EXAME.com (EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 10h49.
Última atualização em 10 de fevereiro de 2021 às 18h37.
Foi uma grande festa. Lembra de Woodstock? Parecido. Acampamento com mais de 2 000 índios, estudantes e sindicalistas, muita música de protesto, camisetas com a imagem de Che Guevara, barracas vendendo literatura marxista e artesanato, barbudos de boinas e outras dezenas de tribos, panfletos e pessoas defendendo todo tipo de causa - ou até a ausência de causa, como um grupo que empunhava faixas com a frase "Contra tudo". Ouviam-se palavras de ordem a cada instante, antes, depois ou durante palestras de todo tipo. Todo tipo mesmo, como: "O papel da educação transformativa na promoção do desenvolvimento rural sustentável e uma cultura de paz" ou "Neo-humanismo: ecologia, espiritualidade e expansão mental".</p>
Vestiam-se indumentárias coloridas e exóticas, falavam-se os mais diversos idiomas, via-se gente dos lugares mais improváveis, como o Burundi, mais conhecido pela guerra tribal que matou 1 milhão de pessoas em 1994, e até guerrilheiros. A festa teve presenças das mais ecléticas, das Mães da Praça de Maio, da Argentina, ao velho herói da independência da Argélia, Ahmed Ben Bella, hoje com 84 anos, passando pelo presidente do Parlamento de Cuba (não é que Cuba tem um Parlamento?), o ex-jogador Raí e a ex-primeira-dama francesa Danielle Mitterrand.
A quentíssima Porto Alegre foi, durante os seis dias do Fórum Social Mundial, de 25 a 30 de janeiro, a capital internacional dos excluídos, a pedra no sapato dos endinheirados reunidos na mesma época na gélida cidade de Davos, na Suíça. Foi a heróica trincheira antiglobalização prestes a se bater contra o poderoso e cruel exército capitalista. Suas bandeiras: mudar o mundo, acabar com a fome, colocar o homem à frente do lucro, preservar o meio ambiente - como resistir a esses apelos?
O clima de Bem contra o Mal atingiu o ápice durante uma teleconferência ocorrida entre representantes dos encontros de Porto Alegre e Davos. Do lado de lá, quatro ricos senhores de terno e gravata, dentre os quais o megaespeculador George Soros, num ambiente sóbrio e elegante, defendendo a lei de mercado; às margens do Rio Guaíba, latino-americanos e africanos de camisetas ou roupas típicas, num clima de reunião estudantil, pregando a solidariedade e a justiça.
Como não poderia deixar de ser, o evento ganhou ampla cobertura da mídia do mundo todo (nada menos de 1 870 jornalistas presentes, segundo a organização do evento) e conquistou a simpatia de muita gente que, com razão, se preocupa com os destinos do mundo. Era finalmente chegada a hora em que os ativistas e algumas personalidades bem-intencionadas apresentariam sua alternativa ao neoliberalismo, depois da temporada de lançamento de pedras iniciada em fins de 1999, em Seattle, no encontro da Organização Mundial do Comércio.
O problema é que há uma enorme distância entre passar alguns dias agradáveis no sul do Brasil e efetivamente contribuir para mudar o mundo. Foi justamente aí, na hora de propor soluções concretas, que o inegável sucesso de exposição da reunião anti-Davos começou a tropeçar. Apesar de abrir espaço para uma infinidade de "debates" (é irônico ver tanta gente pensando absolutamente igual num fórum que pretendia se bater contra o "pensamento único neoliberal"), o encontro serviu apenas para que fossem repetidos inúmeros slogans absolutamente vazios, do tipo "Precisamos humanizar o capitalismo", "Somos contra um sistema baseado na ganância" ou "As multinacionais só querem ter lucro". Surgiram pouquíssimas sugestões concretas. Das que surgiram, a maioria era muito ruim.
Foi o caso, por exemplo, da velha tese de que os países do Terceiro Mundo não devem pagar a dívida externa. "Devemos decretar já uma moratória total", pregou o economista belga Eric Toussaint, presidente do Comitê pela Anulação da Dívida Externa dos Países do Terceiro Mundo. Coube a alguns economistas brasileiros o alerta: o Brasil até hoje sofre as conseqüências da desastrada moratória de 1987, pagando mais caro por seus empréstimos do que países em situação econômica mais frágil. "Dar calote pode ser uma esperteza para aqueles que nunca mais vão precisar de dinheiro dos outros, o que não é o caso da maioria dos países pobres", diz o economista José Alexandre Scheinkman, da Universidade Princeton. Não dá para esperar que os bancos emprestem dinheiro a quem não paga.
Outra proposta aplaudida foi a de "valorizar os produtos primários", seja lá o que isso signifique. Trata-se de uma tortuosa tese segundo a qual o preço dos produtos primários é mantido baixo por uma conspiração dos países ricos - provavelmente decidida em Davos -, de forma a manter os pobres em seu devido lugar. Na próxima edição do encontro, uma rápida lição sobre oferta e procura seria bem-vinda.
A discussão começou a ganhar corpo quando foi proposta a adoção da chamada taxa Tobin, uma espécie de CPMF para as transações financeiras internacionais. A taxa recebeu o apoio do próprio Soros, embora os economistas alertem para os (enormes) desafios práticos em convencer os países ricos a taxar suas transações e, mais que isso, repassar a receita para atenuar a pobreza do Terceiro Mundo.
Estranhamente, ficou quase de fora o ponto mais importante para quem pretende criticar a globalização: o protecionismo dos países ricos. É aí, e não no calote da dívida, que os governos dos países pobres deveriam centrar sua força. Segundo a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad), o mundo em desenvolvimento poderia aumentar suas exportações em 700 bilhões de dólares, gerando renda e emprego a milhões de pessoas.
O problema é que defender seriamente a abertura de mercados implica aceitar uma premissa: a globalização é um fenômeno positivo para todos, não apenas para os ricos. Há excessos? Certamente. Boas políticas sociais podem servir para mitigar as desigualdades que até vêm se acentuando nos últimos anos. Idéias interessantes de medidas compensatórias foram tratadas no fórum - por exemplo, o programa de renda mínima do senador Suplicy.
O ponto central, que escapou a muita gente, é entender que o jogo da globalização deve ser aperfeiçoado, jamais abandonado. Nesse sentido, os verdadeiros inimigos dos países pobres são menos Soros e o pessoal de Davos e mais lobistas como José Bové, o agricultor francês defensor do protecionismo, estranhamente transformado em herói em Porto Alegre pelo bravo ato de destruir uma suposta plantação de produtos transgênicos da Monsanto.
De todo modo, há que se louvar o encontro. Primeiro, porque esse clima de festa vale por si só. Segundo, porque, na escala da civilidade, falar, ainda que bobagens, está vários degraus acima de atirar pedras na polícia. Terceiro, porque, em meio a tantas palavras de ordem e clichês de esquerda, há a chance de encontros frutíferos entre organizações não-governamentais, políticos e empresas. Esses encontros podem levar a ações - miúdas, constantes - que podem trazer resultados concretos. Isso também é globalização.