Chinês caminha em rua vazia de Pequim: o coronavírus reduziu a atividade econômica e as emissões, mas não é preciso uma nova pandemia para evitar danos ao planeta (Kevin Frayer/Getty Images)
Rodrigo Caetano
Publicado em 18 de junho de 2020 às 05h30.
Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 12h28.
Um calor insuportável castiga Nova Délhi, na Índia. Temperaturas acima de 50 graus Celsius impossibilitam as pessoas de sair de casa. Por causa do calor, boa parte do Oriente Médio está inabitável. Na Europa, o aquecimento global aflige a população mais velha. Em Paris, a temperatura média aumentou de 6 a 7 graus. O cenário é agravado por uma crise migratória. Milhões de pessoas fogem do clima inóspito do Magrebe, no noroeste da África. Países europeus e asiáticos, especialmente a Rússia, são obrigados a fechar a fronteira.
No Brasil, a expressão “Rio 40 graus” nunca fez tanto sentido. Os cariocas passam dias enfrentando temperaturas acima dos 35 graus. O clima de monções não é mais predominante na Região Sudeste, que se transforma em uma savana tropical. Na América do Norte, o derretimento das geleiras converte cidades costeiras em museus submersos. Casas suntuosas à beira-mar desaparecem, gerando perdas bilionárias de patrimônio. Uma intensa temporada de furacões devasta boa parte do Caribe e do sul da Flórida. Sem conseguir arcar com os prejuízos, as seguradoras precisam recorrer aos governos.
Essas são algumas das previsões dos cientistas sobre o que vai acontecer até o fim do século se nada for feito para conter as emissões de carbono. É um cenário catastrófico, com efeitos incalculáveis para a economia. Talvez nem todos esses efeitos do aquecimento global se tornem realidade. O risco, no entanto, está colocado.
E um número cada vez menor de empresários, investidores e líderes políticos está disposto a pagar para ver, especialmente após a pandemia do coronavírus. Inicialmente, a crise da covid-19 interrompeu o debate sobre as mudanças climáticas que vinha crescendo desde o último Fórum Econômico Mundial, ocorrido em janeiro em Davos, na Suíça. Com o choque, todas as atenções se voltaram para as ações de controle do vírus e de mitigação dos efeitos econômicos da quarentena. Parecia que o meio ambiente ficaria em segundo plano.
Passado o susto inicial, no entanto, e à medida que o debate muda da salvação para a retomada da economia, o assunto tem voltado à pauta. “Crises como a causada pela covid-19 e os impactos das mudanças climáticas não respeitam barreiras geográficas ou políticas e evidenciam desigualdades e vulnerabilidades sociais”, afirma Candido Bracher, presidente do Itaú Unibanco, maior banco privado do país. “Os danos causados pelas mudanças climáticas podem até ser mais lentos, mas certamente são mais duradouros do que os da pandemia” (leia entrevista abaixo).
Na semana passada, o Fórum Econômico Mundial lançou um movimento batizado de O Grande Reset. Seu mote é promover a ideia de que o mundo não pode, simplesmente, retornar ao que era antes — é preciso repensar o sistema. “As mudanças climáticas não foram embora”, afirma Dominic Waughray, diretor de iniciativas ambientais da entidade. “A pergunta que temos de fazer é se queremos continuar com essas mudanças ou fazer as coisas de maneira ligeiramente diferente.” O Grande Reset prevê não somente a mitigação dos riscos mas também a geração de oportunidades com a transição para uma economia de baixo carbono. A proposta é usar as tecnologias da chamada indústria 4.0 para promover uma nova economia — sustentável e que viabilize um novo contrato social.
Pelo Acordo de Paris, o mundo deve manter a elevação das temperaturas em até 2 graus. Para isso, é preciso diminuir 80% das emissões até 2050. Mas, exceto por um hiato durante esta pandemia, que praticamente paralisou a economia, as emissões de gases de efeito estufa estão aumentando. Nenhuma grande economia, atualmente, cumpre com os compromissos estabelecidos em Paris.
