Singapura (ROSLAN RAHMAN/AFP Photo)
Da Redação
Publicado em 30 de março de 2015 às 19h02.
São Paulo - "Enterrada nos subúrbios de Xangai, perto do poluído anel rodoviário da cidade, a Academia Chinesa de Liderança Executiva mais parece um complexo militar. Há arame farpado em seu entorno e guardas no portão. No entanto, quando se chega ao campus pela rua das Expectativas Futuras, que tem mesmo esse nome esquisito, a sensação é de estar entrando na Universidade Harvard, só que redesenhada pelo Dr. No, o mítico vilão do filme de 007.
Ao centro, um enorme edifício vermelho brilhante em forma de escrivaninha se destaca. A Academia chama o lugar de ‘campus’, mas a organização é disciplinada, hierárquica e empresarial demais para ser uma universidade.
Os locais chamam‑na de ‘escola de treinamento de quadros’, o que parece um nome mais adequado, visto que essa é uma organização voltada para a dominação mundial. Os alunos da academia são os futuros governantes da China.
Movidas pelo desejo de ‘administrar melhor’, cerca de 10 000 pessoas por ano frequentam seus cursos. Ao modernizar sua economia, os chineses buscaram inspiração no Ocidente. Já o governo é outra história. O propósito da Academia é produzir governos eficientes aqui e agora, é proporcionar assistência médica barata e escolas disciplinadas.
Desse ponto de vista, há exemplos melhores para observar — Singapura talvez seja o mais notável — do que os Estados Unidos, onde impasses políticos e diferenças entre os partidos acabam atravancando as decisões.
A cidade‑estado pode ser minúscula, mas fornece quase tudo que os chineses esperam de um governo — escolas de padrão internacional, hospitais eficientes, lei e ordem e planejamento industrial —, tudo isso com um setor público que, proporcionalmente, equivale à metade do americano. Para os chineses, é o Vale do Silício do governo.
A academia chinesa pode ser extraordinária, mas está longe de ser a única. No mundo todo, de Santiago, no Chile, a Estocolmo, na Suécia, políticos e burocratas estão vasculhando exemplos estrangeiros em busca de ideias. O motivo é simples: o principal desafio político da próxima década será consertar o governo.
Os países que forem capazes de constituir um ‘bom governo’ terão melhores chances de proporcionar a seus cidadãos um padrão de vida razoável. Já os países incapazes de enfrentar o desafio estarão fadados ao declínio e à disfunção.
A revolução do Estado está no ar, induzida em parte pela pressão de recursos escassos; em parte pela lógica da competição crescente entre os Estados nacionais; e em parte pela oportunidade de fazer as coisas de um jeito melhor.
No Ocidente, a maioria das pessoas conhece apenas um modelo — o do Estado democrático, em expansão constante, que domina nossa vida desde a Segunda Guerra Mundial. A história, porém, apresenta uma narrativa diferente. De fato, a Europa e os Estados Unidos dispararam na frente justamente por continuarem mudando: seus governos se engajaram em um processo de melhoria constante.
A primeira revolução ocorreu no século 17, quando os príncipes da Europa construíram Estados centralizados, e isso lhes trouxe vantagens em relação ao resto do mundo. Por volta de 1640, quando Thomas Hobbes — um monarquista de meia-idade em fuga — produziu sua anatomia do Estado em plena Guerra Civil Inglesa, havia boas razões para acreditar que o futuro seria a China ou a Turquia.
Hobbes decidiu batizar o Estado com o nome de um monstro bíblico, o Leviatã. E que monstro de sucesso essa criatura se revelou! A incubadora europeia produziu monstros concorrentes e deu origem a um sistema de governo em aperfeiçoamento contínuo: os Estados nacionais se transformaram em impérios comerciais e, depois, em democracias liberais empreendedoras.
A segunda revolução ocorreu no fim do século 18 e durante o século 19, quando as revoluções americana e francesa acabaram se espalhando por toda a Europa à medida que as reformas liberais substituíam os sistemas de patronagem monárquicos por governos mais meritocráticos e responsáveis.
Nos concentramos aqui na manifestação inglesa dessa revolução em parte porque suas irmãs mais conhecidas incluem fatores que dispersam a discussão — a Revolução Francesa degenerou em carnificina, enquanto a Americana teve uma virtude peculiar de alastrar‑se por um país de dimensões continentais — e em parte porque a revolução vitoriana é a que parece ser mais relevante hoje.
