Praça dos Três Poderes, em Brasília: o equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário está no cerne da democracia | Pedro Ladeira/Folhapress /
Da Redação
Publicado em 25 de outubro de 2018 às 05h56.
Última atualização em 25 de outubro de 2018 às 06h18.
Quando um país ruma para uma eleição tão decisiva quanto esta que vivemos agora, espera-se que o processo envolva um amplo debate sobre os diferentes diagnósticos, as propostas de solução e a capacidade de cada candidato para agir. Esse debate não ocorreu. Em seu lugar, a campanha presidencial brasileira trouxe outro debate, um que achávamos já ultrapassado: sobre a vitalidade de nossa democracia.
Por diferentes motivos, tanto um eventual governo de Fernando Haddad quanto um mais provável governo de Jair Bolsonaro suscitam temores nesse campo. De um lado, o Partido dos Trabalhadores já esteve no poder por 13 anos, sem uma ameaça real à democracia. Houve, no entanto, um constante clima de desconforto, com o aparelhamento de estatais e agências reguladoras, a tentativa de montar um Supremo Tribunal Federal simpático ao partido, menções à necessidade de controlar socialmente a mídia e, é claro, alguns dos maiores escândalos de corrupção do mundo. Além disso, o PT de agora não é o mesmo de três anos atrás. Passou pelo recrudescimento de um -impeachment, questiona e refuta abertamente tanto a demissão da presidente Dilma Rousseff quando o processo judicial que condenou à prisão o ex-presidente Lula, propõe plebiscitos para resolver temas que lhe são caros.
Do outro lado, a preocupação não fica nem um pouco atrás. É até mais inquietante: Bolsonaro demonstrou em vários momentos seu baixo apreço pela democracia. Seu candidato a vice, o general Hamilton Mourão, propôs uma Assembleia Constituinte não necessariamente legitimada pelo voto popular e falou da possibilidade de um autogolpe. O próprio Bolsonaro declarou que não aceitaria um revés no resultado da eleição; denunciou, sem base, fraudes na votação; defende a ditadura militar; apoiou a tortura; e menosprezou direitos das minorias. “Uma medida para saber se uma democracia é de fato representativa é observar como seus governantes tratam a minoria derrotada nas urnas”, diz Lucas Novaes, economista e cientista político do Instituto de Estudos Avançados de Toulouse, na França. “O candidato do PSL disse em discurso que as minorias deveriam se curvar perante a maioria, o que é literalmente a negação da democracia.”
É baixa a probabilidade de que o regime democrático seja sufocado. O Brasil de hoje é bem diferente do que era em 1964, quando mergulhamos no autoritarismo. Há mais apoio à democracia, instituições mais robustas, baixíssima mobilização nos comandos militares para uma nova aventura. Mas há o risco de uma degradação. É o que se tem visto em diversos países — da Turquia à Hungria, das Filipinas aos Estados Unidos — em que o governante eleito vai aos poucos minando os sistemas de freios e contrapesos que sustentam o regime. Esse sistema tem origem no pensamento do filósofo francês Montesquieu e foi exposto no livro O Espírito das Leis, de 1748 (quatro décadas antes da Revolução Francesa). Montesquieu se preocupava com o abuso de poder. “Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade”, escreveu. “Porque se pode temer que o monarca ou o Senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.”
Da mesma forma, o poder de julgar tinha de estar separado do poder de fazer leis e do poder de aplicá-las. “Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares.” Montesquieu se inspirou no sistema parlamentarista inglês. Este, por sua vez, bebia dos clássicos, como Aristóteles e Cícero, que pregavam uma constituição mista de poder. Aristóteles queria unir as vantagens da monarquia (agilidade nas tomadas de decisão), da oligarquia (um governo de especialistas) e da democracia (inclusão), sem os defeitos de cada uma (a tendência à tirania do rei, de um grupo ou da maioria).
