Luanda Varjão, analista de planejamento logístico da Novelis: mentoria ajudou na adaptação à nova função (Leandro Fonseca/Exame)
Repórter de Carreira
Publicado em 20 de abril de 2023 às 06h00.
Última atualização em 20 de abril de 2023 às 10h31.
Mais de 200 anos. Esse é o tempo para mulheres terem as mesmas oportunidades que os homens no mercado de trabalho no Brasil, estima o Fórum Econômico Mundial. Um desafio semelhante afeta as pessoas negras.
Apesar de serem 54% da mão de obra do país, pretos e pardos ocupam só 29,5% dos cargos gerenciais em empresas brasileiras, diz o IBGE. A combinação de cor da pele com origem pobre, como é o caso de muitos desses profissionais, só piora as coisas.
Os trabalhadores oriundos de famílias pobres e com algum tipo de privação na infância — fome ou acesso irregular a serviços de saúde, por exemplo — ocupam só 37% dos postos de gerência e 8% dos cargos executivos nas empresas brasileiras, de acordo com uma pesquisa recente da consultoria global McKinsey com 5.000 profissionais da América Latina. Entre entrevistados criados em famílias abastadas, os percentuais são bem superiores: 45% deles são gerentes e 14% são diretores.
À luz desses dados, muitas empresas brasileiras já perceberam um desafio adicional na agenda de diversidade abraçada por elas. Não basta só contratar profissionais de grupos pouco representados, como mulheres, negros e pessoas com deficiência. É preciso, sobretudo, dar uma força dentro do ambiente corporativo para integrantes desses grupos terem chances de construir uma carreira bem-sucedida.
Nessa toada, grandes empresas estão investindo em mentorias, encontros individuais ou em grupo, para trocas de experiências dedicadas essencialmente a dar uma mão para profissionais de minorias conseguirem lidar com mais facilidade com o ambiente corporativo — um lugar pródigo em panelinhas de gente com bagagem de vida e visão de mundo semelhantes.
De acordo com uma pesquisa da consultoria global em recursos humanos Korn Ferry com 823 tomadores de decisão em empresas da América Latina, 34% relataram estar em empresas com algum cuidado com o tema. “A mentoria vem, justamente, para endereçar desafios à ascensão de minorias dentro das organizações”, diz Milene Schiavo, diretora de diversidade, equidade e inclusão da Korn Ferry.
Embora existam benefícios, os resultados diretos de estar em um programa desse tipo são um tanto intangíveis. A relação entre estar numa mentoria e atingir uma meta, por exemplo, é tênue. Ainda assim, quem foi convidado a participar de uma delas tem motivos para comemorar.
Numa pesquisa da consultoria em RH Heidrick & Struggles com 1.000 funcionários de empresas americanas, 32% dos profissionais de minorias consideraram a iniciativa extremamente importante para crescer na empresa.
A ambição motivou a analista de planejamento logístico Luanda Varjão a candidatar-se a um programa de mentoria oferecido pela operação brasileira da fabricante de alumínio Novelis. Em 2022, a indústria fechou parceria com a Fundação Dom Cabral para 13 profissionais mulheres ou autodeclarados pretos e pardos terem acesso a executivos de alta liderança, apoiados pela escola de negócios, ao longo de seis meses.
Antes da mentoria, Luanda já havia participado de um grupo de afinidade dentro da Novelis, onde trabalha há 14 anos. Na troca com outras pessoas negras, ela se deu conta da falta de segurança em defender as ideias dela — um comportamento decorrente de um excesso de autocobrança. “É algo estrutural a mulheres e a pessoas negras não se sentirem ouvidas”, diz Luanda.
O convite para a mentoria foi feito na mesma época de outra oportunidade: migrar de área dentro da empresa. As conversas com o mentor, um gerente de outra área da empresa, serviram para mudar várias lógicas até então tidas como certezas para ela.
“Estando numa área nova, eu não sabia de uma porção de coisas e, nas trocas com o mentor, vi que não precisava ter respostas para todas elas”, diz Luanda. “Até então eu achava que precisava saber tudo, até para não ser desacreditada por ser mulher.”
Além de uma troca de conhecimento turbinada no papo tête-à-tête com alguém de cargo mais alto, a mentoria pode jogar luz em talentos ofuscados pelo dia a dia do escritório — e pouco lembrados no momento de uma promoção.
Em outra pesquisa da Korn Ferry, com 28 líderes negros das 500 maiores empresas do Estados Unidos, 86% afirmaram que a presença de um mentor foi fundamental para chegar aonde estão. “Os mentores acabam virando ‘advogados’ da pessoa em outras áreas”, diz Milene, da Korn Ferry.
Justamente para aumentar a visibilidade de minorias em processos de sucessão, a multinacional Bayer criou um programa de 18 meses para desenvolver profissionais mulheres, com deficiência e negros. Entre os 80 selecionados para a primeira turma, no ano passado, cerca de 40% foram promovidos. “Muitos subiram duas posições na empresa após o programa”, diz Kleber Carvalho, gerente de diversidade e inclusão para a América Latina da Bayer.
Na dinâmica criada pela Bayer, o grupo tinha reuniões periódicas para discussão de temas de carreira como autoconfiança e marketing pessoal. “Se eu não tivesse passado por ele, talvez não tivesse saído de analista para supervisor”, diz Felipe Alencar, hoje responsável pelas políticas de diversidade e inclusão na empresa. “É aquela história de falar seu nome numa mesa cheia de oportunidades.”
