Lavoura de soja: 35% dos grãos usados não pagam royalties / Ricardo Teles/PULSAR IMAGENS
Flávia Furlan
Publicado em 1 de março de 2018 às 05h00.
Última atualização em 2 de agosto de 2018 às 15h50.
O Brasil é uma superpotência da agricultura mundial. Coleciona recordes de produção safra após safra — neste ano, calcula-se que o país vai alcançar a marca histórica de 117 milhões de toneladas de soja colhidas. Por trás de tamanho sucesso, porém, o setor há tempos vem convivendo com um problema crescente — e que, se não for resolvido, poderá comprometer seu brilho no futuro. Trata-se do embate entre produtores rurais e companhias que desenvolvem sementes, entre elas a estatal Embrapa, multinacionais como a Monsanto e a Syngenta e uma cadeia de 700 empresas menores. O que está em questão é a cobrança pelo direito de uso de variedades de sementes. Assim como em outros setores, na agricultura há muito consumo de produtos — no caso, os grãos para plantio — sem o pagamento de uma taxa para quem pesquisou e investiu. “É uma característica cultural no Brasil: muitas pessoas e empresas não reconhecem o direito de propriedade intelectual, um problema que ocorre nos mercados de livros, de música, de software e é evidente também no de sementes”, diz o biólogo Fernando Reinach, gestor do fundo de investimento Pitanga. Essa é uma realidade que precisamos mudar para garantir o avanço da inovação no país.
A querela entre produtores e empresas tem se intensificado com o aumento do volume de grãos reproduzidos ou adquiridos sem o pagamento de royalties. Dados da consultoria especializada em agronegócio Céleres, fornecidos com exclusividade para EXAME, mostram que, no caso da soja, as sementes nessas condições representavam 29% da safra de 2015 e deverão alcançar 35% na atual. Em outras culturas, as taxas são ainda maiores: 43%, no caso do algodão; 48%, no arroz; e 80%, no feijão. Os produtores fogem dos royalties alegando o aperto financeiro por diversos motivos: recentes frustrações das colheitas na fronteira agrícola nordestina, queda das cotações de commodities em relação às da década passada e escassez de crédito causada pela crise da economia.
O tema é urgente porque não há dúvida de que a pesquisa avançada em sementes é um pilar do êxito da agricultura moderna. O desenvolvimento de novos grãos ajudou a elevar a produtividade do campo. Num mesmo hectare de terra, os produtores hoje colhem 300% mais arroz, 200% mais milho e 155% mais soja do que na década de 70, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento. “Experimentos com diversas espécies mostraram que a tecnologia de melhoria genética convencional foi responsável por metade do aumento da produtividade alcançada nas últimas décadas”, afirma o professor Cláudio Lopes de Souza Júnior, do departamento de genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo.
Vale ressaltar que parte dos produtores que não pagam royalties está de acordo com o que rege a legislação brasileira. Segundo uma lei de 1997, os agricultores só precisam pagar aos pesquisadores na primeira vez que compram as sementes — não são obrigados a fazer o mesmo quando guardam os grãos para replantio na próxima safra. Mas há muitos produtores armazenando mais grãos do que o determinado por lei — que é o volume suficiente para o consumo próprio — e vendendo no mercado ilegal. A fiscalização é precária. O Ministério da Agricultura tem 100 fiscais para monitorar 61 milhões de hectares plantados no país. Em Mato Grosso, hoje o estado líder no cultivo de grãos, há dois fiscais para 15 milhões de hectares. “O direito de guardar a semente abre a porta para um jeitinho brasileiro que prejudica todo o setor agrícola do país”, diz Anderson Galvão, sócio da Céleres.
A discussão sobre o pagamento de royalties pelas sementes ficou mais acalorada neste ano porque um projeto para mudar a lei de 1997 deverá ser votado na Câmara dos Deputados até o fim de abril. Os questionamentos sobre essa legislação acontecem desde que ela foi publicada. Houve três tentativas de atualização pelo Ministério da Agricultura, cujos próprios técnicos acreditam que a norma tenha de ser aprimorada, segundo EXAME apurou. O último projeto, que levou cinco anos para ficar pronto, em 2011, foi engavetado pela ex-presidente Dilma Rousseff. Ele previa que os produtores que guardassem sementes seriam obrigados a pagar os royalties, conforme um preço de mercado, com exceção dos agricultores de menor renda. A nova proposta em discussão traz uma mudança: as condições para o pagamento serão estabelecidas por grupos formados pelas partes interessadas, entre elas os produtores rurais, as empresas de pesquisa e os agricultores certificados que têm o trabalho de multiplicar as sementes. Cada cultura pode ter um grupo. “A ideia é criar um entendimento da própria cadeia sobre quem paga, quanto paga e para quem vão os royalties”, diz o relator da proposta, deputado Nilson Leitão, do PSDB-MT. E é justamente nesse ponto que está semeada a discórdia.
Os produtores estão preocupados com o aumento do preço das sementes — a Organização das Cooperativas Brasileiras, que representa mais de 1 milhão de agricultores, diz que o projeto vai onerar toda a cadeia produtiva sem garantir que os recursos irão para a pesquisa. O preço das sementes subiu 32% nos últimos quatro anos, ante um avanço de 29% da inflação oficial no período. Outro receio é com a consolidação das empresas do mercado de sementes, um processo que começou a se acelerar globalmente em 2015. De lá para cá, o grupo químico chinês ChemChina comprou a suíça Syngenta, que depois adquiriu a empresa de sementes holandesa Nidera. A química alemã Bayer comprou a americana Monsanto e, para isso, vendeu sua divisão de sementes para a também alemã Basf. As americanas Dow Chemical e DuPont, por sua vez, fundiram-se na DowDuPont. Dados da consultoria indiana Mordor Intelligence indicam que, antes desses movimentos, as três maiores empresas do setor tinham 70% do mercado global de sementes e, agora, já estão com quase 80%. “Os produtores poderão ter acesso a mais inovação com essa consolidação”, diz Alexander Tokarz, diretor global de marketing em sementes da Syngenta. “Mas os órgãos de controle dos paí-ses precisam estar atentos para ver se o mercado não ficará muito concentrado.”
