Revista Exame

Ônibus elétricos avançam no Brasil e poderão somar R$ 300 bilhões no PIB, mas enfrentam obstáculos

Ônibus elétricos têm avanço inédito no Brasil, passo importante para o país cumprir metas climáticas. Mas a realidade se impõe e desafia a transição energética

Ônibus elétricos em São Paulo: falta de conexão de energia nas garagens tem atrasado a transição (Divulgação/Divulgação)

Ônibus elétricos em São Paulo: falta de conexão de energia nas garagens tem atrasado a transição (Divulgação/Divulgação)

Publicado em 24 de abril de 2025 às 06h00.

O Brasil tem uma meta ousada até 2050: acabar com as emissões de carbono no transporte do país. Grande parte desse esforço virá da eletrificação dos mais de 100.000 ônibus urbanos que transportam diariamente milhões de pessoas. A boa notícia é que, desde 2020, o país quase quintuplicou o número de coletivos elétricos — e uma indústria nascente se prepara para fornecer para o país e para exportar.

Ao mesmo tempo, o setor se deu conta de que será mais difícil do que o esperado eletrificar a frota de ônibus, em um exemplo claro dos obstáculos da transição energética. Se der certo, haverá muitos ganhos. Além das óbvias vantagens de manter as cidades mais limpas e com menos ruído, a troca poderá gerar um incremento de 300 bilhões de reais à economia e mais de 500.000 empregos até 2050, segundo estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

“O objetivo é alcançar uma frota 100% limpa. O governo está comprometido com a descarbonização e a melhoria do transporte público”, diz à EXAME o ministro das Cidades, Jader Filho. “Várias prefeituras avançaram com a implementação de ônibus elétricos. Não será fácil, mas o governo está determinado a dar os passos para um transporte público mais sustentável e moderno.”

São Paulo ilustra perfeitamente o desafio. Se o número de coletivos elétricos subiu de 220 para os atuais 1.017, segundo dados da plataforma E-Bus Radar, foi por causa da capital paulista. A prefeitura paulistana acelerou as compras e tem atualmente 728 unidades, com planos de chegar a 2.600 nos próximos anos — 20% da frota. São Paulo tem ajudado a resolver um entrave que circulava como anedota no setor: o elétrico era caro porque tinha pouca demanda, e tinha pouca demanda porque era caro. O plano da cidade é zerar as emissões de poluentes do transporte até 2038, com ajuda da eletrificação. “Cada um desses ônibus representa a não utilização de 35.000 litros de óleo diesel por ano”, diz o prefeito Ricardo Nunes (MDB).

No modelo paulistano, a prefeitura paga dois terços do custo dos novos veí­culos, e as empresas pagam o terço restante, que equivale ao preço de um modelo comum a diesel. A ideia parece boa. Mas as viações logo entenderam que não bastava fechar a compra. Era preciso olhar para todas as pontas: ter fabricantes capazes de entregar os veículos rapidamente, treinar equipes de manutenção e motoristas — e até rever os indicadores de avaliação de rendimento.

“É como se o padeiro que fez pão a vida inteira com trigo tivesse de usar outro produto. A gente era muito acostumado com diesel”, diz Manoel Marinho, diretor de novos negócios da MobiBrasil. A empresa, que atua na zona sul de São Paulo, comprou 50 ônibus elétricos desde o ano passado, investiu 6 milhões de reais em carregadores e na parte elétrica, mas teve de esperar para colocá-los para rodar, por falta de energia. A concessionária Enel levou meses para instalar uma linha de média tensão até a garagem.

A situação tornou-se um cabo de guerra: Nunes e as viações reclamam da demora da Enel, e a empresa diz que questões técnicas dificultam a empreitada. Segundo a concessionária, há desafios na adaptação da rede para garantir o fornecimento eficiente às operadoras de transporte sem impactar os demais clientes alimentados pelo mesmo sistema. Ou seja: sem rede adequada, uma garagem que puxasse muita energia poderia gerar um apagão na vizinhança. A empresa diz que fez 21 ligações elétricas para garagens de 2024 a abril de 2025, que permitiram o carregamento dos ônibus elétricos. A promessa é que outras 14 garagens sejam atendidas até o fim do ano.

“São Paulo apresenta desafios maiores por causa da densidade populacional e da concentração de carga elétrica, o que exige planejamento mais elaborado e obras de maior porte”, diz Ricardo Brandão, diretor-executivo de regulação da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee). Para Brandão, o caso paulistano não deve se repetir em cidades menores, pela baixa concentração de carga elétrica necessária.

Depois que a energia é ligada, as garagens passam a aprender como lidar com esse novo “trigo”. Um tanque cheio de diesel costuma garantir até dois dias de operação. Com os elétricos, a matemática é nova. A autonomia dos modelos atuais é de 200 quilômetros, suficiente para operar em boa parte das linhas paulistanas por um dia todo. Contudo, a recarga é mais demorada e leva em média 3 horas por veículo. Uma alternativa, que será adotada por cidades como Curitiba e Salvador, é colocar pontos de recarga pelo caminho, como em terminais, o que reduz a necessidade de redes de energia nas garagens e deixa uma carga extra à mão se for necessário.

