(Evan Kafka/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 17 de novembro de 2016 às 05h55.
Última atualização em 17 de novembro de 2016 às 05h55.
São Paulo – Paulo Chaves estava preocupado naquele 16 de julho de 2015. Sem trabalho já havia seis meses, ele tinha ouvido rumores de crianças raptadas por gente que entrava nas casas fingindo fazer uma pesquisa com os pequenos. Por isso ficou desconfiado quando soube que a agente Cláudia Sabará havia estado em sua casa dizendo que gostaria de brincar com seu filho Miguel, de 1 ano e 5 meses.
Também moradora de Paraisópolis, segunda maior favela de São Paulo, com mais de 50.000 habitantes, dos quais cerca de 4.000 com até 3 anos de idade, Cláudia havia entrado para um time da Universidade de São Paulo responsável por uma pesquisa. O objetivo era medir em crianças de 1 a 3 anos de idade o impacto de visitas quinzenais nas quais agentes como Cláudia iriam incentivar, por cerca de 12 meses, a interação entre os bebês e os adultos responsáveis por seu cuidado. Um teste feito no começo para medir o estágio de desenvolvimento da criança seria comparado com outro ao final.
Vestindo um jaleco branco e com um saco de brinquedos à mão, Cláudia sentou no sofá da sala na casa de Paulo para esclarecer as dúvidas. Repetiu o que já havia dito à mãe da criança. Falou sobre o projeto realizado em comunidades carentes da zona oeste de São Paulo, explicou que os brinquedos eram feitos de material reciclável e disse que a meta de tudo aquilo era melhorar o desenvolvimento de seu filho. Foi nesse ponto que Paulo perguntou: “É possível obter algum sucesso morando num bairro como o nosso?”
A pergunta sobre o futuro do filho tinha como pano de fundo sua história. Morador de Paraisópolis desde que chegou do Pará, em 1996, Paulo diz que tentou se aprimorar. Fez vários cursos — de primeiros socorros, procedimentos operacionais, manutenção de microcomputadores... — e montou no piso acima da sala uma biblioteca com livros que foi achando na rua e ganhando de amigos. Apesar dos esforços, sente que nunca conseguiu voar alto. Começou a trabalhar entregando marmitex, foi faxineiro e, quando chegou ao ápice como auxiliar de almoxarifado, foi demitido.
De julho de 2015 a maio de 2016, EXAME acompanhou mensalmente as visitas de Cláudia a três crianças da comunidade. Ouvimos ao longo desses meses cerca de 40 especialistas em primeira infância. A cientistas, economistas, políticos e pesquisadores, fizemos o mesmo questionamento: as visitas domiciliares podem mesmo ajudar crianças de bairros pobres a ter sucesso na vida? A resposta a essa questão interessa a todos os brasileiros: de pais e mães a empresários preocupados com a qualidade da mão de obra.
Com o lançamento, no começo de outubro, do Criança Feliz, o questionamento ganhou uma dimensão maior. O programa de visitação do governo federal tem como meta atingir, ao longo dos próximos anos, cerca de 4 milhões de crianças do Bolsa Família de zero a 3 anos de idade. O governo não vai contratar profissionais de ensino para atender as crianças. Serão agentes como Cláudia que cuidarão do que está sendo considerado pela ciência a nova fronteira da educação.
Não se trata de educação no sentido escolar — os pequeninos vão, apenas, brincar. Mas esse período dos três primeiros anos de vida é hoje visto como a base da formação do capital humano. Quanto mais pesquisadores de diferentes áreas tentam entender como desenvolvemos as habilidades necessárias para uma vida adulta bem-sucedida, mais eles focam o período da primeira infância. Pode parecer paradoxal: algumas das maiores lições da vida nossos filhos aprendem em casa, quando mal sabem falar.
