Revista Exame

Brasil reinventado em Davos?

Setor privado redefine protagonismo nacional em momento de transformação global

Davos 2025: encontro evidenciou nova dinâmica ao equilibrar vozes empresariais, científicas, governamentais e culturais (Pascal Bitz/World Economic Forum/Divulgação)

Davos 2025: encontro evidenciou nova dinâmica ao equilibrar vozes empresariais, científicas, governamentais e culturais (Pascal Bitz/World Economic Forum/Divulgação)

Lia Rizzo
Lia Rizzo

Editora ESG

Publicado em 14 de fevereiro de 2025 às 06h00.

Há algumas edições, o Fórum Econômico Mundial tem sido tratado como um encontro quase protocolar da elite política e econômica global, na falta de outro ambiente de igual relevância e frequência.

Os olhares inquisidores se voltavam, nos últimos anos, para uma necessária revisão de formato, o caráter cada vez mais excludente e a falta de um sucessor forte para Klaus Schwab — em maio de 2024, o fundador e então presidente do evento anunciou a aposentadoria, num processo de transição que se formalizou em janeiro deste ano, com a passagem do bastão para Børge Brende, vice-presidente do Partido Conservador Norueguês, que ocupou vários ministérios em seu país natal.

Mas o que marcou a edição 2025, cujo tema central foi Colaboração para a Era Inteligente, foi o cenário internacional profundamente fragmentado, marcado sobretudo pelo retorno de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos e por uma evidente desarticulação das relações econômicas globais, no qual o encontro ocorreu.

Roberto Sallouti, CEO do BTG Pactual: o Brasil reúne condições únicas e um setor empresarial maduro para dialogar com o mundo sobre as grandes transformações em curso (World Economic Forum/Divulgação)

“A ordem internacional de longa data que existiu nas últimas três décadas retrocedeu. Estamos agora entre ordens, e a próxima ordem ainda não tomou forma”, alertou Børge Brende, presidente do Fórum, em sua primeira participação pública no cargo, sinalizando que a cautela seria o tom das discussões.

Nesse ambiente potencialmente desestabilizador, o Brasil teve uma participação singular, caracterizada por uma representação governamental reduzida, compensada em partes por uma presença expressiva e estratégica do setor privado, que pela primeira vez fincou a bandeira nacional na programação paralela que acontece na Promenade, principal rua de Davos, com a Brazil House.

Liderada pelo BTG Pactual, do mesmo grupo de controle da EXAME, a iniciativa foi viabilizada em conjunto com a mineradora Vale, Gerdau, Ambipar, Be8, JHSF e Randoncorp.

Gustavo Werneck, CEO da Gerdau: o momento exige uma coordenação mais ampla para demonstrarmos ao mundo o potencial brasileiro em múltiplas áreas (Chritian Hutter/ World Economic Forum/Divulgação)

Sob a liderança do ministro Alexandre Silveira, de Minas e Energia, e a participação de Luis Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), e Helder Barbalho, governador do Pará, que em novembro próximo recebe a COP30, estiveram na agenda central da comitiva oficial do governo brasileiro o potencial energético do país e discussões acerca do ambiente regulatório e da segurança jurídica; e a tentativa de liderar de forma definitiva as discussões climáticas ao sediar a próxima Conferência do Clima.

A limitada presença de representantes do Brasil expôs uma lacuna estratégica na articulação internacional do país, justamente num momento em que esses temas poderiam ganhar centralidade na agenda global.

Contudo, culminou em um movimento inédito do empresariado brasileiro presente ao Fórum que, no vácuo de representatividade, abraçou a oportunidade para o setor privado demonstrar sua capacidade de articulação internacional. Gustavo Werneck, CEO da Gerdau, uma das companhias apoiadoras da Brazil House, destacou a disparidade entre o potencial do país e sua representação oficial do governo no evento.

“Ficou aquém das expectativas”, observou o executivo em Davos, enfatizando que uma presença mais robusta das autoridades seria particularmente relevante quando o Brasil se prepara para sediar uma COP e em um cenário que demanda uma articulação mais firme entre público e privado.

“Enquanto o setor empresarial tem se empenhado em demonstrar as oportunidades de investimento e as vantagens competitivas brasileiras, falta uma coordenação mais efetiva com o poder público para amplificar essa mensagem”, argumentou.

Davos: a cidade suíça se transformou na capital mundial do debate econômico (World Economic Forum/Divulgação)

O momento parecia propício também para outros debates profundos sobre a COP30 em Davos. Como afirmou Maria Netto, diretora-executiva do Instituto Clima e Sociedade (ICS), os decretos anticlima de Donald Trump que se formalizaram simultaneamente ao Fórum, somados aos aspectos já apontados no Global Risk Report 2025, fizeram da próxima Conferência do Clima a mais importante depois da realizada na França, em 2015, quando foi celebrado o Acordo de Paris.

A participação do governador Helder Barbalho em painéis, tanto na Brazil House quanto no Congress Center, sinalizou uma articulação multinível na preparação para a conferência. Longe, porém, de cristalizar um movimento para consolidar com atores internacionais os compromissos com um legado transformador para a Amazônia, justamente quando a região assume a centralidade nas discussões globais sobre clima.

Da presença à influência

Ao longo dos quatro dias de Fórum, a resposta do setor privado à lacuna de representatividade estatal revelou-se não apenas uma solução temporária mas um forte indicativo de uma transformação estrutural nas relações internacionais brasileiras.

“Hoje não há país com uma capacidade de relevância na transição energética como a do Brasil. E tivemos oportunidade de mostrar isso em muitas conversas e encontros por aqui”, afirmou Daniel Randon, presidente da Randoncorp, veterano em Davos que circulou tanto nos espaços restritos aos detentores do White Badge (o concorrido passaporte para a programação oficial do Fórum) quanto na Brazil House.