Ganho econômico com os elétricos

As dificuldades de São Paulo mostram um desafio, e também uma oportunidade: para dar certo, a eletrificação da frota exige planejamento, infraestrutura e pelo menos 390 bilhões de reais, segundo a Cepal. Parece muito, mas, até 2050, custaria 0,2% do produto interno bruto (PIB) por ano. Nas contas da Cepal, o efeito multiplicador da cadeia de ônibus elétricos é alto: cada emprego gerado diretamente levaria a 21 novos empregos indiretos, e cada 1 real de renda se multiplicaria para 5,96 reais na economia. Em um cenário otimista de alta demanda estatal e consolidação de uma cadeia produtiva nacional de ônibus elétricos, com 20% no índice de importação de componentes e exportação para a América Latina, o incremento acumulado no PIB seria de 301 bilhões de reais até 2050, com 561.000 empregos diretos e indiretos gerados no processo.

O avanço da tecnologia e do interesse das cidades tem fomentado a criação de um ecossistema de empresas que fornecem veículos, carregadores e sistemas de gestão, com nomes tradicionais da área, gigantes estrangeiros e startups, todos de olho nesse mercado bilionário. Na prática, os governos estão assumindo a conta da transição, que começa pelo alto custo dos novos coletivos. Enquanto um modelo a diesel, do tipo padron (13,25 metros), custa ao redor de 1 milhão de reais a unidade, um elétrico pode chegar a 3,5 milhões de reais — sem contar a infraestrutura de carregamento.

Além do custo da tecnologia, a carroceria precisa ser reforçada para aguentar o peso das baterias. Para pagar a conta, a prefeitura de São Paulo, por exemplo, fez financiamento com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Caixa e Banco do Brasil. Nacionalmente, o governo federal criou o programa Refrota, que destinará 6 bilhões de reais para comprar 2.296 ônibus elétricos. Alguns casos tiveram avanços nos últimos meses. Salvador, por exemplo, inaugurou um eletroterminal, capaz de carregar até 20 coletivos ao mesmo tempo. O plano é ter 100 ônibus elétricos em operação nos próximos meses e uma frota 100% movida a energia limpa até 2049. A prefeitura local negocia um financiamento adicional direto com o Banco Mundial para acelerar a troca.

A cidade de São José dos Campos, no interior de São Paulo, planeja ter 100% da frota elétrica e adotou um modelo de contratação diferente. Em março, a prefeitura fez uma licitação para alugar 400 ônibus elétricos, que serão usados no transporte da cidade. Os veículos começarão a ser entregues em setembro. A operação deles será feita por outras empresas, a exemplo do Chile (leia mais abaixo). Francisco Christovam, presidente da NTU, entidade nacional das empresas de transportes urbanos, defende um planejamento federal mais detalhado da transição e que pontos como a criação de faixas exclusivas para elétricos sejam considerados. “Vamos colocar para rodar um ônibus que custa uma fábula de dinheiro”, diz. “Ele vai ficar preso no congestionamento?”

Manoel Marinho, diretor da viação MobiBrasil: “O ônibus elétrico veio para ficar” (Germano Lüders/Exame)

Do lado das fabricantes, há expectativas e novos competidores. A empresa nacional Eletra, que, além de montadora, opera linhas no ABC Paulista, tem mais de 600 veículos elétricos em circulação no Brasil. A CEO Milena Romano afirma que o setor já tem capacidade de produzir mais de 9.000 unidades por ano, com projeção de aumentar esse número para 25.000 até 2028. Só a Eletra tem espaço para produzir 3.000 unidades anual­mente. “A indústria precisa de estímulos para crescer, e o Brasil deve aproveitar essa oportunidade para se tornar um polo de produção”, diz.

A chinesa BYD, no país desde 2015, tem hoje 90 unidades em circulação e projeta vender entre 2.000 e 4.000 veículos por ano. “Com o aumento do volume, podemos diminuir o custo de produção e o preço”, afirma Marcello Schneider, diretor da BYD no Brasil.

A Volkswagen, que lançará seu modelo em 2025, está um passo atrás das concorrentes, mas Ricardo Alouche, vice-presidente de vendas da marca, acredita que “o ônibus elétrico chegou para ficar”.

Para fechar negócios, as montadoras tradicionais apostam nas relações de décadas com os operadores, enquanto as novas dão descontos para ganhar espaço no mercado. Outras táticas incluem oferecer treinamentos para os mecânicos das garagens e, no primeiro ano de operação, assumir 100% da manutenção.

