Fábrica da MAN: com ociosidade alta, a montadora vai ter o primeiro prejuízo em 35 anos de história (Daniel Marenco/Folhapress)
Da Redação
Publicado em 28 de outubro de 2015 às 12h01.
São Paulo — Para a fabricante de caminhões MAN, 2015 já tem um destaque definido na história. Será o primeiro ano em que a empresa alemã fechará o balanço com prejuízo no país desde que iniciou as atividades por aqui, como Volkswagen Caminhões, em 1980. Nesse período, a montadora passou por 17 crises, nas contas de Roberto Cortes, seu presidente.
Entre elas a recessão do início dos anos 80, o confisco da poupança no goveno Collor, em 1990, e a crise global de 2008. “Em todas essas crises, conseguimos terminar o ano com lucro”, diz Cortes. Segundo ele, a 18a crise é a pior de todas. “Já sofremos crises políticas, macroeconômicas e de confiança. Mas a atual é como se fosse uma combinação de todas as crises do passado.”
O resultado é que o ano se encaminha para uma queda de receita na casa dos 50%. “Vamos perder dinheiro pela primeira vez em nossa história.” O mau resultado ocorre após um período de bons frutos. De 2005 a 2011, a produção anual da empresa passou de 23 000 para 52 000 unidades.
O otimismo com o futuro do país era tanto que a capacidade de produção foi elevada em 65%, para 100 000 caminhões por ano. Aos poucos, porém, os problemas com a economia foram minando a confiança. Neste ano, a crise derrubou a produção, que deve encerrar 2015 em torno de 25 000 unidades, com 75% de capacidade ociosa.
Isso levou à redução da jornada de trabalho para apenas um turno — no auge, a fábrica operava em três turnos. Os 4 000 trabalhadores, incluindo os executivos, estão com o valor do salário 10% menor. O que torna a crise atual excepcionalmente ruim é o fato de a queda nas vendas vir acompanhada de alta dos custos.
Na MAN, cerca de 30% das peças são importadas ou têm o preço atrelado ao dólar, que em 2015 acumula alta de 44% (até 19 de outubro, dia do fechamento desta reportagem). Outros insumos, como o aço e a energia elétrica, também tiveram reajustes consideráveis. Como todas as montadoras sofrem os mesmos problemas, há excesso de estoque de produto e uma guerra de preços.
“Se o país vive uma tempestade perfeita, o setor de caminhões vive uma tempestade perfeita ao quadrado”, diz Cortes. A trajetória da MAN é típica da fase recente da economia brasileira. O crescimento dos últimos anos veio a reboque do aumento do consumo e do investimento com elevada dose de ajuda do Estado.
Desde o segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, principalmente, com Dilma Rousseff, o governo criou diversos programas setoriais para impulsionar a produção. Houve de quase tudo: isenções de impostos, crédito subsidiado e proteção contra a concorrência dos importados.
Só os empréstimos do Tesouro Nacional aos bancos públicos, como a Caixa Econômica Federal e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, principais canais desses programas, cresceram de 14 bilhões de reais, em 2007, para 511 bilhões, no ano passado. Outros programas sociais, como o Minha Casa, Minha Vida e o Minha Casa Melhor, também impulsionaram setores como a construção e o varejo.
Enquanto o país crescia, a arrecadação federal subia e o alto custo das bondades passava batido. Em 2015, a necessidade de fazer um ajuste fiscal, depois de o governo ter fechado as contas no vermelho no ano passado, se impôs e vários programas foram extintos ou reduzidos — deixando um rastro de destruição nas empresas que contavam com o apoio estatal para crescer.
Nos últimos anos, a MAN e suas conconcorrentes, como a Mercedes-Benz, a Iveco e a Ford, usufruíram do Programa de Sustentação do Investimento. O programa emprestava dinheiro a juros abaixo da média de mercado para que as transportadoras renovassem sua frota. No caso da MAN, quase 90% das vendas eram feitas no programa oficial.
O resto era compra do governo. Com o arrocho nos gastos públicos, as duas torneiras secaram. Os juros do Programa de Sustentação do Investimento já não são tão baixos e o setor público suspendeu as compras. Esses fatores, somados à crise de confiança, fecham a história de ascensão e queda da MAN.
Também fortemente beneficiado por incentivos, o setor de ensino superior privado é outro que padece. O Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) colocou 1,5 milhão de estudantes nas universidades provendo crédito para o pagamento de mensalidades. E, de quebra, transformou grupos como a Kroton e a Estácio nos maiores do setor no mundo.
Cerca de 55% dos estudantes matriculados na Kroton recebem financiamento do Fies. Em 2015, o governo criou regras que dificultam o acesso dos alunos ao programa e, segundo Romario Davel, sócio da consultoria Hoper, está atrasando os repasses de recursos às universidades. Só a Kroton, segundo Davel, tem a receber do governo 900 milhões de reais.
Eram 220 milhões no fim de 2014. O resultado é que o fluxo de caixa da empresa caiu 20% em 2015. E sua dívida subiu de 400 milhões de reais para quase 900 milhões do fim de 2014 até o fim de junho. “O corte do Fies abalou a saúde financeira das empresas de educação”, diz Davel. Ninguém discute a importância de facilitar os investimentos e o acesso à educação.
“O problema é que esses programas tomaram uma proporção exagerada e insustentável”, afirma o economista Mansueto Almeida, especialista em contas públicas. Em 2009, o montante de crédito do Programa de Sustentação do Investimento era de 44 bilhões de reais. No ano passado, foi para 452 bilhões. Os desembolsos do Fies saíram de 1,8 bilhão de reais para 14 bilhões por ano de 2011 a 2014.
Os recursos são obtidos via emissão de títulos do Tesouro Nacional. A operação afeta diretamente a dívida bruta, que saiu de 53% do PIB, em 2013, para 65%, hoje. Se à lista forem acrescentados programas como Fome Zero e Minha Casa, Minha Vida, verifica-se um aumento de custos para o setor público de 4,5 pontos percentuais do PIB. Não é pouco.
Um problema da mão amiga do governo é que as empresas acabam se tornando dependentes dela. Quando os recursos são cortados, o efeito é a paralisia. “Essas medidas foram importantes, mas o ideal é não depender delas para crescer”, diz José Luís Gonçalves, presidente da inglesa JCB, fabricante de retroescavadeiras.
A JCB também contou com compras públicas e crédito subsidiado na expansão dos últimos anos e, em 2015, amarga uma queda na produção de 45%. Setores que ainda usufruem de benefícios, como o de informática, lutam para mantê-los. Está para ser votada no Congresso uma medida provisória que revoga a isenção de impostos no setor e pode aumentar pelo menos 10% o preço de celulares e tablets.
“O corte de impostos permitiu à indústria nacional competir com produtos piratas e ampliar a inclusão digital”, diz Helio Rotenberg, presidente da Positivo, fabricante de computadores e celulares. “Se a isenção cair, o contrabando vai crescer, prejudicando quem produz legalmente e reduzindo a arrecadação do governo.”
É provável que seja esse mesmo o desfecho. Por isso, mais do que benesses pontuais, o que o país demanda é um ambiente que permita a todos andar com as próprias pernas.