Os liberais ingleses pegaram um sistema velho e decrépito e o reformaram desde o âmago, priorizando a eficiência e a liberdade. Eles ‘roubaram’ a ideia da China de ter servidores públicos civis profissionais, selecionados por concurso; atacaram o compadrio; abriram os mercados; e restringiram os direitos do Estado de subverter a liberdade.
O ‘Estado vigia noturno’, ou o ‘Estado mínimo’ proposto por John Stuart Mill e outros era ao mesmo tempo mais enxuto e mais competente. Embora o tamanho da população inglesa tenha aumentado mais de 50% entre 1816 e 1846 e os vitorianos tenham melhorado muito os serviços públicos (criando inclusive a primeira força policial moderna), a receita tributária do Estado caiu de 80 milhões de libras para 60 milhões de libras.
No entanto, como frequentemente acontece, uma revolução puxa a outra. Durante a segunda metade do século 19, o liberalismo começou a questionar suas raízes no Estado mínimo: de que servia a liberdade, indagavam Mill e seus discípulos, a um trabalhador que não tinha acesso à educação nem à assistência médica? Se esse homem (e, eventualmente, essa mulher) merecia o direito ao voto — pensar diferente disso seria contradizer a ideologia liberal —, então a escolarização deveria ser ampla e ambiciosa.
Melhorar as condições de vida de todos os cidadãos, portanto, tornou‑se parte do contrato com o Leviatã. Essa medida pavimentou o caminho para a terceira grande revolução: a invenção do moderno Estado de bem‑estar social.
Na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, o Estado de bem‑estar social prevaleceu sem maiores contestações desde a Segunda Guerra Mundial — exceto durante a década de 80, quando a premiê inglesa Margaret Thatcher e o presidente americano Ronald Reagan, inspirados por pensadores liberais clássicos, como Milton Friedman, contiveram temporariamente a expansão do Estado e privatizaram as torres de comando da economia.
Chamamos esse movimento empreendido por Thatcher e Reagan de meia revolução porque, embora ele tenha recuperado algumas ideias fundamentais da segunda revolução ‘liberal’, acabou contribuindo muito pouco para reverter o tamanho do Estado.
Cada uma dessas revoluções teve reviravoltas importantes. O que fica claro, porém, é que nos últimos 500 anos a Europa e os Estados Unidos foram fontes de novas ideias sobre como o Estado deveria funcionar. Liberdade e democracia foram os elementos centrais desse modelo. A ascensão do Estado ocidental não se resumiu a criar um serviço público competente.
À medida que se expandia, o Estado ocidental concedia mais direitos aos indivíduos. Coisas como educação universitária, que um século atrás eram consideradas privilégio de homens brancos e ricos, passaram a ser vistas como serviços públicos, em alguns casos até mesmo gratuitos, para todos os cidadãos.
Com todos esses benefícios, o Estado ocidental padece agora de outro mal: o inchaço. As estatísticas mostram parte do problema. Nos Estados Unidos, os gastos públicos aumentaram de 7,5% do PIB em 1913 para 19,5% em 1937, para 27% em 1960, e para 49% em 2011. No Reino Unido, subiram de 13% em 1913 para 49% em 2011. Em 13 países ricos, a proporção média dos gastos cresceu de 10% para 49%.
Esses números, porém, não refletem totalmente a maneira como o governo se tornou parte de nossa vida. O Leviatã americano reivindica o direito de monitorar seus e‑mails e de lhe dizer quanto é preciso estudar para se tornar cabeleireiro na Flórida (dois anos). O governo costumava ser um parceiro ocasional. Hoje está mais para uma babá onipresente.
Diversas razões econômicas e demográficas fazem com que muitos acreditem que o Estado continuará a crescer. Os direitos sociais aumentam à medida que as populações envelhecem. Os governos dominam áreas da economia, como saúde e educação, que são resistentes ao aumento da produtividade.
No entanto, existem outras razões para a disseminação do Estado que são de natureza política. A ânsia de aumentar os tentáculos do governo tem crescido tanto na esquerda quanto na direita, aquela exaltando a importância de hospitais e escolas, esta enaltecendo presídios, exércitos e polícias, e ambas multiplicando leis e regulamentos.