Ao ouvir a pergunta do pai de Paraisópolis, Jack Shonkoff, professor de medicina e diretor do Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade Harvard, disse que andava pensando muito sobre aquele assunto. Em sua sala localizada a poucas quadras do campus de Harvard, e onde mal cabem uma mesa, duas cadeiras e uma pequena estante de livros, Shonkoff disse que um bom programa voltado para o desenvolvimento infantil não é uma imunização contra a pobreza. “Mas um bom programa de visitação irá ajudá-las a desenvolver as habilidades necessárias para aproveitar as oportunidades, se elas surgirem”, afirmou.
Ele justificou sua resposta dizendo que há uma revolução em curso na medicina. Nas últimas duas décadas, progressos na área da neurociência têm revelado detalhes do funcionamento cerebral. O cérebro se desenvolve num processo contínuo. O período mais ativo, porém, acontece nos primeiros anos, quando de 700 a 1 000 novas conexões neurais são formadas por segundo. São esses bilhões de ligações que permitem a rápida comunicação entre as várias partes do cérebro, cada uma com uma função.
Uma região em particular, o córtex pré-frontal, chama a atenção. Ele é o responsável pelos processos mentais que nos permitem desenvolver habilidades como planejar, executar uma tarefa com atenção e memorizar uma informação para usá-la mais adiante — justamente as bases do aprendizado. Embora os cientistas já soubessem da importância do córtex pré-frontal há muito tempo, novas pesquisas permitiram que descobrissem os circuitos cerebrais responsáveis pelas habilidades.
Os cientistas costumam comparar esses processos mentais com uma torre de controle num grande aeroporto. Como um operador de tráfego aéreo, o cérebro precisa priorizar tarefas, evitar distrações e controlar impulsos. As crianças não nascem com essas habilidades — conhecidas como funções executivas. Elas nascem com a capacidade de aprendê-las. É nesse ponto que entram os adultos.
“Se as pessoas responsáveis por cuidar da criança não a estimulam desde o início, deixando que passe o dia inteiro na frente de uma tela de TV ou celular, ela provavelmente terá desvantagens quando entrar na escola, em comparação com uma que foi estimulada. Isso quer dizer mais trabalho para os professores no futuro”, diz Shonkoff.
Mas pode ser muito pior do que isso. Quando a criança é negligenciada ou maltratada, a comunicação entre o córtex pré-frontal e as outras regiões do cérebro é afetada e problemas de desenvolvimento e comportamento são registrados. Um dos casos mais extremos é o de crianças com estresse tóxico. Criadas num ambiente sem rotina, inseguro emocionalmente ou vítimas de violência, elas perdem a capacidade de lidar com frustrações.
As pessoas reagem de diferentes maneiras quando batem na porta de sua casa à tarde e de madrugada. O normal é que apenas o chamado fora de hora gere preocupação. Quem sofre de estresse tóxico, porém, sente que toda batida na porta equivale a acordar aos berros no meio da noite. Essas pessoas podem até aprender a se controlar. Mas é muito mais difícil.
A analogia aqui é com dois músicos. Um aprendeu a tocar desde pequeno e teve anos de prática. O outro só começou a aprender o instrumento quando já era grande e a base de sustentação de sua habilidade é mais fraca. “Os governos têm a obrigação de orientar famílias em situação vulnerável”, afirma Charles Nelson, professor de neurociência em Harvard que ficou mundialmente famoso com um estudo sobre crianças de orfanatos na Romênia.
Desassistidas, tiveram o desenvolvimento físico e mental totalmente afetados. As evidências acumuladas até agora por psicólogos, com suas observações, e por cientistas, com suas experiências, é de que a atenção é crucial para as crianças — e isso não vai mudar. Mas as pesquisas que têm revelado como o ambiente afeta a manifestação dos genes e o desenvolvimento do cérebro podem estar próximas de um novo salto.
Até recentemente, quem sofria de uma doença tinha à disposição um remédio. Hoje já existem medicamentos específicos para grupos de pessoas com determinadas características genéticas. “Não chegamos lá ainda. Mas é possível que um dia possamos fazer uma análise da carga genética de crianças em situações de risco e pensar em diferentes tipos de programas sociais para engajar os cuidadores”, diz Shonkoff.
