Escola no interior da China: qualquer nota que não seja 10 é baixa (China Photos/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h40.
No início de dezembro, os estados UNidos viveram aquilo que o presidente Barack Obama apelidou de um novo “momento Sputnik”. Como se sabe, o lançamento do primeiro satélite soviético, em 1957, mostrou aos Estados Unidos que sua hegemonia tecnológica na Guerra Fria estava seriamente ameaçada — e, por consequência, a segurança nacional também. Meio século depois, o motivo de preocupação do presidente americano é a ascensão de outra potência, a China.
Mas o que o incomoda não são seus foguetes, o tamanho de seu Exército ou a ameaça à soberania dos vizinhos. O “momento Sputnik” do século 21 foi um teste feito com estudantes do mundo inteiro. A avaliação mostrou que os alunos chineses dão um banho em seus colegas americanos — não só neles, aliás, mas em todos os outros. Eles ficaram em primeiro lugar em matemática, ciência e leitura, os três temas avaliados. O comentário de Obama mostra em que medida o desempenho escolar dos chineses gera ansiedade na maior potência do mundo — a sensação de que a América decadente está fadada ao atropelamento pelos geninhos do Império do Meio. O que impressiona, sobretudo, é a velocidade com que isso aconteceu: meros 30 anos atrás, a China saía dos escombros da Revolução Cultural maoísta analfabeta de pai e mãe.
Como isso foi possível? Um livro recém-lançado nos Estados Unidos vem lançando luz — e spray de pimenta — nessa discussão. É Battle Hymn of the Tiger Mother (algo como “Hino de batalha da mãe-tigre”, numa tradução livre), da professora de direito americana Amy Chua. Filha de imigrantes chineses, Amy conta no livro como educou as duas filhas, Sophia e Louisa. Ela resume seu método na primeira página do livro, em dez mandamentos. Suas filhas nunca puderam: 1) dormir na casa dos amigos; 2) sair com os amigos; 3) participar de uma peça da escola; 4) reclamar por não participar de uma peça da escola; 5) assistir à TV ou jogar videogame; 6) escolher suas próprias atividades extracurriculares; 7) tirar qualquer nota que não fosse 10; 8) não ser a primeira aluna da turma em qualquer tema, exceto educação física e teatro; 9) tocar qualquer instrumento que não piano ou violino; 10) não tocar piano ou violino. Eis, no resumo de Amy Chua, a base do modelo educacional à chinesa.
Seu projeto parte do pressuposto de que encontrará nas filhas uma obediência irrestrita. “No Ocidente, obediência é um termo associado a cachorros”, escreve ela. Na China, claro, é diferente. Amy comanda o show, e a opinião das crianças vale quase nada. “Para ser bom em alguma coisa, é preciso trabalhar. E crianças nunca vão trabalhar por vontade própria. Por isso, é crucial passar por cima das opiniões delas.” Tirar apenas a nota máxima na escola, ficar dois anos à frente dos colegas de classe em matemática, tudo isso era o básico. Com 3 anos, escreve, sua filha mais velha já escrevia mais de 100 caracteres chineses e lia existencialistas franceses. Ela decidiu, então, que as filhas deveriam ter um “hobby” — a música.
Entra em cena a obsessão da mãe por criar dois gênios da música. As sessões diárias de estudo passavam de 90 minutos, e suas filhas nunca perderam um dia de aula (aniversários, doenças e operações dentárias não eram desculpa). Em viagens com a família, Amy ligava com antecedência para os hotéis em que se hospedariam para checar se havia um piano disponível para que Sophia, a primogênita, praticasse e voltasse das férias à frente das outras alunas. Relaxar nas férias? Coisa de ocidental.
