Revista Exame

A urna é a caixa de correio

Criticado por Trump, o voto à distância é um ingrediente a mais para tornar a eleição americana deste ano uma das mais conturbadas da história

 (The New York Times/Fotoarena/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 27 de agosto de 2020 às 05h22.

Última atualização em 31 de agosto de 2020 às 06h42.

A pandemia de covid-19 não é só o tema mais urgente da campanha presidencial americana — ela também vai afetar diretamente como votarão dezenas de milhões de eleitores. A modalidade do voto pelo correio, há muitos anos usada por pessoas que não podem comparecer às urnas no dia da eleição, deve ter adesão recorde neste ano. Os especialistas apontam as décadas de experiência como garantia de que o sistema é seguro. O presidente Donald Trump fala em “desastre catastrófico”, “fraudes maciças”, um flanco para a interferência de outros países na democracia americana. No final de julho, ele chegou a aventar um adiamento da eleição, ideia imediatamente condenada até mesmo por seus mais ferrenhos apoiadores.

Apesar das reclamações insistentes de Trump, estima-se que até 80 milhões de americanos depositem suas cédulas na caixa de correio, e não na urna. É praticamente certo que o vencedor não seja anunciado na noite de 3 de novembro, pois os votos continuarão chegando dias depois da eleição. Mas esperar um pouco mais pelo resultado pode ser fichinha perto da possibilidade de uma reprise da recontagem dos votos da Flórida, há 20 anos. Das acusações de que os correios estão sendo manipulados para atrapalhar a votação à distância a eventuais disputas jurídicas durante a apuração, a eleição, que já era considerada uma das mais importantes da história do país, também tem todos os ingredientes para ser uma das mais conturbadas.

Em grande parte, as incertezas têm origem nas declarações de Trump. Quando ficou claro que a pandemia não estaria sob controle em alguns poucos meses, o presidente americano começou a levantar suspeitas sobre o voto pelo correio — embora ele próprio seja adepto da modalidade. Na recente primária da Flórida, seu domicílio eleitoral, ele votou à distância. Trump tenta fazer uma distinção entre o voto “ausente” (seu caso, pois ele estava em Washington) e o voto pelo correio “universal”, quando todos os eleitores recebem as cédulas pelo correio. Com exceção da requisição das cédulas no caso dos eleitores que não poderão comparecer às seções eleitorais pessoalmente, porém, os dois sistemas são idênticos: o voto é preenchido, postado, verificado e contado.

Carteiro separa correspondência para entrega (Andrew Harrer/Bloomberg/Getty Images)

 

Fila de votação em 2016: como a eleição nos Estados Unidos acontece sempre numa terça-feira, uma das vantagens da votação à distância é garantir maior participação dos cidadãos, já que muitos americanos deixam de votar porque precisam trabalhar nesse dia (Don Emmert/AFP)

Trump chamou os correios de “uma piada” — apesar de a estatal ser a agência governamental mais bem avaliada pelos americanos — e disse ser contra o envio de recursos extras para que os estados deem conta da votação durante a pandemia. As dúvidas levantadas por ele em relação à integridade do voto à distância são consideradas pouco razoá-veis pelos especialistas. “Não existem elementos para afirmar que a votação pelo correio é menos segura”, diz John Fortier, um dos diretores do centro de estudos Bipartisan Policy Center e autor de um livro sobre essa modalidade de votação. “Existem problemas pontuais, mas o risco de fraude maciça é muito pequeno.” É uma questão prática: para adulterar votos em quantidades significativas seria necessário interceptá-los, alterá-los e de alguma maneira garantir que eles passassem pela conferência feita no processo de apuração.

Ainda assim, o tamanho da empreitada pode dar margem a problemas operacionais. Estima-se que 40 milhões de americanos tenham votado pelo correio em 2016. Neste ano, o número deverá dobrar (ao todo, cerca de 200 milhões têm esse direito). Em abril, nas primárias realizadas no estado de Wisconsin, pelo menos 9.000 eleitores pediram, mas nunca receberam as cédulas em casa. Numa eleição especial inteiramente conduzida pelo correio em Nova Jersey no mês de maio, cerca de 10% dos votos recebidos foram considerados inválidos, segundo um levantamento do site NJSpotlight. Os principais motivos alegados foram assinaturas que não batiam com os registros e atrasos no recebimento das cédulas.