A Revolução Gloriosa, da Inglaterra de 1688, já havia feito algo nessa linha. Para impedir o retorno de um católico à monarquia, o Parlamento aprovou uma declaração de direitos que limitava os poderes do rei. Inclusive o de aumentar impostos. A proposta de Montesquieu ia além: que o rei ficasse com o Poder Executivo, e um Parlamento com o Poder Legislativo. Não se trata de neutralizá-los, mas de evitar abusos. “É preciso que o poder pare o poder”, disse. Daí vem o conceito de freios e contrapesos.
Cachorros grandes
Quando os Estados Unidos se tornaram independentes da Coroa inglesa em 1776, os patriarcas da nova república recorreram aos escritos de Montesquieu. Em não havendo mais um rei para ocupar o Poder Executivo, decidiram-se pela figura de um presidente. James Madison e Alexander Hamilton, dois dos patriarcas, consideraram que o Poder Legislativo sobrepujava os demais. Por isso, dividiram-no em duas Casas, desligadas e eleitas de modos diferentes. Em seguida, elaboraram o sistema de checks and balances, calcado nos freios e contrapesos de Montesquieu, em que cada um dos Poderes exerce uma parcela das atribuições do outro. Assim, o presidente escolhe o juiz da Suprema Corte, mas a decisão precisa ser referendada pelo Senado. Da mesma forma, o presidente tem poder de veto sobre leis pronunciadas pelo Parlamento, mas esse veto pode ser derrubado se houver uma maioria considerável.
Em resumo, o sistema de freios e contrapesos é uma interferência recíproca entre os Poderes. É ele que garante o bom funcionamento da democracia. Em alguns países, o poder se divide em mais de três esferas. Na China são cinco: o Executivo, o Legislativo, o Judicial, o Controle (uma espécie de ombudsman) e o Exame (órgão que valida a qualificação dos funcionários públicos). Alguns países europeus têm algo similar ao Controle chinês, um vigia do bom funcionamento dos demais Poderes. De qualquer forma, permanece a noção de que cada Poder é capaz de frear e equilibrar os demais. É esse sistema que deve ser firme o suficiente para aguentar possíveis trancos. Será?
“As instituições brasileiras de freios e contrapesos têm sido bastante irregulares”, afirma Scott Mainwaring, estudioso de Brasil na Universidade Harvard. “Às vezes, elas são exemplos para o mundo, como no caso das investigações da Lava-Jato. Às vezes, elas têm sido em grande parte ausentes, como na decisão do Congresso de não fazer nada sobre a corrupção na administração do presidente Michel Temer.” De acordo com o cientista político Carlos Pereira, professor na escola de administração da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, os freios e contrapesos no Brasil são anabolizados — porque os bichos que eles precisam conter cresceram demais. É esse o tema de seu futuro livro, Coleira Forte para Cachorro Grande. A tese é que, após uma série de impasses com o Congresso que levaram presidentes ao suicídio, à renúncia ou à expulsão por meio de um golpe, a saída adotada pela Assembleia Constituinte de 1988 foi dar mais poder ao Executivo, fornecendo-lhe a possibilidade de editar medidas provisórias. Além disso, ficou estabelecido o multipartidarismo como regra eleitoral. O Executivo, portanto, tornou-se um “cachorro grande” pelas mãos dos legisladores.
Só que, ao delegar tantos poderes ao Executivo, os constituintes perceberam que tinham também que delegar poderes a instituições capazes de constranger esse “animal”. Dessa forma acabou nascendo um Ministério Público Federal forte. Para “armar” esse braço, estabeleceu-se um salário competitivo para os promotores, de modo que pessoas bem preparadas começaram a se inscrever nos concursos. Estava montada a base sobre a qual prosperariam operações como a Lava-Jato.
Na relação entre os Poderes, o Judiciário foi ficando mais desenvolto. Em especial de 2014 em diante, no segundo governo Dilma, com a deterioração das relações entre Legislativo e Executivo. “O Judiciário se colocou como protagonista na brecha dada pelo Legislativo, que passou a travar as pautas do governo no Congresso”, diz Maria do Socorro Braga, professora de ciências políticas na Universidade de São Carlos. “Com a Lava-Jato, o protagonismo do Judiciário foi reforçado e a classe política passou a ser refém das investigações. Desse modo, como em uma ciranda, o Legislativo fez de refém o Executivo, que vitaminou o Judiciário, que se apossou do ativismo do Legislativo.”
