Publicado em 20 de março de 2025 às 06h00.
Última atualização em 20 de março de 2025 às 15h05.
Francisco Gomes Neto, CEO da Embraer (Leandro Fonseca/Exame)
Na pista em frente a um hangar da Embraer, numa manhã nublada de março, um avião da família E2 se prepara para o chamado voo de aceitação. É o padrão: toda nova aeronave faz um voo do tipo para que a companhia compradora avalie o produto que vai receber. Pelo menos outras três aeronaves esperam para sair em voos similares muito em breve. O ritmo tem se intensificado na fábrica em São José dos Campos, no interior de São Paulo, onde a Embraer nasceu e produz seus aviões comerciais. A fabricante brasileira produzia mais de 100 aeronaves comerciais por ano, mas esse número caiu para menos de 50 unidades durante a pandemia de covid-19. Cinco anos depois, a empresa voltou à sua melhor fase. Em 2024, foram 73 aeronaves entregues. Com uma carteira de pedidos recorde, a expectativa é de entregar entre 77 e 85 aeronaves em 2025. E essa é só uma das razões para o otimismo.
Quando, em abril de 2020, o gigante americano Boeing desistiu da compra bilionária da área de aviação comercial da Embraer, a brasileira se viu em seu pior momento. Como se não bastasse o negócio não ter sido concretizado, era preciso lidar com os impactos da pandemia nas operações. A companhia teve, naquele ano, um prejuízo de 2,4 bilhões de reais e estava altamente endividada. Mas o vento virou. No fim de 2024, a Embraer reportou um lucro líquido de 2,6 bilhões de reais, não só voltando ao azul, mas com a sinalização de algo que o mercado esperava desde 2018: a volta do pagamento de dividendos. Hoje, a empresa vale quase nove vezes mais na bolsa brasileira do que cinco anos atrás.
Francisco Gomes Neto, que havia chegado em 2019 para liderar a joint venture com a Boeing, um negócio avaliado em mais de 5 bilhões de dólares, precisou reajustar a rota da companhia. Seu primeiro movimento foi estruturar um comitê de gestão de crise, que evoluiu para um grupo voltado para eficiência operacional, redução de custos e inovação. “Em 2019, já tínhamos um plano estratégico para continuar sem a aviação comercial, e isso foi fundamental para a retomada”, diz o CEO da companhia em entrevista à EXAME. O plano se consolidou ano a ano, e 2024 confirmou a retomada. “O ano de 2024 foi espetacular: recordes de vendas, de backlog [carteira de pedidos], de receita, e volta do grau de investimento. Agora olhamos para 2030 com uma perspectiva ainda mais otimista”, diz. A projeção da empresa é que a receita cresça mais de 50% em cinco anos e chegue a 10 bilhões de dólares.
Embora seja a menor das três grandes fabricantes de aeronaves do mundo (atrás da Boeing e da francesa Airbus), a Embraer é a que mais se valoriza. Nos últimos 12 meses, suas ações em Nova York subiram 130%, enquanto a Airbus avançou apenas 4% e a Boeing recuou 10% — prejudicada pelos desdobramentos da crise do 737 MAX, por problemas financeiros e greves de funcionários. A Boeing ainda precisou pagar 150 milhões de dólares à Embraer pelo rompimento do contrato de fusão. Na bolsa brasileira, a fabricante brasileira de aviões também conseguiu um feito e tanto: em 2024 saiu do índice Small Cap, de empresas menores, para liderar a maior valorização do Ibovespa, principal indicador da bolsa, com uma alta acumulada de 160%.
Fábrica de aviões comerciais da Embraer em São José dos Campos: a companhia espera entregar até 85 aeronaves em 2025 (Leandro Fonseca/Exame)
A dúvida agora entre os investidores é até onde a Embraer pode ir. Atualmente, a empresa negocia a um valor de mercado equivalente a 10 a 11 vezes o lucro anual. Seus pares internacionais estão na faixa de 12 vezes o lucro. “Embora o ganho de valor já não seja tão óbvio como antes, ainda há potencial de crescimento das ações”, diz Welliam Wang, sócio e gestor responsável pelos fundos de renda variável na AZ Quest.
