Revista Exame

A nova Belíndia

No Brasil de hoje, a renda dos ricos cresce a uma taxa europeia e a dos pobres segue o ritmo asiático

Ricardo Paes de Barros, o “PB”: o Brasil construiu um respeitável leque de políticas sociais; agora é hora de selecionar as melhores (Marcelo Correa/Exame)

Ricardo Paes de Barros, o “PB”: o Brasil construiu um respeitável leque de políticas sociais; agora é hora de selecionar as melhores (Marcelo Correa/Exame)

DR

Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h39.

Nos anos 80, o economista edmar bacha cunhou o termo que passou a definir a cara do Brasil. Segundo ele, nosso país seria a Belíndia — uma pequena e rica Bélgica cercada por uma gigante e paupérrima Índia. Muita coisa mudou desde então. A Europa virou sinônimo de esclerose econômica, e a Índia se tornou um dos mais pujantes polos de crescimento do mundo. Felizmente, o Brasil também mudou, e aos poucos começa a se livrar de antigas chagas. Segundo o pesquisador Ricardo Paes de Barros, o “PB”, o maior especialista brasileiro em políticas sociais, nos últimos oito anos a renda dos brasileiros mais pobres cresceu a uma taxa de 8% ao ano, enquanto os brasileiros ricos viram a renda subir 1,5%. “Os pobres brasileiros estão se aproximando dos ricos à mesma taxa que a China e a Índia estão se aproximando dos países da Europa”, diz PB. Daria, portanto, para reeditar o termo Belíndia, agora num novo contexto. Mantida a tendência atual por mais 15 ou 20 anos, o Brasil estaria pronto para se tornar um país equilibrado social e economicamente — pela primeira vez em mais de 500 anos de história.

EXAME - Qual sua avaliação sobre a política social no governo Lula?

Ricardo Paes de Barros - Antes de 2002, o progresso social no Brasil era relativamente lento e muito dependente dos ciclos econômicos. Havia muitas ideias, mas pouca evolução prática. Com o governo Lula, há um avanço social fantástico ano após ano. Tanto a pobreza quanto a desigualdade caem. Foi assim mesmo em 2009, um período de tremenda crise econômica. A renda dos 10% mais pobres está crescendo a uma velocidade semelhante à da economia chinesa ou indiana, cerca de 8% ao ano. Já a renda dos 10% mais ricos cresce 1,5% ao ano, que é o padrão europeu. Ou seja, o brasileiro pobre está se aproximando do rico à mesma velocidade que a China se aproxima da Alemanha. A renda do pobre cresce cinco vezes mais rapidamente. Se avaliarmos um amplo leque de oportunidades, veremos um grande avanço. Houve expansão no acesso a educação, saúde e melhores habitações e redução da mortalidade infantil e do trabalho precoce.


EXAME - O que é possível dizer desse progresso social?

Ricardo Paes de Barros - Sabemos que o Bolsa Família não explica a queda na pobreza e na desigualdade. Mais da metade dessa queda vem de mudanças na estrutura salarial, cuja relação, por exemplo, com o aumento do salário mínimo leva a uma discussão. Algumas pessoas pensam que o salário mínimo teve um impacto enorme, e outras acham que foi menor.

EXAME - Qual sua opinião sobre o mínimo?

Ricardo Paes de Barros - O salário mínimo é uma boa política para melhorar a renda de quem está na média da distribuição de renda. Para os mais pobres, o Bolsa Família é excepcional. Não questiono o potencial impacto do salário mínimo na desigualdade. Mas na pobreza é questionável, já que há instrumentos mais eficientes e baratos. O problema é que testamos um leque muito amplo de políticas sociais, mas não conseguimos medir a contribuição de cada uma.

EXAME - Não conseguimos porque não existem técnicas quantitativas?

Ricardo Paes de Barros - Existe técnica, o que não existiu foi um sistema de avaliação. Vale olhar, por exemplo, o programa Territórios da Cidadania (que tenta juntar várias políticas sociais brasileiras, em particular aquelas voltadas para a área rural). São medidas nesse programa mais ou menos 150 políticas federais. Fizemos com ele uma quantidade de ações com potencial impacto na área social. O resultado é excepcionalmente bom. A primeira Meta de Desenvolvimento do Milênio, da Organização das Nações Unidas, é a redução da extrema pobreza à metade entre 1990 e 2015. No Brasil, conseguimos cumprir essa meta dez anos antes do previsto. Isso num momento em que as Nações Unidas estão reunindo os melhores cérebros em Nova York para entender por que os países mais pobres não estão conseguindo cumprir a meta.


EXAME - Há quem diga que o que vemos nos últimos oito anos é a continuidade dos anos anteriores. Isso é verdade?

Ricardo Paes de Barros - Muito do que estamos observando obviamente é resultado de políticas que foram feitas antes, como a educacional. Parte do resultado de agora decorre da decisão de fazer a mesma política de antes em maior escala, de maneira sustentada e prolongada. Aumentamos a escala do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e do Bolsa Família. O interessante da política do presidente Lula é que ela é feita como se tivéssemos uma meta social. Antes, a política social estava sub jugada à questão econômica. O pensamento era: se der, eu vou fazer. Agora o governo disse: vou fazer e o resto vai ter de se ajustar. Mas, na ansiedade de cumprir o objetivo, às vezes não se mede quão efetivos alguns programas são.

EXAME -  O senhor diria, então, que o desafio da próxima presidente é selecionar mais? 