A dificuldade de avançar com essa agenda é agravada pelo fato de que a crise atual ainda não provocou um esforço conjunto dos países. Em 2009 foi formado o G20, grupo instituído para definir ações integradas de recuperação econômica após a crise de 2008. Desta vez, o setor privado e a sociedade civil terão papéis relevantes nos esforços de retomada.
Pelo menos uma das potências econômicas mundiais, porém, está engajada em um esforço de grande porte para incluir o combate às mudanças climáticas nos planos de retomada: a Europa. No final de maio, a União Europeia apresentou seu Green Deal, um plano de incentivo econômico que tem como fio condutor a redução das emissões de carbono.
“Precisamos ter certeza de que a recuperação da crise do coronavírus esteja calcada na transformação ambiental e digital”, afirmou Frans Timmermans, primeiro vice-presidente da Comissão Europeia, que está à frente do plano. O compromisso não é apenas retórico. Aproximadamente um quarto do orçamento do bloco para os próximos sete anos será destinado a iniciativas verdes, como energias renováveis, eletrificação dos transportes e construção sustentável. Isso representa investimentos superiores a 460 bilhões de euros na nova economia.
O Green Deal europeu, exceto pela parte ambiental, não é muito diferente do New Deal americano, série de programas de incentivos instituída pelo presidente Franklin Delano Roosevelt após o crash de 1929. “Ao investir em infraestrutura, a Europa espera tornar sua indústria mais competitiva no cenário global”, afirma o ambientalista Ilan Cuperstein, ex-representante brasileiro no Centro China-Brasil de Mudanças Climáticas.
Para quem prefere ignorar os riscos das mudanças climáticas, o pacto verde traz um sentido de oportunidade. Ao estabelecer padrões mais rígidos de acesso ao mercado europeu, o bloco protege sua indústria e, ao mesmo tempo, permite ao setor desenvolver as tecnologias para acessar mercados externos e competir com a China.
Na corrida pelos maiores filões da nova economia, o gigante asiático encontra-se à frente em diversos aspectos. A China é, atualmente, o maior produtor de energia renovável do mundo e o maior exportador de painéis solares. Além disso, os chineses avançam sobre o setor automobilístico, um bastião industrial europeu, especialmente na América Latina.
A mudança para o motor elétrico pode encerrar o reinado da Volkswagen e da Renault na região. “A Europa sempre dominou o mercado latino-americano de automóveis. Mas as montadoras ainda relutam em atualizar suas fábricas”, afirma Cuperstein. “O mesmo se dá no setor de ônibus elétricos. A América Latina tem a segunda maior frota e os europeus estão totalmente fora desse mercado.”
O sentido de oportunidade do Green Deal europeu é corroborado pelo desempenho do setor de energia limpa neste ano. Apesar da pandemia, as fontes renováveis apresentaram crescimento de cerca de 1%, o que é considerável diante da queda de 9% do setor petroleiro e de quase 8% do carvoeiro. Mas esse mercado também gera um contratempo. Alguns países do bloco, em especial a Polônia e a República Tcheca, não veem com bons olhos a transição energética, por ser grandes produtores de energia a carvão. “O que a União Europeia está fazendo é elevar a barra ao máximo para garantir um patamar mínimo de regulação”, afirma o economista Ronaldo Seroa da Motta, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). “Provavelmente, essa versão do Green Deal não será a que vai passar. Mas algum plano será aprovado.”
Outro aspecto polêmico diz respeito à taxação de produtos na fronteira, com base nas emissões de carbono do país de origem. Teoricamente, a medida geraria pontos de atrito com a China, que ainda é amplamente dependente do carvão. Por outro lado, o relacionamento entre chineses e europeus nunca esteve tão próximo. “Há mais concordância do que discordância”, diz Tulio Cariello, coordenador de pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China.
“A questão ambiental é um dos pilares do desenvolvimento chinês.” Neste ano, aconteceria uma importante reunião de cúpula entre as duas potências na Alemanha. A meta era determinar as diretrizes das relações sino-europeias para a próxima década. A covid-19, no entanto, forçou seu cancelamento.