(Arte/Exame)

As regras da eleição cabem a cada estado. Alguns, como Oregon, no noroeste do país, já adotaram o voto pelo correio como padrão para todas as eleições há alguns anos. Outros, como Califórnia, fizeram mudanças temporárias para evitar filas e aglomerações nas seções eleitorais por causa da crise de covid-19, e também porque os funcionários das seções muitas vezes são idosos que fazem trabalho voluntário e devem evitar situações de risco de contágio. Nesses casos, todos os eleitores receberão as cédulas pelo correio com semanas de antecedência. Na Califórnia, elas serão consideradas válidas caso sejam enviadas (e carimbadas) até o próprio dia da eleição e cheguem ao destino até 17 dias depois.

A politização dos correios

A questão do prazo é fundamental — e transformou os correios num foco improvável de polarização política. Quase metade dos eleitores do democrata Joe Biden afirmou que vai votar à distância, segundo uma pesquisa recente do Wall Street Journal e da NBC News. Entre os que querem a reeleição de Trump, o percentual é muito menor: apenas 11%. Quanto à lisura da contagem dos votos enviados pelos correios, a diferença é igualmente marcante: 65% dos democratas confiam na apuração desses votos, ante apenas 23% dos republicanos.

O diretor dos correios, Louis DeJoy, assumiu o cargo em maio com o objetivo de sanear as contas da estatal, que acumula prejuízo de 78 bilhões de dólares desde 2007. DeJoy, doador da campanha de Trump e sem experiência prévia nos correios (ele fez carreira no setor de logística), deu início a uma política agressiva de cortes de custos para interromper o sangramento. Horas extras foram proibidas, caixas de correio e máquinas de triagem foram retiradas de operação e caminhões passaram a cumprir horários de forma rigorosa, mesmo que ainda não estivessem carregados com toda a correspondência do dia.

(Arte/Exame)

Os democratas protestaram imediatamente, afirmando que o objetivo das medidas era dificultar — se não impedir — o voto de milhões de americanos. Relatos de diversas partes do país dão conta da demora de até uma semana na entrega da correspondência. Uma análise do site APM Reports publicada em meados de agosto indicou que o atraso foi particularmente sentido em cidades como Filadélfia, Detroit e Milwaukee. As três ficam em estados fiéis da balança no colégio eleitoral (Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, respectivamente) e foram essenciais na vitória de Trump em 2016. “Em minha experiência estudando as eleições, esta é a primeira vez que existem preocupações genuínas com uma manipulação subversiva dos correios”, afirmou Edward Foley, da Universidade Ohio State. “Não preste atenção no que o presidente diz. É tudo pensado para suprimir votos”, afirmou Nancy Pelosi, democrata que preside a Câmara.

A reclamação sobre o timing levou DeJoy a suspender os cortes até depois da votação. Convocado a depor diante de uma comissão no Senado, ele chamou de “ultrajantes” as suspeitas de tentativa de interferência na eleição, afirmou não ter discutido o assunto com Trump e disse que os correios têm plenas condições de lidar com o volume extra da eleição de novembro. Apesar das garantias oferecidas, os democratas aprovaram na Câmara um pacote de ajuda emergencial de 25 bilhões de dólares aos correios. O projeto de lei inclui uma determinação de que toda correspondência relacionada à eleição tenha prioridade.

Joe Biden e sua vice, Kamala Harris, durante a convenção partidária em 20 de agosto: segundo uma pesquisa, quase metade dos eleitores dos democratas pretende votar à distância neste ano (Stefani Reynolds/Bloomberg/Getty Images)

A legislação não deve passar no Senado, controlado pelos republicanos. “É mais uma FARSA dos democratas”, afirmou o presidente no Twitter. Mas os próprios apoiadores do presidente estão incentivando o “voto seguro” em tempos de pandemia, como diz o site do partido na Pensilvânia. Em Iowa, também controlado pelos republicanos, os eleitores já estão recebendo as cédulas para voto ausente, mesmo sem solicitá-las. Em Ohio, um estado-chave na disputa do colégio eleitoral, o Partido Republicano enviou uma correspondência pedindo aos eleitores que “se juntem ao presidente Trump” e votem à distância.