Apesar de toda a preocupação com pessoas que ‘se encostam’ nos benefícios sociais, a verdade é que grande parte dos gastos públicos com bem‑estar social se destina à classe média, boa parte dela conservadora. Os eleitores sempre votaram por mais serviços. A única diferença é que alguns se ressentem mais em ter de pagar por eles.
Para o bem ou para o mal, democracia e elefantíase estatal caminham de mãos dadas. Os políticos se esforçam para nos dar mais daquilo que queremos — mais educação, mais assistência médica, mais presídios, mais aposentadorias, mais segurança, mais direitos sociais. Mesmo assim — eis o paradoxo — não estamos satisfeitos.
Os eleitores sobrecarregam o Estado com suas reivindicações, depois se enfurecem com seu mau funcionamento. Após dez anos de um crescimento espetacular, muitos países emergentes também estão discutindo seus próprios governos. Os principelhos chineses já começaram a perceber que a continuidade do progresso depende agora da melhoria do Estado, não mais apenas da abertura de mercados.
E, assim como os indianos, eles agora encaram as consequências dessa maior liberdade dos mercados — uma classe média escolarizada cada vez mais farta de seu Estado antiquado, frequentemente corrupto. No Brasil, os manifestantes de 2013 se concentraram na falta de qualidade dos serviços públicos e na corrupção.
Gurcharan Das, um astuto analista da cena indiana, observa que, não muito tempo atrás, seus conterrâneos diziam que ‘a Índia cresce à noite, enquanto o governo dorme’. Agora eles se deram conta de que a Índia não terá condições de continuar crescendo se suas escolas permanecerem abaixo da média e suas estradas continuarem esburacadas.
Nem a China está imune: a insatisfação com a qualidade das escolas em Guangzhou é tão intensa quanto a que se percebe nas favelas de São Paulo. O resultado disso é que o Estado está sob suspeita tanto nos países ocidentais avançados quanto no mundo emergente. O mistério é por que tão poucas pessoas admitem a probabilidade de mudanças radicais.
É a manutenção do status quo que parece improvável. No mundo emergente, a era do crescimento noturno já se esgotou. Nos países ocidentais avançados, a era do ‘cada vez mais’ se aproxima do fim. É chegada a hora de uma quarta revolução.
Restabelecer o controle sobre o Leviatã será o âmago das políticas globais devido à confluência de três forças: fracasso, competição e oportunidade. O Ocidente precisa de mudanças pois está prestes a quebrar. O mundo emergente necessita de reformas para continuar avançando. Dívidas e demografia são fatores que indicam que os governos dos países ricos têm de mudar.
Mesmo antes do colapso do banco Lehman Brothers, os governos ocidentais gastavam mais do que arrecadavam. O governo dos Estados Unidos só teve cinco superávits desde 1960; a França não produz um superávit desde 1974‑75. O aperto só aumentou a dívida, já que os governos tiveram de tomar empréstimos.
Em março de 2012, o total de títulos públicos em circulação era de mais ou menos 43 trilhões de dólares. No fim de 2001, esse total era de apenas 11 trilhões. E essa quantia é unicamente uma fração do passivo total dos governos ocidentais, quando se incluem as aposentadorias e a assistência médica.
Os números referentes a muitas cidades são ainda piores: Detroit, em Michigan, chegou a pedir falência por causa disso. Na ‘velha Europa’, a população em idade de trabalho atingiu seu pico em 2012, com 308 milhões — e deverá cair para 265 milhões em 2060. O índice de dependência de idosos (proporção de indivíduos com mais de 65 anos para cada indivíduo com idade entre 20 e 65 anos) aumentará.
No futuro, o Estado no Ocidente se empenhará em desfazer‑se de coisas — de muito mais coisas do que a maioria das pessoas imagina. Em alguns lugares, em que os governos gerenciaram as próprias finanças com extrema ineficiência, como na Grécia e em algumas cidades americanas, esse descarte já tem sido drástico.
Na cidade americana de San Bernardino, o procurador-geral aconselhou a população a ‘trancar suas portas e carregar suas armas’, porque o município já não tinha condições de pagar a polícia. Na Europa, mesmo os políticos mais apegados ao consenso reconhecem que algo precisa mudar: a estatística preferida da premiê alemã Angela Merkel é que a União Europeia abarca cerca de 7% da população mundial, 25% do PIB mundial e 50% dos gastos sociais.
