A eleição da Turquia mostra como os mercados precificam otimismo em relação a sua “preferência” eleitoral, mesmo com as pesquisas mostrando equilíbrio (Daniel Grizelj/Getty Images)
Colunista
Publicado em 25 de maio de 2023 às 06h00.
Conhecer a Turquia é uma experiência fascinante. O legado da cultura do império turco-otomano e a ligação do Ocidente com o Oriente são nuances extremamente visíveis nas ruas turcas, que conheci na última semana. A despeito de suas particularidades históricas, a Turquia sofre de problemas universais: inflação alta, desvalorização cambial, polarização política, corrupção, um terremoto que deixou 1,5 milhão de pessoas desabrigadas e matou aproximadamente 50.000 turcos, fluxo de refugiados descontrolado da Síria e autoritarismo extremamente presente. Em 2023, esses temas foram alçados ao centro do debate para a eleição presidencial. Apesar de inúmeros problemas estruturais na gestão do país, o presidente Recep Tayyip Erdogan quase foi reeleito em primeiro turno. A pergunta natural é: por que Erdogan segue firme, mesmo diante de um país em crise? E quais são as implicações para o mundo, para o Brasil e para os investidores?
Não custa lembrar da dinâmica da democracia eleitoral, que é simples: quando a economia vai mal, o incumbente sofre e perde popularidade, e por consequência é “punido” nas urnas. Não é o caso de Erdogan. Apesar de ter piorado em relação ao desempenho eleitoral de 2018, o líder turco alcançou mais de 49% dos votos válidos e quase venceu no primeiro turno. Em segundo lugar, o líder da oposição, Kemal Kilicdaroglu, teve aproximadamente 2,6 milhões de votos a menos. Um desempenho oposicionista excepcional quando comparado ao último pleito presidencial, mas que o coloca em uma posição mais frágil para o segundo turno.
Nesse contexto, é importante esmiuçar os motivos da popularidade de Erdogan. O primeiro pilar é a aposta pesada no populismo econômico (conhecido na Turquia como Erdonomics). Ao contrário da governança macroeconômica básica, o presidente da Turquia escolheu, via política, forçar uma queda das taxas de juro com a inflação em constante alta. Um discurso de forte apelo popular mas de controversa, para dizer o mínimo, eficiência econômica. Além disso, o incumbente apostou em distribuição de recursos financeiros do Estado em políticas públicas de eficácia bastante duvidosa. Criou um programa de crédito imobiliário a juros irrisórios, implementou uma política de perdão de dívidas recheada de critérios políticos, passou uma lei que permitiu a 2 milhões de turcos antecipar a aposentadoria, aumentou o salário mínimo em 94% em janeiro e ainda deu um aumento de 45% aos funcionários públicos nas vésperas do dia da votação. Nada melhor para anestesiar os efeitos da inflação do que distribuir dinheiro.
Outro fator do populismo de Erdogan passa pela narrativa pró-islâmica alimentada por ele. O foco de sua comunicação é o eleitorado mais conservador do país, que fica fora dos grandes centros urbanos e se sentia excluído pela elite secular que governou a Turquia por décadas. Esse posicionamento também pavimentou a narrativa necessária de um autocrata de alimentar a tese de um inimigo constante a ser derrotado. No caso, Erdogan se coloca como o defensor das tradições islâmicas contra o Ocidente que “quer desvirtuar” os valores da família turca. Aliás, o tema “defesa de valores” é central no posicionamento eleitoral da situação. Segundo material de campanha do presidente, caso a oposição vença, a Turquia passará a ser “dominada” pela comunidade LGBTQIA+. Qualquer semelhança com argumentos similares utilizados em outros países não é mera coincidência.
Por último, para esse eleitorado mais conservador e também mais velho (acima de 50 anos especialmente), a manutenção do líder atual no poder representa estabilidade. Mesmo com tantas crises, parte do eleitorado enxerga a Turquia como uma ilha de tranquilidade e segurança pública quando comparada aos vizinhos do Oriente Médio. A campanha de Erdogan, inclusive, especula (sem provas) que a oposição tenha ligações com terroristas curdos e com isso trará o caos caso venha a ganhar as eleições.
Na geopolítica, a potencial vitória de Erdogan coloca a Turquia mais distante dos Estados Unidos e da Europa e mais próxima da Rússia. A relação política instável com o Ocidente e a gestão diplomática personalista (baseada nos interesses políticos e particulares de Erdogan) seguirão firmes.
Para o Brasil, do lado da política, fica o alerta sobre a fragilidade das instituições democráticas perante um projeto político autocrático. Do lado da economia, vale observar as consequências de uma administração macroeconômica irresponsável, quando interesses político-eleitorais se sobrepõem ao manejo técnico das ferramentas de política monetária e fiscal.
Para os investidores do mercado financeiro, o primeiro turno da Turquia mostra como os mercados precificam otimismo em relação a sua “preferência” eleitoral. Algo recorrente na história recente em diversos países. Por motivos óbvios, a expectativa de uma vitória da oposição trazia um otimismo em relação ao futuro cenário econômico turco. Na véspera do primeiro turno, as pesquisas apontavam um cenário apertado (com uma diferença marginalmente positiva para Kilicdaroglu) e incerto. No final, os votos antigoverno (a soma dos votos de Kilicdaroglu e o terceiro colocado, Sinan Ogan) superaram um pouco os votos do incumbente. Todavia, os mercados estavam muito comprados em um êxito maior da oposição. Como gestores do Zaftra, da Gauss Capital, primeiro fundo multimercado do mundo que tem como estratégia investir em ativos baseado em projeções de eleições presidenciais, identificamos uma evidente assimetria entre a probabilidade de vitória de Erdogan e a expectativa do mercado.
Portanto, uma combinação de populismo econômico, bandeira de valores islâmicos e “estabilidade” é o pacote que mantém o presidente como o líder mais popular da República da Turquia. No mundo, a Turquia segue como um aliado instável, com democracia frágil, e os mercados seguem preocupados com a economia em ruínas. O que não está em ruínas é o império de Recep Tayyip Erdogan, que segue firme.