil saber qual é a melhor hora de se tornar primeiro-ministro, mas dá para dizer que o momento atual é o pior.” Por quê? Porque Theresa May vai governar num momento de grande divisão.

Para ­Giddens, o Partido Conservador está dividido e, pior, o país está dividido. A divisão é geracional (a maioria dos jovens votou pela permanência na União Europeia e a maioria dos mais velhos pela saída), regional (eleitores esco­ceses e da Irlanda do Norte votaram majoritariamente para ficar no bloco e os ingleses para sair) e de classe (os mais ricos foram a favor da permanência, e a classe trabalhora, contrária).

Giddens não descarta a possibilidade de a Escócia tornar-se independente e de a violência voltar à Irlanda do Norte. “A situação é muito mais complexa do que parece na superfície. Theresa May terá de encontrar um caminho em meio a tudo isso. E, para mim, esse caminho, hoje, não existe.”

Há vários motivos para essa aparente falta de direção. Como nunca um país havia votado para deixar a União Europeia, não faltam dúvidas sobre como será a negociação entre os britânicos e os representantes dos outros 27 países do bloco a respeito do processo de saída — por enquanto, as conversas não tiveram início. “Acredito que haja potencial para embates jurídicos em todas as etapas”, afirma Giddens.

Para ele, antes de sentar à mesa de negociação, os britânicos terão pela frente uma missão dificílima. Precisarão definir o que querem. Na visão de Giddens, não existe consenso a respeito do que “a saída” significa.

No campo do leave, há quem seja contra a imigração e queira fechar as fronteiras do país, mas também há os que defendem uma política agressiva de acordos de livre comércio com países de todos os continentes e pouco se preocupam com a questão dos estrangeiros. “Não vejo como essas ­duas visões podem ser conciliadas. O povo fez sua escolha, mas a decisão tem pouco conteúdo”, afirma. 

Logo após o resultado do referendo ser anunciado, alguns políticos pró-União Europeia chegaram a cogitar a hipótese de o Parlamento não validar a decisão popular. Por essa lógica, a opinião do povo serviria apenas como uma indicação, não uma imposição. Mesmo antes de assumir, a nova primeira-ministra já tinha descartado essa alternativa.

Giddens concorda que seria uma maluquice. “A voz do povo precisa ser respeitada.” A proposta levantada por ele para tentar encontrar uma saída é uma consulta popular mais tarde. “Quando chegarmos ao final da negociação com a União Europeia, em um ou dois anos, defendo que os britânicos sejam chamados novamente para dar sua opinião.

Pode ser por meio de um novo referendo ou de uma nova eleição geral. A ideia é que tomem uma posição a respeito de algo que tenha conteúdo.” Para Giddens, a negociação com os outros membros do bloco será duríssima. Ele não acredita em divórcio amigável.

Acha irreal um cenário favorável ao Reino Unido — ou seja, um acordo que garanta a manutenção do acesso ao mercado europeu e, ao mesmo tempo, permita ao país reduzir, de forma significativa, o fluxo de imigrantes.

Segundo ele, a União Europeia teme, com razão, criar incentivos para que outros países sigam o exemplo britânico. “Estamos no começo de uma viagem, não no final. E tudo o que temos pela frente é desconhecido.” Todas essas dificuldades fazem ­Giddens acreditar na hipótese de que a retirada britânica do bloco europeu acabe não acontecendo.

Para ele, mais tarde, diante de uma proposta de acordo desfavorável, os eleitores podem decidir pela permanência na União Europeia. Em sua opinião, seria a melhor resposta aos políticos populistas que lideraram a campanha pela saída, como Boris Johnson, ex-prefeito de Londres e atual ministro das Relações Exteriores.

Quando começa a falar sobre os populistas, “políticos que apresentam propostas fáceis e falsas para problemas complexos”, Giddens se diz muito preo­cupado. “Trata-se de um problema global. Não existe melhor definição de um populista do que Donald Trump, o candidato do Partido Republicano à Presidência americana. Esse movimento também ganha força em partes da Europa.”

Para o criador da ideia da Terceira Via, parece ser doloroso ver a atual polarização. Giddens acredita que esse fenômeno seja fruto da crise econômica causada pela ganância do mercado financeiro e também pela popularização das redes sociais. “Gente com visões extremadas encontra quem pensa semelhante na internet e sente-se mais poderosa.”

Nesse ponto da conversa, Giddens parece engatar uma quinta marcha e começa a fazer uma lista de problemas. “O aquecimento global só piora, e as medidas adotadas até agora são insuficientes. A desigualdade social está num nível inaceitável. Os paraísos fiscais escondem dinheiro que não deveria estar lá. A questão dos refugiados só piora. Os Brics, que eram um dos motores do crescimento global, estão em crise. Parece que o modelo que tínhamos para a economia mundial não está funcionando mais. Vivemos uma situa­ção muito perigosa.”

Num tom grave, sem as habituais tiradas espirituosas dos britânicos para amenizar o clima em momentos tensos, Giddens avisa que precisa ir. Para ele, não é apenas o Reino Unido que está sem rumo. É o mundo.

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