James Heckman, professor emérito da Universidade de Chicago e ganhador do Nobel de Economia no ano 2000, é o principal nome da área em assuntos sobre primeira infância. Diante da pergunta sobre o futuro do pequeno Miguel, de Paraisópolis, ele diz: “Se programas sociais conseguirem melhorar a dinâmica da relação entre os pais e o filho, as chances de sucesso dessa criança aumentam bastante”. O trabalho de Heckman nas últimas décadas comprova que os primeiros anos de vida são cruciais para definir a produtividade dos trabalhadores no futuro.
No início da década de 60 nos Estados Unidos, educadores, profissionais da área da saúde e psicólogos aceleraram as pesquisas para entender os mecanismos que condenavam crianças à pobreza e — principalmente — o que precisava ser feito para revertê-los. Um desses estudos foi o da pré-escola Perry. De 1962 a 1967, 123 crianças de 3 e 4 anos, na maioria negras, de um bairro pobre de Ypsilanti, no estado de Michigan, tiveram, todas as semanas, 2 horas e meia de atividades numa creche e receberam visitas dos professores em casa.
Quando adultos, os ex-alunos da pré-escola Perry tinham uma série de vantagens na comparação com pessoas que não haviam feito parte do programa. Aos 27 anos, apenas 7% tinham sido presos cinco ou mais vezes, incidência baixa se comparada aos 35% de quem não frequentou a pré-escola. Aos 40 anos, os ex-alunos da Perry tinham empregos melhores e ganhavam mais.
Pelos cálculos de Heckman, a taxa de retorno de cada dólar investido nas crianças foi enorme — de quase 8% ao ano. Nessa conta entram tanto os ganhos com mão de obra mais produtiva quanto a economia contabilizada pelo governo com a diminuição de prisões.
Para os economistas, um grande dilema costuma acompanhar as discussões sobre capital humano. O poder público pode investir para aumentar a eficiência da economia ou foca suas energias para diminuir a desigualdade social. Um exemplo: ao dar uma vaga numa universidade pública de ponta para um aluno brilhante, o Estado gera mais eficiência. Quanto mais preparado esse futuro profissional, maior será a produtividade do país.
A questão é que essa política pode ter como subproduto a desigualdade. No caso de bebês, esse dilema desaparece. Nenhum se destacou ainda. “Na primeira infância, boas políticas públicas geram eficiência e, ao mesmo tempo, combatem a desigualdade”, diz o mineiro Rodrigo Pinto, professor de economia na Universidade da Califórnia, que já publicou mais de uma dúzia de trabalhos com Heckman desde a década passada.
Há outra questão. Programas de alfabetização de adultos costumam ter um custo alto. Quando atingem a meta, o que nem sempre acontece, as pessoas alfabetizadas têm uma vida melhor, mas raramente conseguem dar uma guinada do ponto de vista produtivo. As taxas de retorno dos investimentos na primeira infância tendem a ser mais altas também porque os programas acontecem cedo e formam a base sobre a qual os demais conhecimentos serão acumulados.
Mas o mais importante talvez não seja nem isso. Diminuir as diferenças entre crianças ricas e pobres na largada da vida dá legitimidade a uma ideia cara a todos os grandes defensores do liberalismo — a ideia da meritocracia, a de que os realmente melhores terão destaque profissional, não apenas os melhores entre as famílias com recursos.
Um artigo publicado na revista científica Lancet no começo de outubro estima que existam 219 milhões de crianças com menos de 5 anos em países de renda média, como o Brasil, e baixa, como a maioria dos africanos, que correm o risco de não se desenvolver plenamente. Nos casos em que isso se confirmar, elas terão, quando adultos, uma renda entre 8% e 19% inferior.
É imenso o desafio de dar a essas crianças a oportunidade que todos merecem. “Apesar dos avanços, ainda temos muito a descobrir sobre como desenvolver as habilidades das crianças, como ajudá-las a ter sucesso na vida”, diz Heckman.
