O brasileiro Ítalo Ferreira em ação: o surfe deixa de ser um estilo de vida para virar uma competição que mira o pódio (Erik Kabik/AP/Glow images)
Da Redação
Publicado em 17 de dezembro de 2020 às 05h23.
Última atualização em 11 de fevereiro de 2021 às 13h58.
TIVEMOS UM ANO OLÍMPICO SEM JOGOS. A quebra da tradição quadrienal criada por Pierre de Coubertin só teve tal precedente durante as grandes guerras mundiais. Ou seja, a pandemia teve para a comunidade olímpica a mesma força de conflitos planetários.
Isso representou um grande prejuízo para os organizadores dos Jogos Olímpicos de Tóquio e para o Comitê Olímpico Internacional. Do ponto de vista dos atletas, representou a necessidade de uma imensa adaptação, uma vez que a razão da vida dessas pessoas é competir e, principalmente, subir ao pódio.
A edição de 2020 significaria um momento de virada na história olímpica. Depois do esgotamento vivido nas últimas edições com um agigantamento que impede a postulação de muitas cidades, percebeu-se a necessidade de contenção e rejuvenescimento.
Do ponto de vista estrutural, definiu-se o tamanho possível para o espetáculo, limitando delegações e participantes. Era preciso ganhar qualidade com menos quantidade, e isso se daria com competições rejuvenescidas que conquistassem as novas gerações. O lema altius, citius e fortius precisava ser deslocado após mais de um século de prática esportiva.
A tecnologia ao alcance das mãos da geração Z redirecionou a excitação vivida em duelos individuais ou coletivos, com ou sem contato físico. Seja na condição de atleta, seja na de consumidor do espetáculo, essa geração deseja a simplificação e a ação.
Coube ao centenário Movimento Olímpico, depois de várias décadas patinando sobre velhas práticas, um grande chamado para uma profunda revisão, com base nos valores e no cuidado com a juventude. Além da Agenda 20+20, que promove orientações para a comunidade olímpica visando a um futuro, com especial atenção para a transparência, o cuidado com os atletas e a busca pela equidade de gênero, era preciso modernizar o programa olímpico.
Na esteira dos anseios de uma geração marcada pela mobilidade, pelas múltiplas realidades, com identidades fluidas e nativos digitais, já não desperta tanto interesse uma prática cuja característica é o dogma e uma relação hierarquizada pautada no modelo militar, como é o esporte enraizado no século 19. As práticas desejadas têm como característica a quebra de fronteiras, a busca pela liberdade e a relação com o meio ambiente. Assim se justifica a inclusão do surfe, do skate, da escalada e do BMX nas próximas competições. Se o alfabeto chega à última letra para definir uma geração, é preciso que o mundo da aventura invada o da tradição com sua plasticidade e ética.
Situadas no campo da aventura, essas modalidades, depois de passar pelo processo de olimpização, precisam agora mostrar aos praticantes e aos fãs que ceder às normas olímpicas não significa perder a identidade. Afinal, marcadas como estilo de vida, essas práticas esportivas perdem em liberdade quando passam a ostentar os cinco anéis em seus uniformes.
O skate teve sua história marcada como manifestação de diferentes tribos urbanas que ocupavam espaços públicos. O surfe deixará de ser um estilo de vida, que envolve o contato com a natureza, para se transformar em uma competição que busca o pódio. A escalada, prática possível em espaços naturais, foi transportada para paredes artificialmente criadas para esse fim e, nos Jogos Olímpicos, terá de se mostrar altamente flexível somando habilidade e velocidade, qualidades nunca imaginadas para essa prática. E o BMX finalmente fará parte do programa de ciclismo, aproximando a tradição das provas de estrada e de pista da irreverência do jovem mountain bike.
Isso mostra a necessidade de uma competição tradicional se adequar aos tempos. Seja em busca de novos adeptos, seja à procura de mercados e consumidores, é preciso admitir que uma das marcas do mundo contemporâneo é a inquietação, que pode ou não combinar com a tradição.
Katia Rubio
Professora na USP, jornalista e psicóloga, é autora de Atletas Olímpicos Brasileiros
TEM VAGA?
Os critérios para a adoção das novas modalidades olímpicas passam por igualdade de gênero e atratividade para veículos de comunicação | Natália Leão
A programação causaria estranheza em Pierre de Coubertin, o idealizador dos Jogos Olímpicos da era moderna. Entre as 46 modalidades dos Jogos de Tóquio, que, como até as sapatilhas de corrida sabem, ficaram para 2021, estão beisebol, softbol, escalada esportiva, karatê, surfe e skate. Em Paris, skate, surfe e escalada se mantêm e ganham a companhia do breakdance e da canoagem slalom extremo. “Com esse programa, há um grande foco na juventude”, disse recentemente o presidente do Comitê Olímpico Internacional, Thomas Bach.
Manter jovem a imagem dos Jogos é um forte apelo das novas modalidades. Mas para fazer parte do quadro é preciso cumprir uma série de exigências que vão muito além de estar na moda. O primeiro critério é que a modalidade conte com uma federação internacional e um número mínimo de países que tenham federação nacional da modalidade. São 75 em quatro continentes para os masculinos e 40 em três continentes para os femininos, explica Rogério Sampaio, diretor-geral do Comitê Olímpico do Brasil.
Como é grande o número de esportes que preenchem esses requisitos, novos critérios precisaram ser adotados. “Entram nessa conta história e tradição do esporte, popularidade e apelo da juventude, saúde dos atletas, atratividade para veículos de comunicação e público em geral, relação com o país-sede dos Jogos Olímpicos, complexidade dos custos de infraestrutura e de exploração e igualdade de gênero”, afirma Sampaio. A equiparação de gênero vem sendo levada a sério. A edição de Tóquio terá uma participação geral feminina de 48,8%, a maior até hoje. Para 2024, a meta é atingir o equilíbrio pleno.
Com as novas modalidades, novas regras. Cada Federação Internacional define as questões técnicas de suas modalidades, e o formato de competição é estabelecido em conjunto pelas federações internacionais e pelo COI. No surfe, por exemplo, foram utilizados para a classificação os rankings da WSL 2020, ISA World Surfing Games de 2019 e 2020, Jogos Pan-Americanos Lima 2019 e Copa da Nação Anfitriã.
E o que pensam dessa renovação os representantes das modalidades tradicionais? “Os Jogos Olímpicos precisam acompanhar a evolução do mundo, as discussões da sociedade, não podemos ficar para trás. Tudo de bom que acontece temos de incluir em nosso universo. Precisamos continuar evoluindo sempre”, enfatiza Radamés Lattari, presidente da Confederação Brasileira de Voleibol.