“Essa capacidade ímpar do Judiciário também tem seus reveses”, diz Pereira, da FGV. “Em vários aspectos, instâncias do Judiciário legislam em causa própria ou de acordo com seus interesses ou visão de mundo. Isso é um fenômeno que vem ocorrendo em todo o mundo. Quando o Legislativo se omite, o Judiciário decide pautas como a legalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a pesquisa com células-tronco. Essa autonomia, portanto, é arriscada, na medida em que pode provocar um desequilíbrio entre os Poderes. Mas é melhor correr esse risco do que manter a corrupção vigente.”
Na visão de Fernando Limongi, professor de ciências políticas na Universidade de São Paulo, o STF começou e nunca mais parou de intervir e tentar reformar o sistema político. “Só que não tem ninguém lá que entenda patavinas do que acontece na política de modo realista”, diz Limongi. “Enfiaram a mão na cláusula de barreira, no tempo de TV, toda essa fragmentação partidária tem origem em decisões equivocadas do STF.”
O cientista político Bolívar Lamounier, sócio da consultoria Augurium, observa que, na prática, o grau de independência e harmonia entre os Poderes varia muito de um país para o outro e ao longo do tempo num mesmo país. “No Brasil, os juízes do Supremo Tribunal são nomeados pelo presidente da República ad referendum do Senado Federal, havendo, por conseguinte, uma margem considerável para manipulação do Judiciário pelo Executivo, como temos visto no passado recente”, diz Lamounier. A recíproca é às vezes verdadeira, quando, atuando em conjunto, o procurador-geral da República e membros do STF abrem inquéritos descabidos ou exercem outros tipos de pressão contra integrantes do Executivo ou do Legislativo. Este, segundo Lamounier, pode também criar sérios problemas, especialmente quando os partidos dificultam sem fundamentação razoável a aprovação de medidas consideradas fundamentais pelo Executivo.
Essa é a questão conhecida como “governabilidade”, a capacidade de o Executivo levar adiante sua pauta. E aí está um dos elementos cruciais para entender os riscos de corrosão da nossa democracia no próximo governo. “Um certo grau de pluralismo partidário é essencial à democracia”, diz Lamounier. “Mas um pluralismo exacerbado, ou seja, um alto grau de fragmentação, pode ser o beijo da morte que a impede de funcionar.” O Brasil, lembra ele, é um ponto fora da curva: o partido com o maior número de cadeiras terá apenas 12% das 513 que compõem a Câmara Federal. Esse índice baixo dá uma ideia da dificuldade que o próximo presidente encontrará caso precise promover uma alteração constitucional, algo que exige 60% dos votos na Câmara e no Senado, em votações separadas e em dois turnos.
Esse tipo de dificuldade ajuda a explicar por que no Brasil se desenvolveu o tal do “presidencialismo de coalizão” — a formação, pelo presidente, de um amplo bloco de apoio não necessariamente identificado com os partidos que comungam de seu projeto. Uma das colas dessa coalizão é a distribuição de cargos; outra pode ser um toma lá dá cá não muito republicano. O favorito das pesquisas, Bolsonaro, tem repetido que não vai fazer o tipo de acordo que tem garantido a governabilidade no Brasil. Ninguém pode garantir qual será seu programa, dadas as contradições entre seus principais assessores e a falta de clareza em suas propostas. Mas uma coisa é certa: haverá dificuldade para aprová-lo. Nessa hora, deve vir a tentação de testar os freios e contrapesos da democracia.
