Ideologia à parte: o investidor Luiz Carlos Mendonça de Barros se tornou sócio da estatal chinesa (Germano Luders/Exame)
Da Redação
Publicado em 5 de novembro de 2015 às 04h56.
São Paulo — Muitos empresários brasileiros veem os chineses de forma parecida com a que os romanos enxergavam os bárbaros: forças invasoras que devem ser contidas além das fronteiras a qualquer custo.
Não é para menos. Nas últimas décadas, a China se tornou uma máquina exportadora baseada em investimentos pesados e custos baixos — em 2014, suas vendas para o mundo foram de 2,3 trilhões de dólares. No Brasil, as importações chinesas saíram da casa de 1 bilhão de dólares, em 2000, para 37 bilhões, no ano passado.
Conter essa expansão tem se mostrado um esforço em vão — mais inteligente do que combater os chineses, portanto, pode ser conquistá-los como aliados. Um exemplo de como uma aliança desse tipo pode funcionar é a chegada ao país da estatal chinesa Foton. A empresa é uma das maiores fabricantes de caminhões do mundo.
De suas unidades na China saem 650 000 veículos por ano, quase cinco vezes a produção das montadoras brasileiras de caminhões em 2014. Com esse porte, a Foton poderia aproveitar a escala para exportar a preços competitivos para o Brasil.
Em vez disso, seus dirigentes decidiram investir na construção de uma fábrica aqui com a participação de um sócio brasileiro, o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em março, ele vendeu a cota de 36% que detinha na gestora de investimentos Quest e passou a se concentrar na Foton.
Na prática, tornou-se um parceiro capitalista do governo chinês, liderado pelo partido comunista e dono da Foton. “Os chineses têm um plano de internacionalizar as grandes estatais, e a Foton considera o Brasil um mercado importante para isso”, diz Mendonça de Barros. A estratégia da Foton para o Brasil passa pela construção de uma fábrica em Guaíba, no Rio Grande do Sul.
A previsão é que a unidade, ainda em obras, fique pronta em abril de 2016, quando deve começar a produzir com capacidade de 24 000 caminhões por ano. Por ora, a filial brasileira importa caminhões prontos da China. Para entrar no país, foram escolhidos quatro modelos com capacidade de carga de até 3,5 toneladas e um modelo de 10 toneladas.
No ano passado, a marca vendeu no Brasil 800 caminhões dos dois modelos. Uma etapa importante do projeto é a formação de uma rede de concessionárias. Atualmente, a Foton conta com 25 lojas — a concorrente Mercedes-Benz tem cerca de 150. A gestão está nas mãos dos brasileiros. Os chineses, por enquanto, recebem 2% do valor das vendas.
Para se instalar no país, a Foton está investindo perto de 200 milhões de reais. O dinheiro é bem-vindo num momento em que as contas externas brasileiras estão no vermelho. O saldo das transações de bens e serviços do Brasil com o exterior fechou negativo em 90 bilhões de dólares em 2014.
Atrair mais recursos internacionais para indústrias e outras empresas — o que os economistas chamam de investimento direto estrangeiro — não ajuda apenas a diminuir esse déficit, aumenta também a capacidade produtiva e gera mais emprego e renda. Quando estiver funcionando, a fábrica da Foton deverá responder por 250 postos de trabalho diretos e 650 indiretos.
“Investimentos de empresas estrangeiras normalmente trazem consigo novas tecnologias”, diz o economista Celso Toledo, da consultoria LCA. “Por isso, esse dinheiro pode ajudar o país a se tornar mais produtivo.”
Capital para aplicar mundo afora é algo que não tem faltado à China. De 2005 a 2014, os chineses destinaram 870 bilhões de dólares a investimentos no exterior. O Brasil recebeu 31 bilhões. Nesse período, a contribuição chinesa foi inferior a 10% do capital estrangeiro que aportou aqui. Aumentar essa participação, contudo, exige adaptação à forma particular de fazer negócios adotada pelos chineses.
