Impressão de dólares nos Estados Unidos: para Lara Resende, o controle da inflação com a taxa de juro precisa ser debatido (Mark Wilson/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 16 de junho de 2017 às 05h55.
Última atualização em 16 de junho de 2017 às 05h55.
"Desde que surgiu no cenário da vida pública brasileira no fim do Estado Novo, a tecnocracia teve sua importância mantida em ritmo crescente, sendo acompanhada pela contínua desvalorização da política e dos políticos profissionais. Enquanto a política se tornava incapaz de atrair os bem formados e bem-intencionados — ‘los mejores’, na expressão do filósofo e ensaísta José Ortega y Gasset —, os canais tecnocráticos de acesso ao poder ficavam cada vez mais rápidos e atraentes. Sobretudo desde o regime militar, jovens macroeconomistas bem formados, ainda que sem qualquer experiência de vida pública, tiveram oportunidades excepcionais de participar do governo brasileiro em posições destacadas.
Em um artigo recente, o cientista político Bolívar Lamounier se pergunta por que os economistas não substituíram os advogados nos quadros da política representativa e por que os economistas não se interessaram em ocupar o espaço deixado pelos advogados como a principal profissão de acesso à vida pública. A resposta é que, para os economistas, o acesso pela via tecnocrática tem sido incomparavelmente mais rápido e mais eficaz.
A qualificação técnica de economista dá hoje acesso a quase todas as áreas do governo, mas é nos bancos centrais que ela é monopolística, não sofre concorrência de políticos de carreira nem de outro profissional sem formação técnica macroeconômica. É também nos bancos centrais que o poder dos economistas está menos sujeito a questionamento e deve menos satisfação às diversas instâncias da democracia representativa.
A diretoria do Banco Central tem grande autonomia, não apenas em relação ao Legislativo como também em relação ao Poder Executivo e ao próprio Ministério da Fazenda, ao qual está subordinada. A legitimidade para continuar a dispor do poder de que dispõem os macroeconomistas do Banco Central, assim como a própria reivindicação de autonomia dos bancos centrais, depende essencialmente da ideia de que a política monetária tem sólidos fundamentos conceituais, inacessíveis aos que não têm formação especializada.
Não há dúvida de que a interferência política espúria pode ter sérias consequências para a condução da política monetária. A autonomia operacional dos bancos centrais e sua separação em relação ao Tesouro Nacional na divisão de trabalho para a gestão da dívida pública faziam sentido enquanto os balanços dos bancos centrais eram pequenos em relação ao orçamento fiscal e à dívida pública.
Hoje, praticamente em toda parte, isso já não é mais verdade. Nos últimos anos, sobretudo depois da crise financeira de 2008 nos países desenvolvidos, a linha demarcatória entre as políticas monetária e fiscal ficou bem menos nítida com o advento do quantitative easing (programa de compra de títulos de governos em poder dos bancos) e com a política monetária passando a ser conduzida primordialmente por meio da taxa de juro nas reservas bancárias.
Quando os bancos centrais passam a operar por meio de reservas remuneradas, assumindo para si valores expressivos em relação à dívida pública, e têm liberdade para comprar ativos financeiros privados, a política monetária se torna um dos componentes da política fiscal. Fica comprometida a defesa da autonomia dos bancos centrais, assim como a tese de que a política monetária é assunto técnico, no qual não cabem escolhas políticas.
A última trincheira da defesa da autonomia dos bancos centrais passa a ser, então, a complexidade técnica e os sólidos fundamentos conceituais que devem pautar a política monetária. Talvez seja essa a razão pela qual, mais do que nunca, haja necessidade de blindar a teoria monetária de seus críticos, de transformar suas premissas e corolários em dogmas, de certificar-se de que as críticas aos fundamentos não extrapolem as fronteiras da academia.
A defesa da ortodoxia monetária tem longa tradição acadêmica e política. Mesmo quando diante de recorrentes fracassos práticos, como no caso do combate à inflação crônica, insistiu-se sempre em preservar a teoria e culpar a falta de vontade política de seguir a cartilha. Quando a revisão se tornou imperativa, como no fim dos anos 90, com a substituição da moeda pela taxa de juro como a variável exógena dos bancos centrais, a saída foi pretender que não houvesse uma revolução conceitual, e sim apenas uma evolução sem perda de continuidade da teoria.
No Brasil, desde os anos 50, com Eugênio Gudin (economista e ex-ministro da Fazenda) e seus discípulos, a tentativa de estabilizar a inflação crônica por meio da contração do crédito e da liquidez, conforme recomendava a ortodoxia, provocou crises bancárias, desemprego e recessão, sem derrotar a inflação. Foi também provavelmente um fator importante para a derrota política do liberalismo ilustrado. No longo prazo, portanto, seu custo pode ter sido ainda mais alto. Tudo o que o liberalismo ilustrado de Gudin acertadamente propunha ficou comprometido pelos resultados traumáticos de sua equivocada ortodoxia monetária.
Mudaram-se os tempos, a teoria foi revista a contragosto, mas o apego à ortodoxia monetária continua tão forte quanto antes. Hoje, a ortodoxia já não dita regra para o controle dos agregados monetários, mas para a taxa de juro. Assim como no passado a desastrada tentativa de aplicar regras rígidas de controle da moeda e do crédito diante de um processo inflacionário crônico, nas últimas duas décadas a insistência em aplicar uma nova ortodoxia, agora baseada numa regra para a taxa de juro, pode ter causado danos mais graves do que se aparenta.
A moeda é uma convenção social. As questões monetárias são, portanto, indissociáveis dos costumes, das instituições e da tecnologia que estão sempre em evolução. Nada mais inadequado para ser congelado numa ortodoxia defendida com unhas e dentes de todo questionamento intelectual. Quando essa ortodoxia é integralmente importada, sem qualquer análise crítica a respeito de sua propriedade e eficácia nas condições locais, os riscos e os custos podem ser ainda mais altos.”