A delícia de consumir Nos bons anos, o varejo registrou um forte aumento nas vendas, resultado direto da expansão da renda (Germano Luders/Exame)
Da Redação
Publicado em 23 de julho de 2016 às 11h47.
São Paulo — Este não é o fim, talvez não seja sequer o início do fim. Mas é possível que seja o fim do começo.” A citação célebre do ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill é especialmente apropriada para o momento brasileiro. Atravessamos o fim do começo de um período de reversão do preço das matérias-primas, encerrando, não por acaso, o ciclo de bonança iniciado com a ascensão do PT ao poder.
Ciclo este que permitiu uma expansão inédita no consumo das famílias brasileiras, alimentando a ilusão de prosperidade que ora se desfaz ante a constatação de que o ‘país do futuro’ jamais deixou de ser o país dos retrocessos.
Muito se fala do legado do lulopetismo, da inclusão de milhões de pessoas na nova classe média, das transformações no mercado de trabalho, do acesso de milhares de famílias a bens e serviços antes inalcançáveis. Muito ainda terá de ser esmiuçado nesses anos que pareceram eternos enquanto duraram. O post mortem, a autópsia, está apenas em seus estágios iniciais.
Contudo, como é de amplo conhecimento de muitos especialistas, os ganhos do consumidor brasileiro vieram, sobretudo, do aumento da renda do trabalho. Essa expansão da renda, por sua vez, capturou dois componentes.
De um lado, a alta de preço das commodities e a forte entrada de recursos externos marcaram o período de 2003 a 2010 — mesmo levando em conta o susto da crise financeira internacional —, e isso impulsionou o crescimento doméstico e o emprego. Do outro, temos o componente doméstico, com a sistemática elevação do salário mínimo acima da produtividade da economia brasileira.
Nada disso é análise nova. Contudo, constitui peça fundamental para entendermos o que foi, realmente, o lulopetismo em sua fase de abundância: nada mais do que um prolongado ciclo de impulsos externos positivos, regados a complacência e vontade de acreditar que tudo era para sempre. Para sempre sem saber que, ‘para sempre, sempre acaba’, como diz uma canção famosa.
O início do fim do ciclo externo auspicioso coincidiu com o início do mandato da presidente Dilma Rousseff.
Americanos e ingleses têm uma expressão ótima que sintetiza a tentativa de resolver um problema usando todos os meios disponíveis, ainda que não sejam os mais adequados: to throw the kitchen sink (numa tradução livre, ‘jogar a pia da cozinha’, mas a expressão embute a ideia de apelar a qualquer estratégia que esteja à mão).
Os anos Dilma Rousseff terminaram com a pia da cozinha sendo arremessada para todo lado. Desemprego de 11%, desajuste completo das contas públicas, rombos na Petrobras, na Eletrobras, na Caixa Econômica Federal, inflação alta, a pior recessão desde os anos 30. Em meio aos destroços, o consumidor.
O consumidor endividado, orçamentos mensais comprometidos até o limite do possível para os que ainda mantiveram o emprego, porém muito além desse limite para os que integram os milhões de demitidos nos últimos meses.
Segundo dados da empresa de informações de crédito Serasa-Experian, cerca de 80% das famílias inadimplentes no Brasil atualmente estão na base da pirâmide de renda ou estão se agarrando com unhas e dentes à classe C.
O índice de mal-estar dessa camada da população — a soma da inflação com a taxa de desemprego, conforme definição do economista americano Arthur Okun — é hoje 40% maior do que o da média brasileira.
Dilma, verdade seja dita, enfrentou os piores momentos que sucederam a crise financeira internacional de 2008. As emissões de moeda feitas pelos países desenvolvidos para afastar os riscos de uma depressão econômica à la anos 30 tiveram como consequência a valorização das moedas dos países emergentes, levando alguns — como o Brasil — a adotar controles de capital como há muito não se via.