Foi a simplicidade de fazer o básico bem-feito que levou a Embraer ao crescimento expressivo nos últimos anos. “A gestão fez o que era necessário: focou em eficiência, melhorou margens e entregou uma companhia mais robusta e diversificada”, diz Humberto Meireles, sócio e integrante da equipe de gestão de ações da gestora Vinland. Vindo da fabricante de ônibus Marcopolo, Francisco Neto identificou na Embraer as qualidades que precisavam ser exaltadas. Era necessário reforçar o lema de “segurança em primeiro lugar e qualidade sempre”, que passou a fazer parte até das apresentações para analistas e investidores. A partir daí, o trabalho se concentrou nas melhorias contínuas da operação. Fez efeito. Se em 2020, em meio às turbulências que vivia, a companhia precisou demitir quase 3.000 funcionários, no começo de 2025 as contratações estão aceleradas. Apenas na fábrica de São José dos Campos são cerca de 10.000 funcionários. No total, em unidades em dez países, a Embraer emprega aproximadamente 23.000 pessoas.
Orgulho nacional: a companhia chegou a valer 1 bilhão de dólares durante a crise, mas se valorizou quase 800% em cinco anos (Miguel Schincariol/AFP/Getty Images)
Uma das alavancas de crescimento tem sido a aviação executiva, um segmento em que a companhia levou mais tempo para posicionar bem seu portfólio de produtos, mas que hoje já representa 28% da receita. Durante a pandemia, a busca por jatos privados disparou, com empresários e empresas optando por aeronaves próprias para evitar aeroportos lotados. “Há um grande volume de pedidos para fretamento de jatos executivos. O backlog está tomado pelos próximos três a quatro anos”, diz Wang, da AZ Quest. Em fevereiro, a empresa recebeu o maior pedido de jatos de sua história: 182 aeronaves da americana Flexjet, líder global em aviação executiva, numa encomenda de 7 bilhões de dólares. É o tipo de contrato que permite aumento de preço constante e ganho de margem. O que antes parecia um pico momentâneo se tornou estrutural: a categoria continua em alta e a Embraer colhe os frutos, com modelos como Phenom e Praetor, que levam de 6 a 12 passageiros.
A aviação executiva da Embraer atende três segmentos principais. O primeiro é o varejo, composto de pessoas físicas que compram aeronaves próprias. O segundo são os corporate flight departments, departamentos de voo de grandes empresas. Organizações no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa mantêm pequenas frotas para o transporte de executivos entre diferentes destinos. Por fim, há o segmento das frotas compartilhadas e empresas de fretamento. Os produtos da Embraer estão bem posicionados nesses três mercados, e o setor executivo tem ganhado relevância dentro da companhia. Em 2024, entregou 130 jatos e, para 2025, espera entregar entre 145 e 155. “Só não entregamos mais porque faltam peças”, afirma Francisco Neto.
O setor comercial também vive um momento positivo. O segmento responde por 39% da carteira de pedidos, que ultrapassa 26 bilhões de dólares, com um crescimento expressivo na Ásia e na Europa. “Por causa da pandemia, poucas empresas estavam capacitadas para atender essa grande demanda por aviões mais eficientes. Essa foi uma virada de chave para a Embraer”, avalia Meireles, da Vinland. A recente entrada da japonesa ANA na lista de clientes, ao encomendar 20 unidades do E190-E2, com capacidade para 114 passageiros, reforça a expansão geográfica. Com alto valor agregado dos produtos e contratos robustos, a aviação comercial é, e continuará sendo, a maior unidade de negócios da Embraer. Hoje, responde por 36% das receitas.
