Revista Exame

A nova era do sportainment

A maneira como o esporte é jogado, produzido e consumido mudou. As atividades deixaram de ser apenas manifestações socioculturais, tornando-se uma multibilionária indústria do ramo do entretenimento

Vini Jr. em ação: Real Madrid foi o precursor na estratégia de transformar um time de futebol em produto (Michael Regan/Getty Images)

Vini Jr. em ação: Real Madrid foi o precursor na estratégia de transformar um time de futebol em produto (Michael Regan/Getty Images)

Marcos Motta
Marcos Motta

Advogado

Publicado em 15 de agosto de 2024 às 06h00.

Fazia calor naquela tarde de julho em Madrid. O ano era 2002 e eu, ainda um jovem advogado na área esportiva, aguardava ansiosamente por um e-mail do Real Madrid, com a minuta do contrato de trabalho que selaria a permanência do lateral Roberto Carlos no clube por mais cinco temporadas.

Mas a minha caixa de mensagens trazia uma surpresa que mudaria minha percepção sobre a indústria do futebol e do esporte em geral, e guiaria várias de minhas operações pelas próximas duas décadas. O tão aguardado correio eletrônico continha não apenas um contrato, mas dois. O primeiro estabelecia a tradicional relação linear entre um empregado e seu empregador. Já o segundo propunha um modelo de negócios revolucionário com base em uma relação exponencial lastrea­da na troca de propriedades intelectuais entre uma celebridade e um produto.

Iniciava-se ali uma nova era no esporte bretão: a era dos “galácticos” e seu espetáculo permanente de entretenimento em vez de uma partida de 90 minutos. Por trás desse conceito, um gênio chamado Florentino Pérez, o responsável — ainda hoje — por manter o clube merengue na hegemonia, dentro e fora de campo, do esporte mais popular do mundo.

Esse mesmo modelo de negócios atrairia ainda Figo, Zidane, Beckham, Ronaldo, Kaká e mais uma constelação que veio a inverter a lógica dos modelos de monetização do esporte até então conhecidos, acabando por transformar um time em um produto de marketing e um clube de futebol em um hub global de conteúdo e experiências.

De lá para cá, a maneira como o esporte é jogado, produzido e consumido mudou, tornando o futebol não apenas uma manifestação sociocultural mas também uma multibilionária indústria do ramo do entretenimento.

Para ter uma ideia, lá na terra dos “galácticos”, a indústria desportiva contribui com 3,3% do PIB espanhol e gera 414.000 postos de trabalho. Para cada milhão de euros que a indústria fatura por lá são gerados 12,4 postos de trabalho, 30% mais do que a média dos restantes setores no país.

Já no Brasil, em relatório apresentado pela EY no ano de 2019, o futebol, em toda sua cadeia, direta e indiretamente, representa 0,72% do PIB nacional, o que representa um valor total de 52,9 bilhões de reais. Além disso, de acordo com a PwC, a receita global total de entretenimento e mídia (E&M) aumentou 5,4% em 2022, chegando à casa dos 2,32 trilhões de dólares.

As novas gerações não consomem mais somente um evento esportivo, elas agora buscam experiências e engajamento de domingo a domingo, tudo acelerado pela era da transformação digital e da desintermediação da informação. E é exatamente aí que o esporte se socorre do entretenimento e faz surgir o conceito do ­sportainment, que tem como pilares básicos a profissionalização, a monetização 365, a inovação, os novos formatos audiovisuais, os modelos de expansão e a experiência final do público consumidor.

Note-se que o modelo de negócios e as premissas que me foram apresentadas 22 anos atrás são ainda hoje aplicados quando assessoramos transferências milionárias de estrelas como Neymar, Lewandowski e Vinicius Jr., que juntos somam mais de 300 milhões de consumidores de conteúdo em todo o mundo somente no Instagram.

Show de Jay-Z e Alicia Keys: carreira dos artistas está sendo gerenciada como a dos jogadores de futebol (Kevin Mazur/Getty Images)

O conceito de sportainment também vem sendo aplicado nas mais diversas ligas esportivas, como a NBA, que se transformou em um empreendimento global de entretenimento, sendo hoje comparada ao mundo de Walt Disney, onde tudo é monetizável; ou ainda a Fórmula 1, que reposicionou o seu produto com a série Drive to Survive (“Dirigir para Sobreviver”, da Netflix) e a infalível mistura de bastidores, risos, suor e lágrimas.

Mas talvez o exemplo mais famoso do sportainment, entre tantos, seja o Super Bowl da NFL e seu imbatível The Halftime Show (“Show do Intervalo”), produzido pela Roc Nation, agência de Jay-Z. Com um modelo de negócios único, em que o foco deixa de ser somente o jogo e passa a ser o “produto esportivo”, a partida final da temporada do futebol americano se confunde a cada minuto com o espetáculo de entretenimento.

Em 2024, o Super Bowl LVII entregou uma das maiores audiências de sua história. De acordo com o The Hollywood Reporter, a vitória do Kansas City Chiefs sobre o San Francisco 49ers teve uma média de 120 milhões de telespectadores somente na CBS. Adicionem-se os simulcasts de outras plataformas digitais e chega-se a impressionantes 123,4 milhões, o que supera qualquer transmissão na história americana, tudo impulsionado por shows de artistas como Usher, Snoop Dogg, Shakira e Jennifer Lopez.

Falando em Jay-Z, a Roc Nation, que representa estrelas internacionais como Rihanna e Alicia Keys, acaba de desembarcar no Brasil e já cuida da carreira de atletas como Vini Jr. e Endrick, que com Kylian Mbappé e Jude Bellingham têm tudo para formar a nova versão dos “galácticos” do Real Madrid.

A chegada desse novo player promete revolucionar o modelo de agenciamento e ativações de marketing praticado por aqui. Isso em um país que nem sequer consegue organizar uma liga de futebol única que fale pelos interesses comerciais e estratégicos do produto “Futebol Brasileiro”, deve representar uma nova era do sportainment local.

Afinal, ou o Brasil se ajusta à nova rea­lidade do esporte enquanto produto de entretenimento ou perderemos mais uma vez o bonde da história e a oportunidade de sermos os melhores no que temos de melhor.


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