Daniel Randon, presidente da Randoncorp: a transição energética exige pragmatismo. E o Brasil tem posição privilegiada nesta discussão. (Jason Alden/World Economic Forum/Divulgação)

O executivo foi um dos que aprofundaram a discussão sobre os desafios da mudança de matrizes de combustíveis, entendendo o ambiente como favorável à promoção dos predicados nacionais, com uma abordagem otimista, mas pragmática: “Pudemos ter muitas conversas sobre as possibilidades para a transição, que não acontecerá da noite para o dia. Precisamos de um caminho racional que combine ambição com realismo”, ponderou.

“Com passos estratégicos, desde a redução das emissões até o desenvolvimento de novas tecnologias, em uma jornada que exige consistência e comprometimento do setor privado”, completou Randon.

A ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, atualmente presidente do Comitê Global de Sustentabilidade da Ambipar, trouxe uma perspectiva sistêmica ao debate: “Nós temos de ter ótima regulação, novos modelos de negócios e uma nova relação eficiente de sociedade”. E salientou também: “Empresas brasileiras, independentemente dos ciclos políticos, precisam demonstrar que o Brasil pode ganhar com essa agenda”.

Roberto Sallouti, CEO do BTG Pactual, um dos principais articuladores da Brazil House, contextua-lizou a iniciativa em uma perspectiva mais ampla: “O interesse dos visitantes na Brazil House demonstra a confiança no potencial do país como um protagonista global, alavancado por sua liderança na produção de alimentos, exportação de minerais, potência energética e iniciativas de preservação ambiental. Com um mercado doméstico robusto de mais de 200 milhões de pessoas, composto de empresas de altíssimo nível e competitivo em diversos setores, o Brasil deve marcar presença em locais como Davos para destacar a relevância do país para investidores e lideranças dos setores público e privado globais”.

Brazil House: o espaço inédito do país em Davos recebeu eventos e reuniões bilaterais (Lia Rizzo/Exame)

Ciência e negócios convergem

Numa boa surpresa — e talvez no maior sinal de que a colaboração pode de fato estar acontecendo —, as discussões propostas pelo Brasil, tanto no espaço da Promenade quanto na programação oficial do Fórum, apresentaram um bom equilíbrio na dimensão científica fundamental ao debate.

O cientista Carlos Nobre encontrou espaço e atenção dos presentes ao apresentar análises contundentes sobre as mudanças climáticas na Amazônia e no cerrado: “A região está à beira do ponto de inflexão. E, nos últimos dois, três anos, descobrimos que o cerrado brasileiro também está”.

Ao lado de pares internacionais, como o sueco Johan Rockström, vencedor do Tyler Prize 2024, principal prêmio ambiental do mundo, ou de executivos como Sallouti, o climatologista enfatizou em muitas ocasiões a urgência da situação, afirmando que, se a temperatura exceder 1,5 a 2 graus Celsius e o desmatamento ultrapassar 20% a 25%, o risco de perda de metade da Amazônia torna-se real.

Também a perspectiva sobre bioeconomia ganhou destaque especial nas conversas e nos debates públicos. “Estamos tentando desenvolver essa bioeconomia da biodiversidade social, um tremendo potencial econômico, em vez de pastagem para gado, centenas de produtos da biodiversidade”, explicou Nobre, destacando um caminho alternativo para o desenvolvimento regional.

É possível afirmar que o Fórum Econômico Mundial de 2025 evidenciou uma transformação estrutural na dinâmica das relações internacionais: a crescente relevância dos espaços paralelos de articulação, que complementam — e por vezes superam em importância — as discussões formais das agendas restritas. Cabe ressaltar, não apenas em relação à participação brasileira.

Izabella Teixeira, presidente do Comitê Global de Sustentabilidade da Ambipar: precisamos demonstrar, como país, consistência além dos ciclos políticos, com ótima regulação e novos modelos de negócios (Eduardo Frazão /Exame)

O contraste com edições anteriores, que enfrentaram desafios singulares como a pandemia, recessões profundas e conflitos de grande escala, tornou essa mudança ainda mais evidente. O cenário de 2025 apresentou-se como um mosaico de crises menores, ainda que interligadas. A questão climática manteve-se como tema central, especialmente após os recentes eventos extremos, assim como os receios sobre pressões inflacionárias mundiais e os impactos da acelerada evolução da inteligência artificial.

A ausência de uma crise dominante, paradoxalmente, diluiu o foco das discussões oficiais e evidenciou a necessidade de novos modelos de articulação internacional. Uma nova realidade parece se estabelecer em uma conjuntura onde as corporações multinacionais têm atravessado fronteiras legais e políticas com crescente desenvoltura. São estas organizações que detêm o capital humano e financeiro, a tecnologia avançada, a presença estrangeira e o poder de mercado necessários para enfrentar os desafios globais mais complexos.

Esse protagonismo, contudo, suscita questões essenciais. Até que ponto a representatividade nacional pode depender majoritariamente do empresariado? Como equilibrar a necessária presença empresarial com a articulação governamental em fóruns globais? E, principalmente, qual é o impacto dessa dinâmica na capacidade do país de influenciar decisivamente as grandes questões globais?

Para o Brasil, a COP30 em Belém se apresenta como teste definitivo para essa nova configuração. E, ao que tudo — e Davos — indica, a aliança entre setor privado e comunidade científica pode produzir soluções concretas para desafios globais, estabelecendo-se como possível referência para outras economias emergentes. A resposta a esses desafios não apenas definirá o papel do Brasil nos próximos encontros em Davos, mas sua própria posição no redesenho da ordem internacional que se delineia. 

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