Ricardo Paes de Barros - Sim. O próximo governo terá de selecionar, no amplo leque de políticas sociais que temos hoje, as mais efetivas. A política dos últimos oito anos deixou todo mundo contente. O governo fez programas que atendiam às demandas de todos os matizes de pensamento. É hora de checar em que medida essa mistura de ideias funciona. Algo que percebemos que menos tem impacto na pobreza é aumentar o valor do Benefício de Prestação Continuada (destinado ao idoso e à pessoa com deficiência). Ele foi ótimo para tirar os idosos da pobreza, mas já está num nível que, se aumentado, não reduzirá a pobreza, só fará o governo gastar mais.

EXAME - Para testar os programas, o Brasil pode se inspirar em algum país?

Ricardo Paes de Barros - Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, eu participei de vários debates entre Brasil e México sobre avaliação de programas sociais. O México tem um programa grande para redução da pobreza, o Oportunidades. Naquele momento, o Brasil estava anos à frente do México em termos de avaliação de programas sociais. Hoje o México está anos-luz à nossa frente.


EXAME - Por quê?

Ricardo Paes de Barros - Porque eles levavam isso muito a sério. O México pode ser um exemplo para o mundo. Para um programa social ser submetido ao Orçamento, ele deve passar por uma avaliação. Eles avançaram muito não só em termos de regulamentar os programas mas também em capital humano. Ao contrário do Brasil, que tem universidades e pesquisadores capazes de avaliar os problemas sociais, o México não tinha. Eles fizeram um programa intensivo de mestrado, doutorado e formação de quadros para a avaliação.

EXAME - Como a avaliação deve ser feita?

Ricardo Paes de Barros - Antes de lançar um programa, é preciso dizer qual é o impacto esperado. Hoje ninguém sabe — é como se construíssemos uma ponte sem saber quantas pessoas passarão por ela. E então começar a avaliar. Hoje temos programas nota 10 e programas nota zero. Temos de separá-los.

EXAME - Quais são nota 10?

Ricardo Paes de Barros - Não sabemos. É possível saber, mas seria pre ciso montar um sistema de avaliação. E não fizemos.

EXAME - Qual é, em sua opinião, o impacto do Bolsa Família?

Ricardo Paes de Barros - O Bolsa Família é famoso pela transferência de renda e por seu papel na redução da pobreza. Mas ele fez uma coisa muito mais revolucionária do que a transferência, que foi a criação do cadastro único. Graças a isso, hoje sabemos nome e endereço de 15 milhões de famílias que são realmente pobres.


EXAME - Em que esse cadastro pode ser útil?

Ricardo Paes de Barros - Temos esse cadastro, mas não temos ninguém indo até a casa dessas famílias para verificar se estão todos bem. O que aconteceria se usássemos esse canal de comunicação para levar uma cesta de oportunidades? O Brasil tem uma política social tão rica que, se o pobre a recebesse, ele sairia da pobreza. A questão é fazer essa política social chegar estruturada a ele. É preciso que um agente do governo sente com famílias pobres para diagnosticar seus problemas e oferecer programas que possam ajudá-las. Se o cidadão pobre tem terra e precisa de crédito, há o Pronaf. Se precisa de apoio técnico para seu negócio, tem um programa do Sebrae que pode ajudá-lo. Isso transforma o pobre de beneficiário em participante.

EXAME - É factível visitar os 15 milhões de famílias pobres?

Ricardo Paes de Barros - É perfeitamente factível. O agente do governo tem de visitar essas famílias não só para fazer o diagnóstico mas para acompanhar, torcer, cobrar e orientar. Ele tem de registrar as pessoas nesses programas. É uma espécie de tutor. É o que o Chile fez com o Programa Puente. A visão chilena é: se há um pobre num ambiente rico de políticas sociais, a única explicação é que essas políticas não estão sendo bem usadas. Também no Brasil não estamos usando a política social da melhor maneira.

EXAME - Quantos agentes seriam necessários?

Ricardo Paes de Barros - Já fizemos essa conta, e precisamos de duas vezes o número de agentes comunitários de saúde. São empregos locais, de jovens com educação média. É uma maneira de não criar mais políticas e aproveitar o que já temos.


EXAME - Com isso, vamos ser um país com cara de desenvolvido?

Ricardo Paes de Barros - Seremos um país equilibrado econômica e socialmente. Para o Brasil ter indicadores sociais compatíveis com seu nível econômico, teremos de repetir o sucesso social dos últimos oito anos por mais uns 15 ou 20 anos.

EXAME - Há problemas para alcançar isso?

Ricardo Paes de Barros - Uma das estratégias tem sido não resolver conflitos. É o caso do Bolsa Família. Existem hoje três visões completamente diferentes dele. A primeira prega que o Bolsa Família seja eliminado pelo crescimento. A segunda vê o Bolsa Família atingindo todo mundo — é o que pensa o senador Eduardo Suplicy. E uma terceira diz que o programa será preservado pelo crescimento, mantendo seu tamanho relativo. O governo Dilma Rousseff terá de dizer o que fazer com o Bolsa Família. No governo Lula, premeditadamente essa discussão não foi feita. Mas, no longo prazo, a sociedade brasileira precisará tomar uma posição sobre isso.

EXAME - Existe uma crítica de que um dos problemas da política social é que ela não estimula as pessoas a buscar soluções por conta própria. Faz sentido?

Ricardo Paes de Barros - Nenhum. A evidência empírica mostra que não há o efeito de desincentivo. O que houve foi, para os empresários que contratavam pagando muito pouco, a necessidade de aumentar os salários, o que é bom. Isso pode inviabilizar algumas atividades em regiões muito pobres? Talvez. Mas, se isso ocorrer, é porque elas talvez não devessem mesmo existir. Se o Bolsa Família eliminar algumas atividades extremamente precárias, melhor para o país.

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