As empresas de sementes dizem que deixam de ganhar 2,5 bilhões de reais por ano no Brasil com sementes guardadas para a safra seguinte ou com as pirateadas. E que esse dinheiro poderia estar indo para a pesquisa. Dados do Ministério da Agricultura mostram que mercados que respeitam mais o pagamento de royalties têm mais variedades desenvolvidas. No caso do feijão, em que 80% dos grãos são sementes guardadas ou cópias ilegais, foram desenvolvidas 356 variedades desde o fim da década de 90, um quinto do cardápio que foi montado para os grãos de soja. O pagamento de royalties ainda poderia incentivar a pesquisa em frutas: só 5% do total das variedades desenvolvidas no país- são dessa área, que ainda tem muito a avançar em produtividade.
A Embrapa deveria ser uma grande beneficiada pela cobrança de royalties. Das 3 400 variedades protegidas existentes no Brasil, a estatal foi responsável pelo desenvolvimento, sozinha ou em parceria com outros centros de pesquisa, de um quinto delas. Com o passar do tempo, no entanto, sua participação foi caindo: no ano passado, estava em 9% do total de variedades protegidas no país. A queda ocorreu porque a Embrapa saiu de mercados em que a pirataria é menor e ela recolhia mais royalties, ficando em outros nos quais a pirataria é maior e há menos royalties. A empresa diz que esse movimento faz parte de seu papel social de pesquisa de culturas em que o setor privado não atua. Mas isso afeta seus resultados. “A arrecadação de royalties da Embrapa caiu de 13 milhões de reais, em 2010, para 7,5 milhões, em 2016, e é desejável que isso volte a crescer”, diz Vitor Mondo, secretário de inovação e negócios da Embrapa.
Em toda essa discussão, a produtividade da lavoura nacional é a variável que está em jogo. Uma preocupação dos agrônomos com a guarda de sementes diz respeito à disseminação de pragas. No Brasil, existem agricultores que estão habilitados a produzir sementes em grande quantidade para a venda, e eles fazem isso cumprindo uma série de regras, como a contratação de um técnico que acompanha a produção e submete as amostras a testes laboratoriais. No caso das sementes armazenadas, nada disso ocorre. No Rio Grande do Sul, 55% das sementes de arroz usadas nos campos são produtos da guarda ou piratea-das, segundo o Instituto Rio-Grandense de Arroz. “Dessas sementes, 80% estão infestadas de pragas”, diz Gustavo Campos Soares, chefe da área de produção de sementes do instituto. As pragas causam perdas de 280 milhões de dólares por ano no estado, na forma de redução da produção e queda na arrecadação de impostos.
As sementes transgênicas estão fora da discussão porque são protegidas pela lei de propriedade industrial, que permite cobrar royalties de grãos armazenados. Esse mercado tem seus embates próprios. O mais recente ocorrido no Brasil é o questionamento da associação dos produtores de soja de Mato Grosso, que está pedindo a quebra da patente da Intacta, semente da Monsanto resistente a lagartas e tolerante ao herbicida glifosato. As vendas da semente rendem 2,6 bilhões de reais em royalties ao ano para a empresa e seus parceiros. Segundo a associação de produtores, a patente está em desacordo com a lei porque falta clareza sobre a inovação que ela traz. A Monsanto diz que a semente foi patenteada em outros países e que vai apresentar a contestação oportunamente.
A discussão sobre a propriedade intelectual das sementes vai determinar qual caminho o Brasil vai seguir. Veja o exemplo de outros países. Nos Estados Unidos, os contratos impedem a guarda de sementes ou, quando permitem, exigem o pagamento de royalties. Na União Europeia, normalmente os royalties de sementes armazenadas são cobrados, mas o preço é inferior ao pago no momento da compra inicial. Os dois mercados avançam rapidamente na pesquisa de novas sementes. Já na Argentina os produtores e as empresas são livres para acordar sobre o pagamento ou não de royalties. Os agricultores, no entanto, acabam não fechando esses contratos. Os dados mostram que 90% dos produtores argentinos usam sementes de soja, arroz e algodão armazenadas ou pirateadas. A prática afugentou a pesquisa. Desde os anos 90, o número de empresas que desenvolvem sementes na Argentina caiu 50%, para nove. “A balança de risco e retorno no país está desequilibrada, e por isso decidimos não lançar mais tecnologias no mercado argentino”, diz Márcio Santos, diretor comercial da Monsanto.
No Brasil, o contexto histórico explica a cultura de muitos produtores de guardar sementes sem fazer o pagamento dos royalties. A Embrapa sempre desenvolveu novas variedades sem cobrar por isso. Em algumas regiões, as associações de agricultores, para as quais eles pagam mensalidade, faziam o desenvolvimento de sementes, e o custo da tecnologia não era cobrado no produto final. De todo modo, o importante para o país é que a produtividade da agricultura siga avançando. E, para isso, ter um mercado que respeite regras e o direito de quem trabalha com pesquisa é condição essencial.