EXAME.com (EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 22 de outubro de 2014 às 05h00.
São Paulo - A construção de teorias e conceitos para entender fenômenos políticos e sociais é resultado de um processo constante e sem fim. Poucos — bem poucos — desses estudos conseguem transbordar as fronteiras da academia, tornando-se parte do discurso cotidiano e influenciando a vida das pessoas.
Francis Fukuyama, historiador americano e professor de ciências políticas na Universidade Stanford, tornou-se um dos pensadores que saltaram os muros da academia quando publicou O Fim da História e o Último Homem, em 1992. Ali, apontava o triunfo das democracias liberais e do capitalismo de mercado.
É verdade que as ideias de Fukuyama são mais citadas do que lidas. Porém, 22 anos depois de seu ruidoso livro, a tese central de seu trabalho continua válida. Para ele, democracia e economia de mercado são a combinação mais adequada para promover o bem-estar nas sociedades.
É nesse sentido que a história tem um fim, já que a busca pelo melhor modelo havia terminado — ele nunca acreditou que todos os países do mundo abraçariam a democracia liberal.
Depois de décadas de críticas sofridas à direita e à esquerda, Fukuyama retoma a ideia da construção histórica de instituições políticas. Lançado no fim de setembro nos Estados Unidos, Political Order and Political Decay (no Brasil, o título será As Origens da Ordem Política — Da Revolução Industrial à Globalização da Democracia, com lançamento previsto para o primeiro semestre de 2015) é o segundo volume de uma jornada intelectual que merece, mais uma vez, posicionar o autor na lista dos mais vendidos.
No primeiro livro, As Origens da Ordem Política, lançado em 2011, Fukuyama abarca o período da pré-história à Revolução Francesa. No novo livro, o autor analisa os últimos dois séculos e continua argumentando que democracia e economia de mercado são a melhor resposta para as sociedades, o que não significa que o triunfo dessa combinação esteja garantido.
Segundo Fukuyama, as sociedades que mais avançaram só o fizeram porque conseguiram balancear três pilares institucionais. O primeiro é o Estado forte. Não se trata de um governo autoritário ou o controle cada vez maior sobre a economia, e sim de um poder central respeitado e capaz de derrotar ataques desestabilizadores a seu eixo central.
Todas as sociedades precisam gerar poder suficiente para derrotar inimigos externos e internos e para garantir o cumprimento de regras comumente acordadas.
Da mesma forma, todas as sociedades precisam regulamentar o exercício do poder por meio da lei para garantir que essas mesmas leis sejam aplicadas de forma impessoal a todos os cidadãos e que não existam exceções para um pequeno grupo de privilegiados. O segundo pilar, portanto, é a existência duradoura do clima de respeito às leis, que costumamos chamar de império da lei.
O terceiro e último elemento essencial para garantir a melhor organização social é a capacidade da sociedade de controlar os governos, seus atos e suas burocracias.
Não deixa de ser curioso o fato de não existir tradução no português para a palavra inglesa que resume essa característica: accountability (talvez a que melhor se aproxime dessa ideia seja “responsabilização”— uma palavra, aliás, bem pouco utilizada). Fukuyama deixa clara a importância que dá à accountability: o termo aparece 126 vezes em todo o livro.
Os governos devem responder não apenas às elites ou àqueles que estão no comando da máquina do Estado mas também aos interesses de toda a comunidade.
O sucesso de uma sociedade virá, segundo Fukuyama, com a melhor combinação desses três elementos. Nesse sentido, Estado forte, império da lei e accountability se tornarão requisitos universais para todas as sociedades com o passar do tempo. O fundamental é haver um balanço de poder entre governo e sociedade. Se um dos dois se torna dominante, surgem problemas.
E o Brasil?
Por que um livro de mais de 600 páginas sobre política merece ser lido pelos brasileiros? Primeiro, porque Fukuyama esclarece ideias e conceitos aplicáveis ao presente. É comum confundirmos o real significado das instituições políticas. Elas são normalmente associadas a órgãos como ministérios ou o Supremo Tribunal Federal.
Na verdade, instituições são padrões recorrentes e estáveis de comportamento. São as regras do jogo. Elas são fundamentais para o andamento de qualquer sociedade. Por exemplo, uma economia sólida só funciona com boas instituições políticas.
A lei precisa valer para todos, o direito de propriedade precisa ser respeitado e as oportunidades precisam ser reais para todos. Portanto, há uma conexão clara e indivisível entre as regras do jogo político e a vida de qualquer cidadão.
O segundo motivo para ler o livro é que Fukuyama constrói seu pensamento sobre uma sólida tradição intelectual. Logo no começo, o autor admite que o livro é um esforço para reescrever e atualizar o clássico Political Order in Changing Societies (“Ordem política em sociedades em transformação”, numa tradução livre), publicado pelo cientista político americano Samuel Huntington em 1968.
Os dois livros desmistificam uma ideia comum no Brasil. Eles mostram que desenvolvimento político é um processo separado de crescimento econômico e social.
Nós, brasileiros, muitas vezes nos vemos presos no que pode ser classificado na ciência política como “teoria da modernização”: basicamente, a ideia de que o desenvolvimento econômico vai produzir maior mobilização social e, consequentemente, uma democracia sólida e consolidada.
Como mostrou Huntington, pode haver um buraco entre a mobilização da população e a capacidade das instituições de acomodar novas demandas. Quando isso ocorre, a ordem política é quebrada. As instituições, portanto, devem ter capacidade para se adaptar.
A teoria da modernização erra ao acreditar que existe um caminho inexorável rumo ao desenvolvimento democrático e econômico. Isso porque instituições políticas também podem sofrer com a decadência.
Enquanto instituições saudáveis promovem regras impessoais, em todas as sociedades existem grupos que tentam capturar o Estado baseados em redes de conexões com familiares, amigos ou colegas de partido. As regras passam a valer como instrumento para proteger suas posições e promover benefícios. Longos períodos de prosperidade podem dar a quem está no poder oportunidades para se perpetuar nele.
Em seu novo livro, Fukuyama retoma conceitos de Huntington para mostrar que a resposta para os protestos que irromperam no Brasil e na Turquia no ano passado, as crises do governo americano ou os desafios da Líbia pós-Muamar Kadafi pode ser encontrada no mesmo lugar: as instituições.
No caso brasileiro, ele vê as mudanças sociais superando as instituições existentes, especialmente como uma resposta à corrupção. Isso significa que a vida política do país não passa despercebida dos cidadãos.
É um erro achar que a falta do império da lei não nos atingirá, mesmo quando uma empresa vai bem ou quando a classe C está em ascensão. Inevitavelmente, essa brecha entre a sociedade e as instituições vai cobrar seu preço.
Não é exagero dizer que as perguntas e as respostas de Fukuyama são especialmente válidas para o Brasil contemporâneo. Por que a Petrobras perdeu tantos bilhões de dólares de seu valor de mercado após casos de corrupção e problemas de gestão? Os desvios milionários são fruto de falhas institucionais e cobram um preço alto. Muito alto.
A resposta está, pelo menos parcialmente, no desenvolvimento político. Nas palavras de Fukuyama, esse desenvolvimento é a mudança de instituições políticas com o passar do tempo. Isso é diferente de políticas públicas ou políticas partidárias.
Quando pensamos no tripé Estado forte, império da lei e accountability, o Brasil ainda tem um considerável caminho a percorrer. A possibilidade da decadência política é real para qualquer sociedade. Por ora, estamos avançando. Mas todo cuidado é pouco.