A empresa opera no segmento comercial com três produtos principais. O E175-E1, da família E1, é um avião de até 80 lugares, sendo seu maior mercado os Estados Unidos, onde há quase 800 unidades em operação. Mais nova, a família E2 apresenta eficiência cerca de 30% superior à da E1 e é mais sustentável e silenciosa do que os concorrentes. São dois modelos: o E190-E2, com até 114 assentos, e o E195-E2, que acomoda até 146 passageiros. Atualmente, a Embraer tem clientes para essa família espalhados pelos cinco continentes. A empresa suspendeu os planos de renovar os modelos 170/175 para a geração E2, por questões regulatórias do mercado americano. A confiança da empresa (e de grande parte do mercado) está na perspectiva de que a combinação da produção dos modelos E1 e E2 permita à Embraer voltar a entregar mais de 100 aviões por ano nos próximos ciclos.
eVTOL: protótipo deve fazer seu primeiro voo teste em 2025 de olho na certificação em 2027 (eVTOL/Divulgação)
A cadeia de suprimentos, que enfrenta dificuldades desde 2020, continua como uma pedra no meio do caminho. O problema afeta toda a indústria. A Embraer tem 3.000 fornecedores espalhados pelo mundo e sofre com falta de insumos que vão desde motores até peças menores da fuselagem, conta Francisco Neto. A empresa tem adotado estratégias para mitigar esses riscos, incluindo a contratação de especialistas para monitorar fornecedores críticos e a digitalização da cadeia produtiva. “Contratamos 12 profissionais para atuar fora do Brasil, na Europa e nos Estados Unidos, próximo aos fornecedores mais críticos. Esses especialistas acompanham de perto a cadeia produtiva e auxiliam na resolução de gargalos”, diz o CEO. Analistas do Banco Safra destacam que, se a crise no supply chain continuar melhorando, após o pico durante a pandemia, a Embraer pode superar sua própria meta de entregar entre 77 e 85 aeronaves comerciais em 2025.
A empresa prefere a cautela. No fim de 2023, havia listado com fornecedores tudo que eles poderiam entregar em 2024, mas as promessas foram maiores do que as entregas. “Ao longo do ano, muitos foram postergando as encomendas. Agora, tomamos uma decisão um pouco diferente e fomos mais conservadores diante das promessas”, diz Francisco Gomes Neto. A visão mais cautelosa foi a que conteve a projeção de entregas neste ano, se estendendo para todo o negócio. A gestão projeta uma geração de caixa na ordem de 200 milhões de dólares em 2025. Já para a margem do resultado antes de juros e Imposto de Renda (Ebit), a estimativa é de algo entre 7,5% e 8,3%. A projeção é vista como “modesta” por analistas de mercado.
A escalada das tensões geopolíticas ajuda a área de Defesa em um cenário em que a Embraer também está no lugar certo e na hora certa. Além do Super Tucano, com dois lugares e 29 vendas no ano, a divisão tem sido impulsionada pelo KC-390 Millennium, seu produto mais novo e considerado um dos melhores da categoria. Ele foi projetado para o transporte de até 26 toneladas e se destaca pela alta eficiência operacional. O modelo tem sido bem-aceito globalmente, e hoje 60% das encomendas vêm de fora do Brasil. Em 2024, a Embraer vendeu 13 unidades do cargueiro militar, que já foi adquirido por países como Holanda, Áustria, Suécia e Coreia do Sul. “O KC-390 se tornou um padrão na Europa, o que facilita missões conjuntas e o treinamento de pilotos”, afirma Francisco Neto. Hoje são várias campanhas em andamento, como a da Índia, com 40 a 80 pedidos.
