Maria Esther: ela foi a melhor do mundo por quatro vezes (Evening Standard/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 21 de junho de 2018 às 05h00.
Última atualização em 21 de junho de 2018 às 05h00.
O tênis me levou a lugares inimagináveis. por exemplo, ao convívio com Maria Esther Bueno, maior tenista brasileira de todos os tempos e, por quatro vezes, em 1959, 1960, 1964 e 1966, também melhor do mundo. Com Maria Esther, que nos deixou no dia 8 de junho, aprendi lições que pareciam pertencer ao universo do esporte. Eram, na realidade, lições de vida, de carreira e de sucesso empresarial.
Quando Maria Esther e eu nos conhecemos, em meados dos anos 70, ela ainda jogava alguns torneios, mas estava encerrando a carreira. Eu tinha 16 anos e havia me tornado o melhor tenista do clube que representava. Lá, porém, não tinha mais espaço para crescer. Meu pai sabia da tradição da Sociedade Harmonia de Tênis, clube fundado há quase 90 anos em São Paulo por amantes do esporte pelo qual eu, adolescente, me apaixonei. Éramos de uma família de classe média baixa, muito longe do poder aquisitivo necessário para ter um título, mas de alguma maneira ele conseguiu que eu fosse admitido como sócio-atleta. Foi o melhor presente que recebi dele.
No Harmonia, dei de cara com os melhores tenistas do Brasil. E com Maria Esther. Diferentemente dela, eu não tinha um talento natural, mas ganhava no esforço. Naquele momento, o que tínhamos em comum era a paixão pelo tênis e uma imensa vontade de treinar. Vendo minha vontade de melhorar, ela decidiu treinar comigo. Começou assim nossa amizade de 43 anos, dentro e fora das quadras. Uma amizade que fortaleceu minha formação e ajudou a moldar minha visão do mundo empresarial. No fim do dia, alta performance é alta performance, seja na quadra, seja na empresa. Compartilho algumas das lições que aprendi com a Rainha porque acredito nas afinidades entre esses dois mundos — o dos negócios e o dos esportes de alto rendimento, no qual brilhou Maria Esther.
1. Talento sozinho não leva ninguém muito longe. Maria Esther era uma tenista maravilhosamente talentosa, mas não se acomodava nesse status privilegiado: trabalhava duro para maximizar o dom que era só dela. Treinava todos os dias, muitas horas por dia, com chuva ou sol. Vejo muitos jovens executivos e esportistas cujo talento é desperdiçado porque não estão dispostos a pagar o preço de cultivá-lo. Maria Esther me ensinou que talento sem trabalho árduo não leva a lugar nenhum.
2. Somos responsáveis por nosso aprendizado. Em sua obsessão por treinar, Maria Esther saiu de casa cedo, aos 14 anos, e mudou-se para a Europa somente com a passagem de ida. Sabia que, se ficasse no Brasil, não teria oportunidades. Foi sozinha, sem pai, sem mãe e sem staff — coisa que outras atletas de sua geração, de outras nacionalidades, já tinham. Certa vez, o técnico australiano Harry Hopman se ofereceu para treiná-la. Durou uma semana: Maria Esther entendeu rapidamente que lhe bastavam seu foco e sua genialidade. Enquanto todo mundo apregoa a necessidade de coaches, mentores e afins, ela me mostrou que não vale a pena entregar nossa educação e nossa carreira aos outros. Cabe a cada um assumir a responsabilidade pelo próprio desenvolvimento.
3. “Desculpability” é para os fracos. Adoro a palavra “desculpability”, título do livro de um amigo, João Cordeiro. João escreve sobre nossa tendência a encontrar desculpas para justificar todas as nossas fraquezas. Maria Esther não conhecia a desculpability. Enquanto jogava tênis, passou por 22 cirurgias para corrigir lesões nos braços, ombros, ligamentos. Nunca pensou em desistir. Era o preço a ser pago, e ela pagava. Li em um site da Inglaterra que a tenista “ignorou o destino que lhe foi prescrito e assumiu o comando de sua carreira vitoriosa”.