Steve Hutkins, professor na Universidade de Nova York e administrador de um site contrário à privatização dos correio, descreve um possível cenário para novembro. “Trump vai declarar vitória antecipada nos estados fiéis da balança, antes que todos os votos sejam contados”, afirma Hutkins. “E então vai enviar um exército de advogados para contestar os votos que chegarem depois da eleição. Será a recontagem dos votos da Flórida anabolizada.” Há 20 anos, quando o republicano George W. Bush foi eleito para seu primeiro mandato, parte dos votos do estado teve de ser recontada manualmente, o que levou a uma série de ações judiciais e acabou na Suprema Corte. Bush foi declarado vencedor na Flórida — e portanto no colégio eleitoral — mais de um mês depois do dia da eleição.

Recontagem de votos na Flórida, em 2000: parte das cédulas no estado teve de ser revista manualmente na eleição daquele ano, o que levou a uma série de ações judiciais e acabou na Suprema Corte (Rhona Wise/AFP)

No início de agosto, quase um mês e meio depois da votação, a Justiça determinou que cerca de 1.000 votos entregues com atraso fossem incluídos na contagem da primária democrata de Nova York. O resultado final não foi afetado, mas o episódio indica o tipo de pendenga jurídica que pode ser vista no país dentro de alguns meses. O fato de milhões de americanos estarem votando pela primeira vez de casa também traz o risco de cédulas invalidadas por motivos técnicos, como erros de preenchimento e problemas com assinaturas.

Existe a crença enraizada na política americana de que maiores taxas de comparecimento tendem a favorecer os candidatos democratas. A estimativa é que cerca de 100 milhões de pessoas, o correspondente a aproximadamente 40% da população que tem o direito de votar, simplesmente não se deem ao trabalho de participar das eleições. O próprio Trump afirmou neste ano que, se as taxas de abstenção fossem muito reduzidas, “você nunca mais teria um republicano eleito no país”.

Mas os estudos realizados em estados que já contam com grande proporção de votos à distância não sustentam essa afirmação. Uma análise das eleições realizadas entre 1996 e 2018 por quatro acadêmicos da Universidade Stanford indica que o voto pelo correio traz consigo uma pequena redução na abstenção — mas nenhuma vantagem para um ou outro partido. Se o voto à distância é uma alternativa a mais para os jovens, que tendem a votar no candidato democrata, o mesmo pode ser dito para os eleitores idosos, que costumam dar preferência ao candidato republicano.

Donald Trump: o candidato republicano vem falando sobre os riscos de fraude no voto pelo correio, mas muitos seguidores do presidente defendem o voto à distância por ser mais seguro em tempos de pandemia (Mandel Ngan/AFP)

Mais recentemente, o voto à distância vem ganhando importância por causa da conveniência. Além de escolher os candidatos do Executivo e do Legislativo, muitos estados aproveitam a eleição para incluir diversos referendos, o que leva à demora no preenchimento das cédulas. E, por uma tradição estabelecida numa lei de 1845, as eleições sempre acontecem numa terça-feira: muita gente deixa de votar porque não pode se ausentar do trabalho ou por motivos mais prosaicos — ter alguém para cuidar dos filhos, por exemplo.

O serviço de correio existe nos Estados Unidos desde antes da Declaração da Independência. O ex-presidente Abraham Lincoln foi responsável pela agência na cidade de Salem, em Illinois. Os americanos votam à distância desde meados do século 19, quando muitos homens estavam lutando na Guerra Civil (na época, as mulheres ainda não tinham o direito de votar). Mesmo com tantos anos de história, nunca houve uma eleição postal tão controversa quanto a de 2020.

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