O engenheiro italiano Andrea Casaluci, CEO da fabricante de pneus Pirelli (Pirelli/Divulgação)
Editor de Negócios e Carreira
Publicado em 18 de outubro de 2024 às 06h00.
No início de setembro, a fabricante italiana de pneus Pirelli chamou a atenção da imprensa global com um lançamento típico de uma big tech. Em parceria com a alemã Bosch, a Pirelli está colocando no mercado um pneu com sensores capazes de levantar dados sobre o estado de conservação do material e as condições de uso da estrada. O objetivo é ajudar o motorista a planejar a próxima ida ao mecânico — e, assim, evitar o risco de ficar parado na estrada por causa de um pneu furado.
Apelidado de “pneu inteligente”, o anúncio é um dos destaques do primeiro ano de gestão do engenheiro italiano Andrea Casaluci como CEO da Pirelli. Casaluci sucedeu a Giorgio Bruno, que assumiu em 2022 depois da ida de Marco Tronchetti Provera, um dos principais investidores da companhia, para o conselho de administração (atualmente ele é vice-chairman).
Em 20 anos no comando, Tronchetti Provera mudou profundamente a companhia. Aberta em Milão em 1872 para fabricar cabos para telecomunicações, a Pirelli virou um nome conhecido ao redor do planeta pelos pneus para todo tipo de carro — sobretudo no Brasil, onde possui uma das maiores redes de distribuidores da empresa pelo mundo.
Nas últimas décadas, sobretudo na gestão de Tronchetti Provera, a Pirelli deu uma guinada em direção ao mercado de luxo. Hoje, a marca fornece pneus para montadoras de alguns dos carros mais caros do planeta, como a italiana Ferrari e a inglesa Bentley. Além disso, patrocina o Calendário Pirelli. Ao longo de 60 anos, o produto reuniu alguns dos melhores fotógrafos e modelos do mundo. Por trás da estratégia está a associação de design e estilo, um traço comum a outras companhias com DNA italiano. Tudo isso preservou o apelo global da marca diante da expansão de concorrentes asiáticos. Sob outra ótica, tornou a Pirelli uma das empresas mais sólidas da Itália, com valor de mercado ao redor de 5,5 bilhões de euros, aproximadamente 30 bilhões de reais.
Daqui para a frente, Casaluci quer fazer do pneu o protagonista da corrida pelos carros autônomos. Em paralelo, ele está de olho nas mudanças geracionais. Com jovens críticos ao papel dos carros nas mudanças climáticas, o novo CEO quer ampliar o uso da borracha natural, vinda de plantações certificadas, para cortar o uso de materiais sintéticos pouco ou nada biodegradáveis. “Gostamos de definir a Pirelli como uma startup de 152 anos”, disse Casaluci à EXAME, direto do seu escritório, em Milão. “Estamos sempre olhando para o futuro e tentando antecipar tendências.”
Começamos esse projeto há 25 anos. A intenção dos nossos engenheiros é criar um pneu capaz de “conversar” com o carro. Os pneus são o único ponto de contato de um automóvel com o solo. Eles têm dados únicos para o motorista. Por ali é possível entender se um asfalto é bom ou não. Ou, então, se o solo está seco ou molhado, duas condições capazes de mudar a forma de dirigir. O estado de conservação do pneu em si diz muito sobre o estilo de direção. Então, colocamos muitos sensores em nossos pneus para coletar esses dados. Em junção com uma tecnologia da Bosch, desenvolvemos algoritmos para influenciar a experiência do motorista. Imagine saber com antecedência quando é o melhor momento para trocar o pneu. Esse tipo de informação ajudará o motorista a tomar boas decisões e a não desperdiçar dinheiro com a troca de pneus ainda em boas condições.
O pneu inteligente já está disponível em alguns veículos da Pagani, marca italiana de veículos de alto desempenho. Ela tem um volume pequeno de produção, o que nos permite testar a tecnologia para, então, acelerar a adoção. Ao mesmo tempo, estamos em conversas com as principais montadoras do mundo. A nossa expectativa é fechar parcerias com elas para que o pneu inteligente esteja embarcado em seus próximos lançamentos em breve.
A estratégia da Pirelli sempre é a de focar primeiro os segmentos de ponta, ou high end. Esse tipo de consumidor é mais exigente e isso nos força a entregar o melhor produto. Quando a tecnologia ganha maturidade e seus custos de produção diminuem, aí colocamos esforços para ganhar tração em outros segmentos. Numa linha do tempo, estimo que a partir de 2026 muitas linhas produtivas de veículos já estarão trabalhando com a nossa tecnologia. Até o fim da década teremos uma presença maciça de sensores nos pneus para contar o que está acontecendo com os nossos carros — e de algoritmos para prever decisões importantes, como o momento certo de levar o veículo ao mecânico.
Estamos atentos a ambas e, de certa forma, o anúncio dos pneus inteligentes é um exemplo disso. A direção autônoma tem a ver com a capacidade de coletar dados de todos os pontos de um carro para permitir ao próprio carro guiar-se sozinho com segurança. Antes de chegar ao ponto de um carro estar 100% autônomo o tempo inteiro, há muitos outros cenários possíveis. Vamos conviver com algum grau de autonomia combinada com a atenção humana na direção por algum tempo. Tudo isso enquanto a indústria automotiva desenvolve tecnologias mais robustas para os carros autônomos. Estamos confiantes de que a nossa parceria com a Bosch vai trazer muita inovação para as montadoras. Os pneus vão acabar sendo os protagonistas do desenvolvimento dos carros autônomos.