O médico Osmar Terra, deputado federal gaúcho no quinto mandato, é tido em Brasília como um político que dá pouca atenção à aparência. Não usa roupas caras e não anda em carro zero-quilômetro. Sua vaidade, dizem, é intelectual.
Quem o conhece garante que é um político de ideias. Duas ideias mais especificamente: oposição a quem defende a liberalização das drogas e a defesa dos programas voltados para a primeira infância. Poucos meses depois de assumir o Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome, Terra anunciou o Criança Feliz.
“Ele é, há anos, um estudioso no assunto”, diz Mary Young, que trabalhou mais de duas décadas no Banco Mundial na área de primeira infância e é uma espécie de guru do ministro. Talvez por isso, quando perguntado sobre a chance de futuro de uma criança de um bairro como Paraisópolis, Terra tenha dado uma resposta mais acadêmica do que política: “De acordo com uma grande quantidade de evidências, é possível mudar o início do jogo para as crianças em situação de vulnerabilidade”.
Num almoço em seu gabinete em Brasília, o ministro conta que viu isso acontecer no Rio Grande do Sul. Quando era secretário da Saúde em 2003, lançou o Primeira Infância Melhor, programa de visitação que foi mantido pelos governos seguintes e hoje atende cerca de 60 000 crianças. Não é um serviço pensado para substituir as creches. Como afirma Theresa Betancourt, diretora do Programa de Pesquisa sobre Crianças e Adversidade Global, de Harvard, as visitas domiciliares costumam ser mais eficazes com famílias vulneráveis.
Depois do Primeira Infância Melhor, outros estados e municípios espalhados pelo Brasil seguiram pelo mesmo caminho. “Será a partir da base já existente que iremos expandir o Criança Feliz”, diz Terra. A meta, ambiciosa, é atingir de 100.000 a 140.000 crianças nos três meses que restam do ano. Em 2017, o governo pretende chegar a cerca de 600.000 crianças; em 2018, 1,5 milhão; e, nos anos seguintes, atingir 4 milhões.
As reuniões com os prefeitos eleitos deverão começar depois do segundo turno das eleições municipais. Como o programa depende da adesão das prefeituras, espera-se que Marcela Temer ajude a sensibilizar as primeiras-damas municipais. Para os críticos, porém, a verba anunciada é insuficiente — 300 milhões de reais em 2017, e 800 milhões em 2018.
Terra promete aumentá-la com o apoio da chamada bancada da primeira infância, um grupo de mais de 200 deputados e senadores. “O que estamos vendo é o momento mais importante para a primeira infância no Brasil”, afirma Eduardo Queiroz, presidente da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, referência do terceiro setor na promoção do desenvolvimento infantil.
Para a médica britânica Sally McGregor, uma das maiores especialistas mundiais em visitações domiciliares, as visitas a famílias carentes podem fazer diferença se conseguirem que os adultos se engajem no desenvolvimento da criança. “Mas fazer um programa em larga escala costuma ser complicado”, diz. Sally fala com conhecimento de causa. Ela foi criadora do mais famoso estudo sobre o impacto de visitas domiciliares, feito na Jamaica nos anos 80. Ela também ajudou mais tarde a implementar projetos semelhantes na América Latina e na Ásia.
Suas pesquisas confirmam a necessidade de fazer o Criança Feliz chegar a todos os rincões do Brasil, mas suas ressalvas deveriam ser ouvidas pelo ministro Terra. Aos 79 anos, sentada na cozinha de sua casa a poucos metros do mercado de Camden Town, em Londres, relembra, emocionada, quanto ficou chocada ao ver as péssimas condições de vida das crianças quando chegou à Jamaica na primeira metade dos anos 60.
Recém-formada em medicina e em busca de aventura, embarcou para o Caribe achando que ficaria alguns meses. Em Kingston, conheceu seu futuro marido, iniciou o trabalho como pesquisadora da Universidade das Índias Ocidentais e ficou três décadas.