Mudar esse quadro, no entanto, não será um processo indolor, e sim uma batalha sangrenta entre governos falidos forçados a cortar serviços públicos, eleitores ressentidos querendo manter seus direitos sociais, pagadores de impostos que querem mais benefícios com o dinheiro que dão ao governo e poderosos sindicatos de servidores públicos que querem manter seus privilégios.
Se milhões de franceses foram às ruas quando o então presidente Nicolas Sarkozy elevou a idade de aposentadoria de 60 para 62 anos, Deus sabe o que acontecerá quando o atual presidente, François Hollande, ou seu sucessor se virem forçados a postergá‑la para os 70 anos.
Essa batalha atingirá em cheio o coração da democracia. Os políticos ocidentais adoram gabar‑se das virtudes da democracia. Argumentam que o epíteto ‘uma pessoa, um voto’ seja o remédio para todos os males, da pobreza ao terrorismo. A prática da democracia no Ocidente, todavia, afasta‑se cada vez mais desse ideal, com o Congresso americano contaminado pelo poder financeiro e pelo sectarismo enquanto os Parlamentos europeus se encontram à deriva e a maior parte da população fica descontente.
Se o fracasso é o melhor estopim para a mudança no Ocidente, a competição é o segundo melhor. Por causa de todas as suas frustrações com o governo, o mundo emergente começa a desenvolver ideias novas e impressionantes, reduzindo bastante a vantagem competitiva dos países ricos.
Caso esteja em busca do futuro da assistência médica, a tentativa indiana de aplicar técnicas de produção em massa aos hospitais pode ser parte da resposta. Da mesma forma, o futuro das políticas de bem-estar deve se assemelhar ao sistema brasileiro de transferência de renda, que estabelece condições que devem ser cumpridas pelos beneficiários.
A coisa, porém, é mais profunda do que isso. A Ásia, sob a influência chinesa, oferece um novo modelo de governo que desafia dois dos valores mais cultivados pelo Ocidente: o sufrágio universal e a generosidade de cima para baixo.
A figura mais icônica desse modelo, Lee Kuan Yew, governou Singapura por três décadas e tem sido um crítico severo do Ocidente, não só pela democracia irrestrita mas também pelo bem‑estar social, comparável, na opinião dele, a um bufê liberado onde coisas que deveriam destinar‑se aos pobres, como universidade gratuita, converteram‑se em direitos da classe média, inflados e dispendiosos.
É fácil apontar furos no modelo asiático. Singapura é muito pequena. A eficiência do governo chinês desmorona quando observamos os governos locais. Até agora, o mundo emergente não explorou as vantagens trazidas pela tecnologia para fazer grandes avanços.
O Brasil se encaminha para uma crise previdenciária que talvez apequene, em contraste, a da Grécia. Não se iluda, porém, achando que os países emergentes estão milhas e milhas atrás.
E neste ponto surge a terceira força motriz da mudança: a oportunidade de melhorar o governo. A crise do Estado ocidental e a expansão do Estado emergente estão chegando em uma época favorável. Novas tecnologias oferecem a chance de melhorar o governo radicalmente, mas para que isso aconteça é preciso, primeiro, voltarmos a velhas questões, incluindo a mais fundamental de todas: ‘para que serve o Estado?’.
Essa pergunta é o cerne de um antigo debate — um debate que desapareceu durante a fase do bufê ilimitado da democracia moderna. Para Hobbes, a razão de ser do Leviatã era garantir a segurança. Para outros, a resposta era a liberdade. Para os socialistas, era o bem‑estar.
Todos esses pensadores, porém, consideravam necessário responder a essa importante pergunta antes de partir para os detalhes práticos. Agora, essas questões são analisadas apenas no varejo. Os políticos hoje são como arquitetos que discutem as condições dos cômodos numa casa em ruínas, apressando‑se em consertar uma janela aqui outra acolá sem jamais considerar as condições da edificação.
Precisamos refletir em profundidade sobre a função adequada do Estado. O Estado moderno sobrecarregado é uma ameaça à democracia: quanto mais atribuições o Leviatã assume, pior as executa e mais enfurece as pessoas — o que as leva a exigir ainda mais ajuda. É tempo da quarta revolução.”