Porto de Singapura: pelos cálculos do Banco Mundial, o aumento das incertezas já está afetando as trocas comerciais (Justin Guariglia/Latinstock)
Eduardo Salgado
Publicado em 15 de março de 2017 às 05h55.
Última atualização em 15 de março de 2017 às 09h53.
São Paulo — Sob a nova administração de Donald Trump, os Estados Unidos estão adotando uma política comercial que parecia impossível para um país que por várias décadas havia liderado a campanha pela liberalização dos mercados com fervor quase religioso. Três dias após a posse, Trump acabou com a participação americana na Parceria Transpacífica, aquele que seria o maior acordo comercial da história, uma área de livre comércio entre países da orla do Pacífico mais conhecida pela sigla em inglês TPP.
A TPP foi talvez o maior feito comercial de seu antecessor, Barack Obama — e foi embora numa canetada de Trump. Ainda mais preocupante é a possibilidade de os Estados Unidos começarem a esvaziar a Organização Mundial do Comércio (OMC), uma espécie de xerife do comércio entre mais de uma centena de países. Um relatório do governo Trump vazado pela imprensa no começo de março defende que o governo americano não seja obrigado a obedecer as decisões da instituição internacional. Se isso vier mesmo a prevalecer, por que os demais países aceitariam continuar seguindo as regras?
Desde que foi criada, em 1995, tendo os Estados Unidos à frente, a OMC conseguiu criar uma ordem inédita. Graças a ela, não tivemos nesses anos guerras comerciais abertas, tão comuns no passado. Quando um país se sente prejudicado por uma prática desleal, em vez de retaliar à revelia, apresenta uma queixa e espera a decisão de um painel de especialistas. Nos últimos 22 anos, 500 reclamações foram feitas e mais de 350 decisões foram anunciadas. A pequenina Taiwan já ganhou uma disputa contra a União Europeia sobre tarifas de produtos de TI. A Guatemala reclamou de seu grande vizinho do norte, o México, numa questão envolvendo tubos de aço. Venceu. O Brasil conseguiu combater subsídios americanos na produção de algodão.
É esse sistema que agora está em risco. “Se um país com a importância e o peso dos Estados Unidos não respeitar as regras que regem as disputas comerciais, o resultado será gravíssimo”, diz Roberto Abdenur, ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos, na Alemanha e na China. É verdade que a OMC, liderada pelo brasileiro Roberto Azevêdo, falhou em uma de suas metas, a de promover uma negociação ampla entre seus membros para reduzir as barreiras ao comércio. A última rodada, iniciada em Doha em 2001, não chegou a lugar nenhum. Mas isso seria motivo para dobrar a aposta na instituição — não jogá-la no limbo.
Basta olhar o resultado de uma pesquisa feita no ano passado pelos economistas Nuno Limões, da Universidade de Maryland, e Kyle Handley, da Universidade de Michigan. A China entrou na OMC no começo da década passada. Em cinco anos, suas exportações para os Estados Unidos saíram de 100 bilhões de dólares para 243 bilhões. Nesse período, as tarifas para a entrada no mercado americano não mudaram. Como mostra o estudo, cerca de 30% do aumento das vendas foi provocado pela diminuição das incertezas.
Sabendo que a chance de uma guerra comercial entre os dois países tinha caído, as empresas se sentiram mais confiantes para investir. “O discurso do presidente Trump contra a OMC e sua decisão de sair da TPP certamente estão tendo efeitos negativos no planejamento das empresas, nas suas decisões de investimento e nas trocas comerciais”, diz Limões, um dos autores da pesquisa.
Os estragos da nova política americana já estão sendo sentidos. Um relatório do Banco Mundial divulgado em fevereiro faz um resumo do que está acontecendo no comércio mundial. O ritmo de crescimento das trocas vem caindo há anos por questões que incluem um número menor de acordos de livre comércio e a desaceleração da economia mundial. Mas 2016 foi um ano particularmente ruim. Segundo estimativas do Banco Mundial, o comércio cresceu cerca de 2% no ano passado, o pior desempenho desde 2008. O fator determinante foi o aumento das incertezas: só a possibilidade de vitória de Trump e a saída do Reino Unido da União Europeia já haviam feito seu estrago.