Aí eu vejo uma grande oportunidade para todas as empresas de pneus, incluindo a Pirelli. Os carros elétricos são mais pesados por causa das baterias e do layout diferente de seus motores. Esse tipo de veículo depende de pneus com muito mais aderência ao solo, uma vez que o torque do motor elétrico é mais potente que o de combustão. Para manter o desempenho do carro sem comprometer a aceleração, por exemplo, será preciso muita tecnologia. E, ainda por cima, fabricantes como a Pirelli vão precisar atentar para o barulho dos pneus. Os motores de carros elétricos são muito silenciosos. A tração dos pneus também deverá ser. Tudo isso vai trazer muita oportunidade para a Pirelli.
Os veículos elétricos são, atualmente, a tecnologia dominante do mundo e continuarão sendo pelos próximos anos. O que vamos ver é um ritmo de adoção diferente ao redor do globo. Na China eles já são dominantes. A Europa está no meio dessa transformação. Apesar de a proibição dos veículos a combustão, antes prevista para 2035, ter sido postergada, eu ainda acredito que os carros elétricos serão dominantes na Europa em pouco tempo.
O Brasil tem uma história de sucesso com biocombustíveis como o etanol. Eles poderão ser a fonte de energia dominante junto com a elétrica na indústria automotiva brasileira. É uma situação diversa à dos Estados Unidos, onde eu vejo uma menor adesão aos veículos elétricos do que na Europa e na China.
O Brasil hoje está importando duas vezes mais pneus da China do que importava há dois anos. Os chineses dominam hoje praticamente metade do mercado brasileiro desse setor. É uma pena por duas razões. A primeira é o fato de empregos brasileiros estarem sendo ceifados por causa das importações. A segunda, e em alguns sentidos até mais preocupante, é pela [falta de] qualidade dos produtos chineses. E o tema da qualidade do pneu tem a ver com a questão da segurança nas estradas. É muito importante, então, proteger a produção local de pneus pela geração de empregos e pela segurança nas estradas brasileiras. No mês passado, o governo brasileiro aumentou a alíquota de importação de pneus de 16% para 25% por 12 meses. Vejo a medida como extremamente importante, mas talvez não seja suficiente. Eu aconselharia manter essa política de proteção do mercado brasileiro por mais tempo.
A Pirelli chegou ao Brasil em 1929. É uma história longa. Nos sentimos em casa no país. Toda vez que viajo para o Brasil vejo a importância da marca. As duas fábricas brasileiras estão entre as mais desenvolvidas da empresa no mundo, além de termos um dos centros de pesquisa e desenvolvimento mais relevantes. Nossa fatia de mercado no país entre os SUVs e os carros premium é perto de 50%. Olhando para a frente, estou muito otimista. O Brasil tem um estoque de carros que precisa de renovação. Ao olhar para a quantidade de investimentos anunciados pelas montadoras no Brasil, estou muito confiante de que a renovação da frota vai andar junto com um movimento de “premiunização” dos veículos. Será muito importante se tudo isso estiver combinado a uma estratégia de sustentabilidade.
Pensamos muito, porque essa geração é o nosso futuro. Gostamos de definir a Pirelli como uma startup de 152 anos, porque estamos sempre olhando para o futuro e tentando antecipar tendências. Para ser honesto, não estou preocupado com a questão geracional. Não é verdade que a geração Z não vai precisar de carros. Ela vai precisar, mas terá uma percepção diferente. Para esses jovens, a sustentabilidade é de suma importância, o que é bom. Eles estão mais interessados em conforto do que em desempenho, mas amam design. E também estão cada vez mais interessados em competições de automobilismo. A Fórmula 1 está se tornando cada vez mais popular entre eles, por exemplo. O que realmente decidimos fazer é continuar sendo o líder global nos automóveis de luxo e de alto desempenho. Ao mesmo tempo, queremos ser referência em sustentabilidade. Temos a meta de neutralidade de carbono mais ambiciosa da indústria até 2030. Queremos chegar ao net zero [compensação total das emissões de carbono] até 2040. Temos uma meta ambiciosa de uso de materiais de base biológica e reciclados em nossos produtos. Em 2025, vamos produzir 100% dos nossos produtos com energia proveniente de fontes renováveis — isso já acontece nas fábricas das Américas e da Europa. Dessa forma, procuramos falar com todos os consumidores de todas as gerações, porque é possível ser o único fornecedor da Fórmula 1 e, ao mesmo tempo, ser o líder global em sustentabilidade. E a Pirelli está provando que isso é possível para atender às duas ambições da nova geração.
Estamos muito perto de conseguir reciclar 100% dos pneus usados em alguns mercados, como a Europa. Hoje, muitos dos materiais dos pneus são sintéticos e de difícil absorção na natureza. Queremos melhorar a porcentagem de borracha natural, em vez de borracha sintética, porque é uma base biológica. Então, para proteger a floresta e evitar qualquer tipo de impacto descontrolado na natureza, temos certeza de que a borracha natural que compramos vem de rastreabilidade total. E por meio de uma certificação, a FSC, garantimos o total respeito às plantações, evitando qualquer tipo de desmatamento.
O modelo de negócios da Pirelli é muito simples. Queremos continuar sendo o líder global no mercado de alto valor, focando apenas negócios de consumo, e nos tornando cada vez mais um ponto de referência na transição para a sustentabilidade. Se você me perguntar como vejo o título do futuro, seremos sustentáveis e conectados. É exatamente isso que estamos tentando fazer na Pirelli, e ela está conseguindo cumprir.