O tema ambiental também recebe uma crescente atenção do mercado financeiro, tanto do ponto de vista dos riscos quanto das oportunidades. No primeiro caso, é crescente a preocupação com eventos catastróficos com potencial de gerar grandes rupturas no mercado. No final do ano passado, o Banco de Compensações Internacionais (BIS), uma espécie de banco central dos bancos centrais, publicou um documento no qual alerta que as mudanças climáticas podem ser o gatilho de uma nova crise financeira global. Em maio deste ano, o BIS publicou um segundo documento sobre o tema, classificando a pandemia da covid-19 de “cisne verde” e alertando para os riscos de uma nova ruptura, dessa vez causada pelas mudanças climáticas.
Na semana passada, quatro gestoras de fundos brasileiras, cujos ativos somados chegam a 1,2 trilhão de reais, comprometeram-se a priorizar as questões climáticas em suas decisões de investimento. Assinaram o pacto o BTG Pactual Asset Management (que faz parte do grupo que controla a EXAME), a Itaú Asset Management, a JGP e o Santander Asset Management.
A iniciativa foi coordenada pelas organizações Sitawi Finanças do Bem e Instituto Clima e Sociedade. “Estamos diante de um ponto de inflexão”, afirma Gustavo Pimentel, diretor da Sitawi. A BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, com mais de 6 trilhões de dólares em carteira, utiliza um sistema proprietário de análise de riscos e construção de portfólios chamado Aladdin. Neste ano, a gestora finalizou uma atualização do sistema para incluir métricas de ESG (sigla para meio ambiente, social e governança), transversalmente, em todas as suas análises.
O ESG estabelece padrões mensuráveis de gestão sustentável. De acordo com Bracher, do Itaú, o banco também utiliza o conceito em suas avaliações. “Para nós, a avaliação ESG já é realidade. Também temos oferecido ativos novos, como os green bonds”, afirma Bracher, referindo-se aos títulos de dívida voltados para iniciativas de baixo carbono, como projetos de energia renovável.
No mundo, os títulos verdes movimentam mais de 400 bilhões de dólares. Esse é um dos exemplos de como o setor financeiro também enxerga a transição como uma oportunidade. Neste ano, o banco BV, ligado ao Grupo Votorantim, emitiu 50 milhões de dólares em green bonds. “A intenção foi testar a demanda”, afirma Gabriel Ferreira, presidente da instituição. “Existe uma tendência clara de interesse por parte dos investidores.”
A pandemia, nesse contexto, promove um pensamento de curto prazo, que prejudica a agenda ambiental, essencialmente de longo prazo. “A covid-19 é um exemplo do que pode ser um desastre ambiental”, afirma Ferreira. “É um evento improvável, de escala global, com impactos em vidas e na economia. Talvez estejamos pagando esse preço para que a sociedade aprenda.”
Apesar do esforço dos bancos, o Brasil encontra-se numa posição arriscada. Até o ano passado, o país mantinha uma posição de liderança nesse debate, sendo um dos signatários do Acordo de Paris mais comprometidos com a redução das emissões. O governo de Jair Bolsonaro, no entanto, tomou a decisão de retirar o país do debate. Isso ficou claro na COP25, realizada em Madri no final do ano passado. Foi a primeira conferência do clima em que o Brasil não incluiu empresários e ambientalistas em sua comitiva — apenas o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e alguns assessores fizeram parte da delegação oficial.
O aumento recente do desmatamento também tem comprometido a credibilidade brasileira. “Ao fazer isso, o Brasil adota o mesmo posicionamento da Polônia e da República Tcheca, o bloco mais fraco da União Europeia”, afirma o ambientalista Cuperstein. “Eu não sei como essa estratégia poderá trazer algum benefício.” Alinhar-se aos Estados Unidos também é arriscado, visto que a maior economia do mundo compete com o Brasil em diversos mercados agrícolas. O fato é que, seja pelo medo das consequências, seja pelas oportunidades, a agenda ambiental promete crescer nos próximos anos. Por enquanto, o Brasil está na contramão desse movimento.
“ATENÇÃO AO COMO SE FAZ”
Candido Bracher, presidente do Itaú Unibanco, diz que o governo tem de coibir as queimadas na Amazônia e gastar mais em 2020, mas sem perder o equilíbrio | Rodrigo Caetano