Amy lista as diferenças principais entre o que chama de estilo chinês de maternidade e estilo americano ou ocidental. Enquanto os ocidentais se preocupam com a autoestima das crianças, temem os efeitos do excesso de cobrança e as elogiam se tiram, por exemplo, B em matemática, os chineses não estão nem aí — eles partem do princípio de que a criança é forte, não fraca, e de que sua obrigação é exigir o melhor. “Pais chineses pedem notas perfeitas porque acreditam que seus filhos podem obtê-las.” Além disso, eles consideram que os filhos devem tudo aos pais: as crianças devem passar a vida inteira obcecadas em orgulhar os pais com vitórias. Em casas ocidentais, escreve, tem-se a impressão de que são os pais que devem tudo aos filhos. A consequência é a criação em massa de mimados medíocres, habituados a se dar bem na vida sem esforço.
Há, como se poderia esperar, certa ausência de afeto nessa história toda. Na verdade, a relação de Amy com as filhas faz lembrar em alguns momentos a batalha de Stalingrado. Quando Louisa, sua caçula, se recusou a tocar piano com os dedos em vez de esmurrar as teclas com as mãos, foi carregada para fora de casa para sentir o frio congelante do inverno como punição. Ela tinha 3 anos. Para forçar as filhas a se dedicar aos instrumentos, as táticas eram as mais variadas. Entre elas, coerção, chantagem e ameaça de tabefes. As filhas só podiam interromper as sessões de piano ou violino após executar perfeitamente a tarefa do dia — parar para ir ao banheiro ou beber água, por exemplo, era item fora de cogitação.
As amigas de faculdade se espantaram ao descobrir que uma das táticas de incentivo usadas por Amy era chamar as filhas de “lixo” (nunca elogiá-las em público é uma peça-chave da estratégia de Amy, indignada quando vê crianças ocidentais sendo aclamadas pela família por executar tarefas banais). O sucesso, escreve Amy, transforma problemas dessa natureza em detalhes irrelevantes. Ele faz com que a criança receba elogios e seja objeto de admiração. Com isso, o que era um estorvo se torna divertido. E, assim, os pais podem forçar ainda mais a barra na transformação de filhos em geninhos. Em sua busca pela perfeição, Amy devolveu um cartão de aniversário dado pelas filhas por considerá-lo simplório. Mandou que fizessem outro mais caprichado. “Meu objetivo é te preparar para o futuro, não ser amada por você”, dizia às filhas.
O estilo de educação de Amy deu certo? Claro, ainda é cedo para dizer — e só quem pode falar com autoridade sobre o assunto são Sophia e Louisa, ambas adolescentes. Sophia se apresentou no Carnegie Hall há quatro anos. Louisa, além de uma talentosa violinista, é a primeira aluna da sala. Ambas ajudaram a mãe a escrever o livro. A própria autora se considera fruto desse sistema. Quando tirou segundo lugar num concurso de história na escola, ouviu do pai: “Nunca, nunca me envergonhe desse jeito outra vez”. Ela mesma reconhece que esse modelo corre o risco de dar errado. E, quando dá errado, é desastroso. É sabido que o índice de suicídio entre jovens na comunidade asiática americana é o maior do país.
O tema é, por definição, polêmico. A publicação de um capítulo do livro no Wall Street Journal desencadeou uma onda de protestos direcionados à autora. O título dado pelo jornal, “Por que as mães chinesas são melhores”, fez com que o livro acabasse pisando no calo de que falou Obama ao descrever o “novo Sputnik”. Mesmo com seus notórios exageros (a própria caçula a chama de louca num trecho do livro), a dedicação obsessiva de Amy Chua à formação de suas filhas faz pensar: o sistema educacional de um país, afinal de contas, não começa em casa? Os alunos brasileiros ficaram em 53º lugar no mesmo teste que a China liderou. Maus professores, estrutura precária, falta de cobrança, governos incompetentes, tudo isso entra na maçaroca geral na hora de atribuir culpados por nosso desempenho sofrível. Amy Chua faria questão de incluir os pais brasileiros nessa lista.