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A riqueza ignorada da Argentina é o gás de xisto

A Argentina tem uma das maiores reservas de gás de xisto do mundo, mas devido à cegueira do governo a população sofre com blecautes e racionamento de energia

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Da Redação

Publicado em 3 de março de 2014 às 06h00.

São Paulo - O livro mais vendido na Argentina atualmente é La Dueña — Historia Oculta de los Negocios Secretos, los Vínculos Personales y la Salud de la Mujer más Poderosa, más Amada y más Odiada de la Argentina. Em mais de 200 páginas, Miguel Wiñazki, editor-chefe do jornal Clarín, e seu pai, Nicolás Wiñazki, fazem um retrato detalhado da presidente Cristina Kirchner.

Ressaltam o fato de ela ter passado parte da infância sem a presença do pai, numa época em que casais separados eram malvistos na sociedade argentina, e tentam dimensionar a segurança que encontrou em Néstor, o marido e antecessor na Presidência, morto em 2010.

O perfil psicológico ajuda a explicar a adoração que Cristina tem pelo marido, mas outros trechos do livro são mais reveladores sobre como ela levou o país a mais uma crise.

Nesse sentido, o setor de energia é um dos mais emblemáticos. A Argentina tem a terceira maior reserva de gás de xisto do mundo, uma variedade que está causando uma revolução no mercado mundial de energia. Fica atrás somente dos Estados Unidos e da China.

A região de Vaca Muerta (parece piada pronta que o grande potencial da Argentina tenha esse nome, mas é isso mesmo), na província de Neuquén, tem área de cerca de 30 000 quilômetros quadrados e condições para gerar um faturamento de 4,4 trilhões de dólares. Mas, devido às trapalhadas do governo, a exploração da região quase não anda.

Enquanto isso, o país vive uma das piores crises energéticas dos últimos anos e aumenta as importações de gás para abastecer as usinas termelétricas. No total, a Argentina gastou cerca de 13 bilhões de dólares na importação de gás e eletricidade em 2013, um aumento de 25% em relação ao ano anterior.

Destes, cerca de 6 bilhões de dólares foram compensados pelas exportações de parte da produção de petróleo. O restante teve de ser pago com as reservas internacionais, hoje de apenas 28 bilhões de dólares — para comparar, o Brasil tem 376 bilhões em reservas.

Até agora, a Bolívia é o país que mais tem lucrado com o desequilíbrio argentino. Desde 2010, a Bolívia mais do que triplicou a venda de gás natural para a Argentina. Até o pequenino Uruguai, que costumava comprar energia da Argentina, agora está vendendo ao país vizinho.

 De acordo com o livro dos Wiñazki, os maiores empresários argentinos começaram a perceber, após a morte de Néstor, que, com Cristina no poder, as coisas mudariam — para pior. Ela era mais desconfiada, mais fechada, menos política e muito menos conciliadora.

Supostamente irritada com o desempenho da petroleira YPF, controlada pela companhia espanhola Repsol, Cristina decidiu nacionalizar a empresa em 2012. Isso 11 meses após a YPF ter anunciado o potencial de Vaca Muerta.

No discurso em defesa da decisão no Congresso, Cristina deixou clara sua visão de mundo: o país tem recursos energéticos em abundância; o problema são as “políticas empresariais”.

A nacionalização foi mais um item numa longa lista de decisões que fizeram da Argentina quase um pária no mercado internacional. O país convive com uma inflação superior a 25% ao ano, manipula os indicadores econômicos, taxa as exportações agropecuárias e tenta controlar a taxa de câmbio. 


No caso da YPF, justiça seja feita, Cristina não está sozinha. O setor de energia é mesmo propenso a rompantes nacionalistas. Das 20 maiores petroleiras do mundo, 14 são controladas por governos. Mas, como mostra o caso argentino, o lema “o petróleo e o gás são nossos” pode parecer atraente no plano do discurso. Na vida real, costuma acabar em desastre.

Menos de dois anos após a estatização da YPF — surpresa, surpresa —, o abastecimento de energia na Argentina piorou. Nos dias mais quentes de dezembro e janeiro, cerca de 30% da população de Buenos Aires ficou sem luz. Alguns bairros chegaram a ficar mais de 15 dias sem energia.

“Apagões são comuns nessa época do ano, mas normalmente não duram mais do que dois dias. Fiquei sem luz no Natal e no Réveillon”, diz o psicólogo Martin Cagide, de 34 anos, morador do bairro de Caballito, no centro da capital argentina. Muitos empresários agora temem pelo inverno.

Se as temperaturas baixarem muito, não estão descartados novos racionamentos. Em janeiro, a situação só não foi pior para a população porque várias empresas pararam a produção e, assim, diminuíram o consumo de eletricidade.

Mesmo os críticos de Cristina reconhecem que as políticas irresponsáveis na área de energia começaram com seu marido. Foi ele quem congelou as tarifas em 2003 — o erro dela foi manter essa decisão até hoje. Como no hay almuerzo grátis, o congelamento travou o setor.

O governo culpa as empresas por não investirem o suficiente, e as empresas se defendem dizendo que, sem aumentar as tarifas, a conta não fecha. “Acredito que muito em breve o país não terá mais como arcar com esse subsídio”, diz Orlando Ferreres, ex-secretário de Planejamento Econômico da Argentina no fim da década de 90 e dono da consultoria OJF. 

Ao longo do ano passado, o governo tentou ensaiar uma reação. A agora estatal YPF assinou um contrato com a petroleira Chevron para explorar Vaca Muerta. A companhia americana se comprometeu a investir 1,2 bilhão de dólares até 2017, mas isso é um grão de areia comparado aos 300 bilhões de dólares que o mercado estima como necessário para extrair todo o potencial da região.

“O montante que será aplicado pela Chevron na Argentina é ínfimo, não passa de 1% do total investido pela empresa no mundo durante um ano”, diz Pavel Molchanov, analista da corretora americana Raymond James. Com suas viradas de mesa, a Argentina de Cristina Kirchner é a antítese do modelo de exploração do gás de xisto nos Estados Unidos.

Lá, as petroleiras de tamanho médio são incentivadas a inovar e a investir na produção — e é justamente isso que fazem. Onde as leis não estão ao sabor dos humores do presidente da vez, o único risco é perfurar um poço e não encontrar nada. Na Argentina de hoje, os empreendedores são vistos não como a solução, mas como o problema.

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