Desde o início, estava convencida de que era necessário criar um modelo diferente do americano. Não fazia sentido tentar replicar o experimento da pré-escola Perry na Jamaica. Afinal, o governo jamaicano jamais teria dinheiro para criar uma rede de pré-escolas em escala nacional. Por isso, Sally apostou em visitas domiciliares.
Por duas décadas, fez várias pesquisas até chegar à sua metodologia. Em vez dos brinquedos caros de alguns projetos americanos, estabeleceu que o material seria feito internamente e determinou que o objetivo número 1 era ajudar os adultos da casa a ajudar as crianças. “As pessoas achavam que eu estava louca”, diz, antes de soltar uma gargalhada. Foi então que começou a pesquisa com 127 crianças de 9 a 24 meses de uma das zonas mais pobres de Kingston, em 1986.
Por dois anos, um grupo recebeu, semanalmente, visitadoras treinadas para estimular o desenvolvimento infantil. No outro, as visitadoras só coletavam informações sobre doen-ças. Aos 22 anos, quem havia feito parte do primeiro grupo tinha mais anos de estudo, três vezes mais chance de ter estudado numa universidade, menos probabilidade de envolvimento em brigas violentas e uma renda 42% superior.
“Depois dessa experiência, a mesma metodologia foi replicada em Bangladesh e na Colômbia com resultados positivos”, diz Susan Walker, professora na Faculdade de Medicina da Universidade das Índias Ocidentais, que entrou para o time de Sally nos anos 80 e, de lá para cá, tem exercido um papel de liderança.
Atualmente, programas semelhantes estão sendo executados no Peru, na China, na Guatemala e no Zimbábue. A pesquisa da USP realizada na zona oeste de São Paulo é outro exemplo. “Nos últimos tempos, temos sido testemunhas de como é desafiante implementar as visitações em uma escala maior”, afirma Susan.
As experiências acumuladas nesses e em outros estudos deveriam servir de atalho para o governo brasileiro, que pretende atingir milhões de crianças. Parece contraditório, mas o sucesso de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, corre o risco de atrapalhar o planejamento do Criança Feliz.
No Bolsa Família, o governo teve de cadastrar os mais pobres e distribuir o dinheiro. Era mais ou menos óbvio que, na maioria dos casos, as pessoas priorizariam os gastos mais urgentes. Se o governo achar que vai ser igualmente fácil garantir a eficácia do Criança Feliz, é provável que se decepcione.
“Os programas de visitação dependem da qualidade dos visitadores e isso tem relação direta com o treinamento que recebem”, diz Lori Roggman, professora de desenvolvimento humano na Universidade Estadual de Utah e uma das maiores especialistas americanas em visitas domiciliares. A argentina Florencia Lopez Boo, economista sênior do Banco Interamericano de Desenvolvimento, acrescenta outros dois fatores: é preciso fazer com que o currículo do programa seja seguido nas visitas e garantir um bom processo de supervisão.
Ricardo Paes de Barros, economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e professor na escola de negócios Insper, em São Paulo, diz que a visita domiciliar não será suficiente para garantir o sucesso do pequeno Miguel, de Paraisópolis, porque seu futuro também depende de outros fatores, como uma boa escola. Mas, ao mesmo tempo, considera as visitações absolutamente necessárias. “Sem ela, a criança não vai ter chance de decolar mesmo que depois a escola seja razoável”, afirma.
Formado em engenharia eletrônica no Instituto Tecnológico de Aeronáutica, mestre em matemática pelo Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada e doutor em economia pela Universidade de Chicago, onde foi aluno de Heckman,
Paes de Barros é considerado a maior autoridade em temas sociais do Brasil. Há mais de três décadas dedica-se a estudar soluções para as mazelas sociais brasileiras usando o rigor da ciência. Por isso, tem falado com o ministro Terra sobre a necessidade de fazer pesquisas sobre o impacto do Criança Feliz desde o início. “Sem avaliações, não há como saber se a maneira como o programa foi pensado e se sua execução estão dando resultados.”