4. A obsessão pela vitória faz bem. Quando jogava nos Grand Slams, Maria Esther competia em três categorias: simples, duplas e duplas mistas. Chegou a jogar 120 games num único dia, com raquete de madeira, muito mais pesada do que as de hoje, e acertando uma bola que se movimentava mais lentamente. Não chegou a levar o título nas três num único torneio. “Uma vez, em Wimbledon, ganhei simples, ganhei dupla feminina, fui para a final de dupla mista, mas meu parceiro fez dupla falta no match point”, disse-me em certa ocasião. Quando perguntei a ela se preferiria ter jogado em uma só categoria, como os atletas de hoje, me respondeu: “Eu jogaria tudo de novo”. Em tempo: quando foi a melhor do mundo, os jogadores não recebiam os prêmios milionários de hoje. Depois de uma vitória em Wimbledon, o prêmio foi um voucher para comprar um traje esportivo na loja do torneio. Seu objetivo era a vitória, o troféu, entrar para a história.
5. Sempre é possível inovar. Maria Esther foi uma jogadora inovadora em pelo menos dois aspectos. Primeiro, na tática. Enquanto todas as outras jogavam no fundo da quadra (e até hoje é assim: poucas vêm para a rede, preferindo mandar pauladas da linha de fundo), ela aprendeu a jogar na rede. Seus voleios ficaram famosos e inspiraram as jogadoras Billie Jean King e Martina Navratilova. Segundo, ao levar a moda para as quadras. Seus vestidos mais elegantes foram desenhados pelo estilista Ted Tinling, abrindo caminho para os trajes fashion de estrelas como Serena Williams e Maria Sharapova.
6. Boa comunicação é coisa séria. Com outros atletas, Maria Esther tinha uma comunicação fácil, fluida, baseada em frases curtas e ideias fortes. Quando me via meio estático em quadra, totalmente concentrado, ela dizia: “Happy feet, parceirinho (ela me chamava assim), happy feet!” “Pés felizes” era a senha para que eu me movimentasse mais, e a frase marcou minha trajetória como empresário, instigando-me a ficar atento, focado em situações de tensão. Da mesma forma, quando eu jogava uma sequência de bolas curtas, fáceis de rebater, ela me repreendia: “Bola chata, parceirinho!” — exigindo que eu a desafiasse com bolas longas, que a colocassem para trás. “Bola chata” ficou para mim como uma maneira eficaz de lidar com a concorrência.
7. Valores não são negociáveis. Para Maria Esther, a lealdade à família e aos amigos vinha em primeiro lugar. Em 2012, quando seu irmão, Pedro Bueno, adoeceu com Alzheimer, ela era contratada pela Federação Internacional de Tênis para dar clínicas e palestras pelo mundo. Maria Esther cancelou tudo para acompanhar o tratamento dele e ficou a seu lado até o fim. Em 2014, quando se celebravam os 50 anos de sua vitória em Wimbledon e no US Open, propus a ela que lhe prestássemos uma homenagem em minha casa. Discreta, ela relutou, mas acabou cedendo à ideia, com uma condição: “Parceirinho, eu convido”. De fato, convidou oito amigos, todos homens, tenistas com quem dividia quadras havia décadas. Descartou minha sugestão de chamar imprensa e celebridades, fazendo valer seu conhecido “ego zero” — bem diferente de tantos executivos e empresários hoje.
A morte de Maria Esther foi uma perda pessoal. Convivi com ela, aprendi com ela, me emociono quando entro no Harmonia e penso que ela não virá. Como Peter Drucker, com quem também tive a honra de conviver, era uma pessoa iluminada. Como Drucker, poderia ter tido uma vida glamourosa, mas optou por uma rotina pacata, focada no trabalho duro e na busca pela vitória e pela excelência. Naquele jantar em 2014, combinamos que cada um dos amigos faria um pequeno relato de como Maria Esther tinha influenciado sua vida. Ela ouviu tudo, levemente surpresa, e ao final disse: “Nossa, eu não tinha ideia do que tinha feito por vocês. Para mim, eu estava apenas jogando tênis”.
José Salibi Neto é consultor e coautor do livro Gestão do Amanhã (Editora Gente)