Os programas de mentoria acabam forçando um networking complicado de ser obtido de uma forma natural para profissionais de origem humilde e sem condição de apelar para o “QI”, sigla irônica do “quem indica”, tão comum em empresas brasileiras. Integrantes desse grupo costumam ser os primeiros da família a fazer faculdade ou a ter um emprego com carteira assinada — e chegam lá sem conhecer ninguém.
“O círculo social deles vai ser menor, as conexões e as oportunidades também, criando um círculo vicioso”, diz Amanda Aragão, sócia da consultoria Mais Diversidade, cuja carteira de clientes inclui grandes empresas, como Alpargatas, Carrefour e Microsoft. As organizações com milhares de postos de trabalho costumam ser locais com mais barreiras às trocas entre pessoas de times e níveis hierárquicos distintos.
Apesar de estar há mais de 20 anos na Ambev, a mestre cervejeira Rozilene Sá viu sua participação num programa de aceleração de líderes negros da Ambev como essencial para ela se enturmar mais numa empresa com mais de 32.000 funcionários.
Chamada Dàgbá, a iniciativa começou em 2022 e teve a participação de 68 profissionais negros em alguma posição de liderança. Eles receberam 56 horas de conteúdo, entre mentorias e treinamentos. No currículo estavam desde temas ligados à herança africana na história brasileira — a exemplo de uma abordagem antropológica sobre a construção do racismo em nossa sociedade — até conteúdos mais práticos, como design de projetos.
Após o Dàgbá, Rozilene liderou a criação da Sankofa, uma cerveja criada pelo grupo de afinidade racial da Ambev cuja renda foi revertida à ONG Abraço Campeão, atuante no Complexo do Alemão, comunidade na zona norte do Rio de Janeiro.
“O Dàgbá me ajudou a reconhecer minha negritude e quanto a minha história como primeira mulher cervejeira da Ambev poderia influenciar outras pessoas”, diz Rozilene. “Além disso, hoje tenho conexões com pessoas de tecnologia e de vendas que servem como pontes dentro da companhia.”
O vínculo criado entre mentor e mentorado costuma ser mais forte entre integrantes de grupos minorizados — seis entre dez deles mantêm laços após o fim do programa, de acordo com a pesquisa da Heidrick & Struggles.
Foi o caso da psicóloga Evani Fidelis de Sousa, uma das 12 participantes de um projeto voltado para profissionais com algum tipo de deficiência contratados pela operação brasileira do banco JPMorgan.
Em seis meses, Evani trocou figurinhas com uma executiva sênior do banco sobre temas como inteligência emocional, apresentação pessoal e resolução de problemas. “Ela não era brasileira, e isso me trouxe uma visão de como é uma experiência internacional”, diz Evani.
Muito em razão do envolvimento no programa, depois da mentoria ela começou um MBA em projetos e foi promovida de analista a associate. “A mentoria ajudou a verbalizar minha vontade de ter mais responsabilidade, o que contribuiu para minha promoção”, diz ela.
Para muitos dos participantes desses programas, trata-se de uma oportunidade única de abordar num público diverso temas até então relegados a um nicho. Exemplo disso é a predominância de assuntos como a síndrome do impostor, caracterizada pela sensação de não merecimento de conquistas na carreira prevalente desproporcionalmente mais em mulheres.
Ou, então, jogar luz em desafios típicos da agenda de diversidade nas empresas brasileiras, como a falta de negros na liderança. “Muitos profissionais que estão na base da pirâmide olham para cima e não imaginam que podem crescer numa empresa assim”, diz Milene, da Korn Ferry.
Por entender a capacidade de ascender na carreira, o pernambucano Erik Nascimento dos Santos aceitou participar da primeira turma de mentoria afirmativa da multinacional fabricante de ingredientes industriais Ingredion.
Em 2021, a companhia escolheu cinco funcionários negros da unidade de Cabo de Santo Agostinho, nos arredores de Recife. A escolha não foi por acaso: 61% dos empregados ali são negros. O programa contou com sessões individuais e coletivas de mentoria sobre temas como resiliência, trabalho em equipe e liderança.
“Durante o programa pude trabalhar bastante uma questão que eu tinha, que era a dificuldade de me impor e de dizer ‘não’”, diz Erik. Além disso, o programa era ministrado por uma pessoa negra. “Muitos de nós, pessoas negras, que não se enxergavam em posições de liderança passaram a ver que isso era, sim, uma possibilidade”, diz.
Depois do programa, ele foi promovido de operador para técnico de processos e convidado para liderar a Alliance for Black Employees (Able), grupo de afinidades de pessoas negras da Ingredion.
Olhando em perspectiva, os aconselhamentos profissionais são uma negação à “mão invisível do mercado”, capaz de regular sozinha forças como a oferta de mão de obra e a demanda de trabalho nas empresas — uma ideia defendida pelo economista inglês Adam Smith no século 18 e ainda em voga na teoria econômica de matriz neoliberal nos dias de hoje.
Apesar de ela ser uma mola propulsora para muitas carreiras, não depende só dos indivíduos a ascensão dentro das empresas. Por isso, as empresas precisam ter métricas também sobre a efetividade dos programas de mentoria em si.
Na Ingredion, quatro dos cinco participantes foram promovidos, e um deles assumiu uma nova posição lateral. Já na Ambev, 12 dos 68 subiram de nível dentro da organização. “São poucas as empresas que definem, por exemplo, metas que indiquem onde aquele grupo deverá estar daqui a cinco, dez anos, ou que coletam dados como promoções, participações em projetos”, diz Amanda, da Mais Diversidade.
“Se isso não existir, o programa não será perene nem atingirá o resultado esperado, que é mover os ponteiros na alta liderança.” Para minimizar as desigualdades sociais inerentes ao mercado, portanto, uma boa dose de ferramentas do próprio mercado pode vir a calhar.