Controlar a entrada de recursos, por mais que haja justificativa, distorce o mercado de câmbio e provoca incerteza entre os investidores, sobretudo quando o controle é exercido de forma atabalhoada, em meio aos gritos de ‘guerra cambial’, como ocorreu no Brasil.
Além disso, a ‘licença para matar’ motivada pelos estímulos feitos por diversos países criou condições para que o Brasil utilizasse o crédito dos bancos públicos com a mesma desculpa: o mundo está em crise, o financiamento secou, cabe ao governo fazer de tudo para que as empresas nacionais tenham acesso ao dinheiro de que necessitam para investir.
Nasceram disso as políticas de ‘campeões nacionais’ que desembocaram em atrocidades como a derrocada do ‘Império X’, do empresário Eike Batista. Exemplos de gestão destrutiva como esses não faltaram nos anos da presidente Dilma. Em razão da alta nos preços dos alimentos que nos assombrou no começo de 2011, Dilma iniciou seu governo enfrentando uma acentuada subida da inflação.
Inflação que vinha também das políticas adotadas para garantir sua eleição um ano antes: a expansão desenfreada do crédito público e dos gastos do governo, que, no embalo do restante do mundo, permitiram que a economia brasileira registrasse um crescimento espantoso.
Esse crescimento começou a dar os primeiros sinais de fadiga no início de 2011, embora, àquela altura, o Banco Central ainda projetasse uma expansão de 4% na atividade econômica para o ano. A presidente não parecia satisfeita com 4%, isso era pouco ante o desempenho extraordinário de 2010, era pouco para garantir o nível de desenvolvimento que ela desejava deixar como legado para o país.
Desconfortável com 4% e embalada por suas convicções, a presidente começou a flertar com a ideia de que um pouco mais de inflação não teria problema desde que viesse acompanhada de mais crescimento, espécie de ‘inflação do bem’, contradição em termos que predominou entre alguns de seus principais interlocutores.
‘Inflação do bem’ é a noção moribunda de que altas sustentadas de preços não são um problema em si, não resultam de políticas equivocadas, não são sintomas de desequilíbrios na economia.
Aqueles que sustentam a tese advogam que, às vezes, é preciso tolerar a inflação para que o governo tenha espaço para desenvolver medidas de estímulo ao investimento, ajudando a resgatar o crescimento econômico. Os proponentes da ideia ignoram que qualquer estímulo em ambiente inflacionário, como um corte de impostos ou uma desoneração, tende, primeiramente, a provocar ainda mais inflação.
A terrível história econômica brasileira das décadas de 80 e 90 revela a falácia dessa argumentação. O plano de Dilma, anunciado diversas vezes durante o primeiro ano de seu mandato, era reduzir os juros a 2% e 3% ao ano, descontada a inflação, até o fim de 2014.
Afinal, se o Plano Real, implementado em 1994, fora capaz de eliminar o processo inflacionário corrosivo que vitimava o Brasil, ele não conseguira que a taxa de juro brasileira convergisse para os níveis observados em países emergentes semelhantes ao nosso. O legado que Dilma queria deixar era a ‘normalização’ dos juros brasileiros, a equiparação com o padrão internacional.
A ideia era sedutora: diminuir os juros, tornar o crédito mais barato para facilitar o consumo e os investimentos que trariam, por sua vez, o crescimento, mantendo assim a inflação sob controle. O ciclo virtuoso de Dilma se fecharia com a erradicação da pobreza facilitada pelo crescimento. Nas palavras da presidente: ‘A superação da miséria exige prioridade na sustentação de um longo ciclo de crescimento.
É com crescimento que serão gerados os empregos necessários para as atuais e as novas gerações’. E repetia à exaustão a ideia de que ‘é com crescimento, associado a fortes programas sociais, que venceremos a desigualdade de renda e do desenvolvimento regional’. Consumo e commodities marcaram os anos Lula. Complacência e soberba encerraram o governo de Dilma Rousseff.”