“A cultura chinesa valoriza mais o relacionamento de longo prazo, lá chamado de guanxi, do que os contratos escritos”, afirma Roberto Dumas Damas, professor da escola de negócios Insper e ex-chefe do escritório do Banco Itaú BBA em Xangai. “Conquistar a confiança é essencial para fazer uma sociedade com um chinês dar certo.”
A dificuldade em estabelecer esse tipo de relação é um dos motivos que levam os chineses a ser tidos como excessivamente controladores nas relações de negócios. “Muitas empresas chinesas, quando fazem investimentos em outros países, preferem levar os próprios operários para assumir o trabalho”, diz o advogado Reinaldo Ma, do escritório Tozzini Freire.
Um caso recente é o da State Grid, estatal chinesa que venceu o leilão para construir as linhas de transmissão que vão ligar a usina de Belo Monte ao sistema elétrico brasileiro. A empresa ainda tenta conseguir autorização do governo brasileiro para trazer 11 000 operários chineses para executar as obras.
A maneira como aconteceu a aproximação da Foton com os brasileiros mostra como os negócios com os chineses seguem uma lógica peculiar. Nos anos 90, Mendonça de Barros presidia o BNDES quando fez uma viagem à China. O banco estava financiando, para os chineses, a compra de turbinas produzidas por uma empresa brasileira para a usina de Três Gargantas, hoje a maior hidrelétrica do mundo.
Foi o início de uma relação de confiança. Por causa da negociação, Mendonça de Barros teve o nome incluído numa espécie de lista dos amigos da China no exterior. Vinte anos depois, ele foi procurado pela Foton. “Os chineses tinham um projeto para entrar no Brasil e pediram que eu o avaliasse”, diz. “Mostrei como o projeto poderia ser melhorado, e fui convidado para ser sócio.”
A principal fragilidade dos planos iniciais da Foton era não considerar a complexidade do mercado brasileiro. Os chineses planejavam importar todas as peças. Não levavam em conta a necessidade de cumprir um índice mínimo de produção no Brasil, sem o qual os clientes não podem ter acesso a financiamentos de bancos públicos com juro mais baixo.
Outro erro era planejar a abertura da fábrica antes de formar uma rede de revenda, o que deixaria a marca em desvantagem diante da concorrência já estabelecida. “O Brasil é um país complexo para o investidor estrangeiro”, afirma José Othon de Almeida, sócio da consultoria Deloitte. “É fundamental ter um parceiro local que o auxilie a lidar com questões tributárias e burocráticas.”
Para competir com as empresas já tradicionais aqui, como Ford e Mercedes-Benz, a Foton vai contar com a retaguarda na China. Lá, emprega 4 000 engenheiros. Eles ajudam na adaptação dos modelos às leis e às necessidades do mercado brasileiro.
“Também aproveitamos o peso da Foton para negociar preços e condições com os fornecedores globais de autopeças”, diz Bernardo Hamacek, presidente da Foton no Brasil e ex-diretor da Iveco, marca de caminhões do grupo Fiat. Com isso, a Foton tem conseguido oferecer seus caminhões a um preço até 15% inferior ao da concorrência. Um desafio pela frente é a retração da economia brasileira.
As vendas de caminhões caíram 11% no ano passado. No primeiro bimestre, as vendas ficaram 40% abaixo das realizadas no mesmo período de 2014. A conjuntura pode prejudicar os planos? “Nosso sócio tem planos de longo prazo para o Brasil”, afirma Mendonça de Barros. “O momento é ruim, mas deve ser passageiro.”
Ainda assim, foi adotada uma estratégia para evitar um naufrágio: começar pela faixa de caminhões leves, de até 3,5 toneladas, e médios, de até 24 toneladas, categorias que concentram a maior fatia do mercado. A proverbial paciência chinesa, de todo modo, vai ser posta em teste no Brasil.