O exemplo peruano ilustra o que diz Paes de Barros. Em 2012, o governo do Peru decidiu lançar um programa nacional que incluía a visitação a crianças de zero a 3 anos das famílias mais pobres do meio rural. Como é comum na América Latina, a ambição era gigante, mas a preparação foi minúscula. Sem treinamento, muitos agentes chegaram às casas também sem o material de apoio. Em três anos, a cobertura atingiu 80.000 crianças.
Uma pesquisa ainda inédita realizada pelo BID parece indicar que correções necessárias acabaram sendo feitas ao longo do caminho. De 2013 a 2015, 5 400 crianças foram avaliadas e a conclusão é que as que receberam as visitas tiveram resultados significativamente maiores. Sem a pesquisa, ninguém teria como saber se as barbeiragens tinham sido sanadas.
Num telefonema antes de embarcar numa viagem ao México, Terra disse que está montando um time para fazer pesquisas de impacto. Como diz Paes de Barros, se ele não avaliar o Criança Feliz, será uma incoerência. Terra sempre mostrou preocupação em defender políticas públicas com base em evidências científicas. Todo o discurso dele contra o uso de drogas é baseado nelas.
Naercio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper, outra referência em temas sociais no Brasil, argumenta que o ministro Terra deveria ser ainda mais ousado. “O governo poderia adotar três tipos de intervenção, medir os resultados depois de um ano, e ver qual delas dá mais certo”, diz Menezes Filho.
Em certo sentido, seria como seguir o exemplo da pesquisa da USP na zona oeste de São Paulo. Muitos especialistas argumentam que o governo federal deveria usar os agentes comunitários de saúde, que já visitam as famílias, para realizar o trabalho de desenvolvimento. Dados preliminares do estudo da USP, que serão divulgados em Londres na segunda quinzena de outubro, indicam que essa pode não ser uma boa estratégia — pelo menos, não numa cidade como São Paulo.
A pesquisa comparou o impacto nas crianças com dois tipos de visitadores, ambos treinados para incentivar o desenvolvimento infantil. De um lado, os agentes comunitários de saúde. De outro, pessoas somente com a missão de promover a interação entre os adultos e as crianças. As atendidas pelos agentes comunitários de saúde não apresentaram nenhum ganho. As crianças visitadas pelos agentes com foco em desenvolvimento tiveram um desempenho cognitivo, de motricidade, de linguagem e emocional consistentemente maior.
“Tivemos resultados semelhantes aos registrados no experimento da Jamaica após o fim das visitas”, afirma Alexandra Brentani, professora no departamento de pediatria da Faculdade de Medicina da USP e uma das autoras da pesquisa. Outro dado revelado pelo estudo é o interesse dos pais em dar atenção aos filhos — algo constatado por EXAME nos dez meses que acompanhou as visitas.
À medida que o tempo foi passando, Brenda Vasconcelos, mãe de Lorena, foi achando tempo para sentar com ela no chão e brincar, apesar de ter de, sozinha, dar conta de atender também a outra filha e ainda trabalhar como vendedora num shopping center. Nos primeiros meses de visita à casa de Marciana Lima, mãe de Danyllo, o menino estava sempre vendo TV ou vídeos no celular. No final de 2015, Danyllo já esperava a visitadora com os brinquedos — todos visivelmente usados.
Numa conversa em maio deste ano, Marciana contou que havia uma nova regra: TV só no fim de semana. “Os pais querem ajudar os filhos, mas não sabem como”, diz Sandra Grisi, também professora na USP e coautora da pesquisa. Orientá-los nessa tarefa é um passo importante para melhorar as chances de sucesso dessas crianças, o que, por si só, já seria uma boa justificava para apoiar programas de visitação.
Mas há mais. Entre os possíveis reflexos positivos estão um desempenho escolar melhor e o aumento da produtividade de nossa economia, só para citar dois desafios históricos do Brasil.