Ainda mais porque, qualquer que seja o eleito, terá de lidar com uma oposição aguerrida. Uma primeira mostra disso foi o pedido de impugnação da candidatura Bolsonaro após a denúncia de apoio indevido de empresários, que podem ter pagado por disparos de mensagens de WhatsApp em seu favor. “Não acredito em algum interesse do Tribunal Superior Eleitoral em favorecer um candidato”, diz Novaes, do Instituto para Estudos Avançados de Toulouse. “Acho que o foco nesses casos é exagerado. Há poucas evidências de que esse tipo de campanha tenha um grande efeito no resultado das eleições. O eleitor não é tonto.”
Esse caso pode não ir adiante, mas certamente haverá outros para o próximo presidente. E eles podem provocar reação. “Entre os acadêmicos que discutem hoje a ameaça às democracias contemporâneas, o consenso é que nenhum dos freios e contrapesos é suficiente para deter um governante antidemocrático decidido a subverter a ordem”, afirma Limongi. “As rupturas imediatas do processo democrático, com golpes, têm se tornado menos comuns”, diz Mainwaring, de Harvard. “Mas também é verdade que a legitimidade democrática tem sofrido erosão em muitos lugares.”
A questão é qual é a extensão do dano ao sistema democrático, segundo Lucas Novaes, do Instituto para Estudos Avançados de Toulouse | Natália Flach
O alto grau de independência do Judiciário, principalmente em instâncias inferiores, confere ao Brasil um sistema de freios e contrapesos melhor do que o da maioria dos países em desenvolvimento, segundo o economista brasileiro Lucas Novaes, doutor em ciências políticas pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, e pesquisador no Instituto de Estudos Avançados de Toulouse, na França. Mas, para ele, o fato de nenhum dos candidatos à Presidência reconhecer a legitimidade do adversário deverá levar a um enfraquecimento das instituições a partir de 2019. O cenário é que esses órgãos tenham muito mais trabalho pela frente.
O mecanismo de freios e contrapesos entre os Três Poderes funciona bem no Brasil?
Sim. No que se refere ao Judiciário, instituições investigativas — como a Polícia Federal e o Ministério Público — têm capacidade e condições de investigar qualquer indivíduo no país. Mas isso não quer dizer que tenhamos um ótimo Judiciário. Afinal, ele legisla em causa própria, aumentando salários e mantendo auxílios-moradia. Talvez seja ainda mais grave a falta de previsibilidade das decisões de nosso corpo de juízes. Se dois políticos cometem o mesmo delito, é quase impossível saber se receberão a mesma sentença. Dito isso, o poder desses órgãos deixa membros do Executivo e do Legislativo mais receosos em transgredir normas. Imagino que não exista um político corrupto que não tenha medo de a campainha tocar às 6 horas da manhã.
Há risco de o sistema de garantias democráticas se desequilibrar depois da eleição?
Não importa quem vença as eleições, as instituições vão se enfraquecer. Nenhum dos candidatos encara o outro como um competidor legítimo. Isso, por si só, é garantia de que virão tempos ruins para nossas instituições. Vendo o outro lado como ilegítimo, o presidente vai reprimi-lo e desconsiderar as demandas políticas de seus eleitores. Sendo assim, será necessária a ação de órgãos de controle. Esse ciclo levará tanto o vencedor quanto o derrotado a testar continuamente o sistema de freios e contrapesos. Uma hora ou outra o sistema falhará. Falhando, incentivará ainda mais transgressões. Ou seja, não importa o resultado da eleição: isso vai acontecer. Resta saber a extensão do dano.
Quais são as perspectivas?
Com o dualismo PT-PSDB rompido, não sabemos como o PT se portará daqui em diante. No passado, os petistas não foram necessariamente os paladinos das leis, da Constituição ou da competição política, como os escândalos revelaram. Porém, em nenhum momento chegamos perto de uma ruptura democrática comparável à da Venezuela. Já Bolsonaro é uma incógnita e carrega um risco maior. O candidato do PSL disse que as minorias deveriam se curvar perante a maioria, o que é literalmente a negação da democracia. Também disse que a polícia terá carta branca para matar, o que representa a eliminação de freios e contrapesos para a instituição do Estado encarregada pelo exercício da violência.