Escalada das tensões: reunião entre Donald Trump e Volodymyr Zelensky na Casa Branca em fevereiro elevou o tom das disputas globais (Andrew Harnik/Getty Images)
O modelo já figura entre os mais cotados como substituto natural do C-130 Hercules, da Lockheed Martin. Principal aeronave da Força Aérea americana, o modelo é dos anos 1950 e precisa ser renovado. Para Stephen Trent, analista do banco Citi, o segmento é um dos destaques para os próximos anos na projeção de resultados da brasileira. Ele explica que a Embraer pode se beneficiar do envelhecimento da frota do C-130 e apresentar uma alternativa eficiente. “O mercado está focado nos novos pedidos de Defesa, mas há uma oportunidade enorme na substituição das aeronaves antigas”, diz. Para aproveitar essa chance, a Embraer não descarta produzir os KC-390 em solo americano caso feche contratos com o Pentágono. Hoje, a aeronave é feita em Gavião Peixoto, em São Paulo, mas já conta com 50% das peças feitas nos Estados Unidos. A Embraer já tem duas fábricas por lá, além das cinco que opera no Brasil. “Estamos revisando a estratégia para mostrar à Força Aérea americana os benefícios que esse avião pode trazer, como mais produtividade e menores custos operacionais”, afirma o CEO.
Sobram incertezas acerca da política “America first”, de Donald Trump em seu segundo mandato. A guerra tarifária promovida pelo presidente americano tem motivado disputas argumentativas entre líderes de todo o mundo, incluindo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e ainda é um ponto de atenção. A favor da Embraer, porém, diz Francisco Neto, está a presença de 45 anos nos Estados Unidos, onde a empresa mantém 2.500 funcionários. Hoje, todas as aeronaves executivas são feitas em solo americano, por exemplo. “Não podemos prever o que o governo americano vai fazer, mas contamos com esse bom senso comercial que vem favorecendo e vai continuar favorecendo os dois lados. A relação entre a Embraer e os Estados Unidos é muito equilibrada”, diz.
Tempestade perfeita: fabricante americana, a Boeing entrou em rota de turbulência com a crise dos MAX e as sequelas da pandemia (Jordan Gale/AFP/Getty Images)
Enquanto avança nas vendas de aeronaves nos três segmentos, a companhia também cresce na área de serviços, numa estratégia em que cada vez mais as quatro áreas de negócios têm se complementado e reforçado os números da operação. Com margens mais elevadas do que a venda de aeronaves, esse segmento representou 25% da receita da companhia em 2024 e tem potencial para avançar ainda mais. O braço de serviços inclui principalmente a manutenção das aeronaves e cresceu especialmente a partir da compra do controle da portuguesa OGMA, em 2004, da qual a Embraer é dona de 65%, sócia do governo português. Por lá, explica Francisco Neto, uma das principais alavancas vem da capacidade de prestar serviços de manutenção não só para seus clientes das famílias E1 e E2, mas para todo o setor de aviação, incluindo a manutenção de aeronaves de concorrentes.
A excelência no básico não impediu a Embraer de sonhar alto. A empresa reforçou sua aposta em inovação e qualificação de mão de obra. Atualmente, 34% da receita vem de produtos lançados nos últimos cinco anos. Para os próximos anos, a empresa tem sete frentes tecnológicas prioritárias, incluindo autonomia de voo, novas formas de propulsão e digitalização da produção. A grande estrela do que o time de inovação é capaz é o eVTOL, veículo elétrico de decolagem e pouso vertical, desenvolvido por sua subsidiária Eve. O “carro voador” da Embraer já tem 2.800 unidades encomendadas e deverá chegar ao mercado em 2027, posicionando a empresa como uma das protagonistas de um setor potencialmente revolucionário. “É um setor interessante, mas que ainda não está precificado no valor da Embraer”, diz Luís Mussili, da gestora JGP.
Em 2020, no auge da turbulência, Francisco Neto gravou um vídeo para os funcionários afirmando que esperava ver a empresa “voando alto” em 2025. Naquele momento, a Embraer atravessava uma crise sem precedentes. Agora, quer registrar uma nova mensagem para os próximos cinco anos: tornar a Embraer uma das líderes da aviação global, superando os 10 bilhões de dólares de receita anual até 2030. A batalha vai ser dura: Boeing e Airbus faturam 66 bilhões e 72 bilhões de dólares, respectivamente. Se o eVTOL se provar um sucesso, tanto melhor: a Embraer poderá dizer que, pelo menos neste novo mercado, já nasceu líder.