Existe quase um consenso entre os economistas de que o rápido crescimento econômico registrado no mundo entre meados da década de 80 e a crise internacional de 2008 foi causado, em grande parte, pelo aumento das trocas de produtos e serviços entre os países. O comércio internacional permite que cada economia se especialize naquelas áreas nas quais tem uma vantagem comparativa e acabe se beneficiando com ganhos de escala, avanços tecnológicos e aumento da produtividade.
A soja no Brasil é um bom exemplo de tudo isso. O problema é que a globalização também deixa perdedores pelo caminho. Nos Estados Unidos, eles ajudaram a eleger Trump e o novo presidente resolveu apontar a mira para o comércio. Quando a maior potência mundial dá uma volta de 180 graus num tema tão vital, todo mundo reage.
Representantes de Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Singapura e Viet-nã vão se encontrar nos dias 14 e 15 de março em Viña del Mar, perto da capital chilena, para discutir o futuro da TPP. No encontro, o tema central será o que fazer agora que os americanos saíram. Até o momento há duas posições. Para Malcolm Turnbull, primeiro-ministro da Austrália, o melhor a fazer é manter a TPP viva.
“Possivelmente, a TPP ainda poderia ser benéfica para a economia australiana”, diz Marina Tsirbas, conselheira executiva do National Security College, instituição de ensino da Austrália voltada para temas de segurança nacional. Turnbull também tenta atrair a China e a Indonésia para o grupo — representantes chineses foram convidados para ir a Viña del Mar. Xi Jinping, presidente da comunista China, não tem perdido a oportunidade de posar como o novo defensor da globalização, mais um exemplo de como o mundo mudou. Mas nem todo mundo concorda em abrir espaço para a China.
Na opinião dos japoneses, a investida para tentar salvar a TPP não faz muito sentido, já que a maior atração do acordo era o acesso ao mercado americano. Os japoneses, por sinal, estudam um novo acordo apenas com os Estados Unidos. Caso seja confirmada a desistência do Japão, outros países devem sair ou criar uma versão menos ambiciosa da TPP. “Durante a negociação do acordo, várias concessões foram feitas em muitas áreas, como a de propriedade intelectual, por causa da pressão americana. Sem os Estados Unidos, é muito provável que tudo isso seja revisto”, afirma Jaime Zabludovsky, presidente executivo do Conselho Mexicano da Indústria dos Produtos de Consumo.
Do ponto de vista dos mexicanos, a TPP é o menor dos problemas. Por pressão de Trump, já começaram as conversas preliminares para a renegociação do Nafta, acordo de livre comércio da América do Norte. Ainda não há detalhes sobre quais são as demandas americanas. Mas o grau de incerteza é tão alto que uma saída dos Estados Unidos, embora improvável, não está descartada. Tendo em mente as possíveis consequências da nova política comercial americana, muitos se perguntam se Trump irá mesmo em frente com sua agenda protecionista. Mas, apesar dos protestos dentro e fora dos Estados Unidos, ele não parece disposto a mudar de ideia.
É nesse contexto que o Brasil parece acordar depois de anos sem buscar acordos comerciais longe de suas fronteiras. Pelo menos no discurso, a posição do Itamaraty mudou desde a posse de Michel Temer. A chance de uma abertura maior da economia brasileira parece ter aumentado. É isso o que dizia José Serra quando estava à frente do Ministério das Relações Exteriores, e é também a linha de seu sucessor, Aloysio Nunes.
“Ainda que tardiamente, é hora de o Brasil adotar uma política comercial agressiva para fechar negociações em andamento, como a do Mercosul com a União Europeia, e abrir novas com países da América do Norte e da Ásia”, diz o ex-embaixador Abdenur. Os americanos ainda não sabem a fria em que estão se metendo, mas os brasileiros conhecem bem o atraso que o protecionismo comercial provoca, com seus produtos de pior qualidade, preços altos e falta de inovação.