Os elétricos têm menos peças do que os veículos a diesel, o que facilita o trabalho e reduz custos. Há modelos em que os motores podem ser retirados facilmente para conserto. Assim, a peça com defeito pode ser colocada em uma mesa e consertada, enquanto o coletivo não fica parado e roda com uma parte reserva. “Costumo comparar com o motor da geladeira. Quantas vezes você já trocou o motor da sua? Praticamente nunca”, diz Marcel Martin, diretor-geral do Conselho Internacional de Transporte Limpo (ICCT).

O avanço da tecnologia tem barateado o custo, mas surgiu um alerta: o preço final dos elétricos não deverá baixar nos próximos anos, pois as empresas estão vendendo os modelos atuais com margens estreitas, para ganhar mercado, e podem querer compensar as perdas. Os tempos de recarga deverão diminuir, tanto pelo avanço dos carregadores quanto das baterias.

“Elas são como salas de cinema: se forem bem organizadas, a energia entra nelas e encontra lugares para ficar de forma mais rápida. Não adianta colocar muita energia de uma vez se a bateria não a recebe direito”, diz Thiago Castilha, diretor de marketing da E-Wolf, que vende carregadores. O grupo planeja faturar 250 milhões de reais neste ano, ante 200 milhões em 2024.

Apesar do entusiasmo, os executivos ressaltam que são necessários mais investimentos em infraestrutura e planejamento público. Embora o número de ônibus elétricos tenha crescido, estamos longe de países líderes. Por aqui, há 0,48 ônibus elétrico por 100.000 habitantes, enquanto essa proporção é de 39,3 na China e 13,5 no vizinho Chile (veja o case no box ao lado).

Os empresários e governantes afirmam que a demanda da sociedade por mudanças para conter a crise climática é forte, a tecnologia está mais madura e os elétricos, ao longo de todo o tempo de operação, se provarão uma opção bem mais econômica que o diesel. O desafio vai requerer alinhamento e compromisso entre governos, órgãos de desenvolvimento e o setor produtivo. Com tudo alinhado, é uma oportunidade e tanto para a economia nacional. Do tipo que polui menos, é silenciosa e pode ativar a indústria nacional.


Exemplo latino

Em sete anos, Santiago adotou a maior frota de ônibus elétricos da América Latina, e a expansão continua em ritmo forte

Veículo elétrico em Santiago: o Chile lidera adoção de ônibus elétricos na América Latina (Claudio Reyes/AFP/Getty Images)

Um grande exemplo do avanço dos ônibus elétricos vem de Santiago, no Chile. O país tem hoje a maior frota da América Latina, com 2.729 unidades. Mais 1.000 estão previstas até o fim de 2025. Com isso, 60% dos coletivos na capital chilena serão movidos a eletricidade.

O projeto chileno começou em 2017, depois que o governo nacional colocou a troca de frota como uma prioridade. A estratégia previu um modelo com várias etapas e garantias. Assim, adotou-se uma nova forma de pagamento pelos serviços, em que uma empresa é paga pelo governo para fornecer os ônibus e outra é contratada para operá-los, em contratos separados. Isso dilui os custos e reduz os riscos.

“Se mudarem os operadores, os ônibus são mantidos. E o governo do Chile, por meio do Ministério do Transporte, participa para dar as garantias de pagamento”, disse Paola Tapia, diretora de Transportes de Santiago, à EXAME, durante uma visita a São Paulo. Ela explicou que a transição foi centrada em três pontos: adoção gradual, regras sólidas e eficientes — mas com espaço para flexibilizar modelos — e busca de parcerias com empresas.

A grande diferença entre o modelo brasileiro está na competência. Enquanto aqui o controle é municipal, no Chile é o governo central que organiza toda a implementação. “Além disso, o modelo de negócios foi bem definido, o que evita disputas sobre quem deve pagar o quê. No Brasil, a responsabilidade pela infraestrutura e pelas mudanças nas frotas está muito mais fragmentada, o que cria dificuldades”, diz Roberto Marx, coordenador do Laboratório de Estratégias para a Indústria da Mobilidade (MobiLab).

No Chile, a autonomia dos ônibus foi uma questão a ser vencida. O governo determinou níveis mínimos, para guiar a produção das fabricantes e garantir que os veículos dessem conta da operação diária. O ministério também investiu em espalhar carregadores pela cidade, para que os ônibus possam fazer recargas durante o dia, ao parar nos terminais. Além disso, as garagens possuem um sistema de recarga móvel, que facilita a conexão dos coletivos com os pontos de energia. O tamanho dos veículos elétricos foi aumentando e, desde 2023, há inclusive modelos de dois andares. Parte da frota usa carrocerias feitas no Brasil. 

Nesse processo, o governo buscou ainda estimular o setor industrial e tecnológico do país. Uma das startups, a Reborn, passou a fabricar micro-ônibus e ônibus de tamanho médio em parceria com a brasileira Marcopolo. Os modelos foram preparados para atender terrenos irregulares e com subidas pronunciadas, algo frequente nas minas do Chile, assim como em boa parte das cidades da América Latina. 

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