Revista Exame

A "Frau Nein" Angela Merkel

A Alemanha de Angela Merkel ganha força na Europa e revive o medo ancestral do domínio germânico

Angela Merkel, a Senhora não: a chanceler mostrada acima com Adolf Hitler dá as cartas na Europa   (Angelika Warmuth/AFP)

Angela Merkel, a Senhora não: a chanceler mostrada acima com Adolf Hitler dá as cartas na Europa (Angelika Warmuth/AFP)

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Da Redação

Publicado em 6 de fevereiro de 2012 às 09h21.

Londres - Um jornalista francês, no calor caótico e anárquico dos primórdios da Revolução de 1789, descreveu o desgoverno que tomou conta da França quando, isolado o rei Luís­ 16 em Versalhes, o poder se fragmentou quase que infinitamente.

Nas reuniões dos novos líderes, segundo ele, a impressão que se tinha era a de que ali, naquele grupo, estava uma pessoa cuja perna direita queria ir para um lado e a esquerda para o outro, cuja boca desejava falar, mas cujos olhos exigiam repouso. 

É mais ou menos esse o cenário com que a Europa se prepara para entrar em 2012. No apogeu de uma crise econômica épica, em que o euro corre sério risco de vida, a Europa vê seus líderes confabulando freneticamente — mas com divergências que transparecem até nos sorrisos plásticos com que eles se apresentam diante dos fotógrafos.

Já se fala nas mais variadas línguas da região, como aconteceu no Brasil dos anos 80, numa “década perdida” para a Europa. Suas três principais potências — Alemanha, Reino Unido e França — parecem, reunidas, aquela pessoa imaginária criada pelo jornalista no passado revolucionário francês. Cada qual quer fazer uma coisa que não combina em nada com o que os demais pretendem.

No mais recente capítulo dos desencontros, o primeiro-ministro britânico, o conservador David Cameron, recusou assinar, em dezembro, um tratado feito para combater a crise.

O acordo estipula, basicamente, um controle severo pela União Europeia dos orçamentos nacionais. O objetivo é evitar déficits como os que puseram a Europa de joe­lhos e derrubaram sucessivos governantes, o último dos quais o festivo premiê italiano Silvio Berlusconi­. 

“Infelizmente, nossos amigos britânicos não quiseram aderir”, disse o presidente francês Nicolas Sarkozy. Amigos entre aspas, naturalmente. Cameron comprou uma polêmica enorme não só entre seus pares europeus, a começar por Sarkozy e pela chanceler alemã Angela Merkel, mas também entre os próprios britânicos.

Há no Reino Unido um receio de que, ficando à margem da “Nova Europa”, a Inglaterra acabe por se tornar vítima de seu isolamento. Metade de suas exportações são feitas para os demais países europeus. Isso mostra quanto o Reino Unido é dependente das nações com as quais não se alinhou.


O que deteve Cameron foram, especificamente, as regras que os britânicos teriam de adotar em seu mercado financeiro, a lendária City de Londres. A crise econômica dos últimos anos, provocada em grande parte por bancos entregues a uma ganância brutal sem freios externos, levou os paí­ses europeus — com a exceção conspícua da Inglaterra — a regulamentar firmemente o mercado financeiro. Cameron preferiu não transferir para Bruxelas a prerrogativa de decidir sobre o tratamento fiscal a prevalecer no centro financeiro inglês.

Cameron deixou aí — no zelo, para muitos descabido, pela City em detrimento dos interesses coletivos europeus — um flanco pelo qual tende a ser atacado não apenas pela oposição trabalhista mas por muitos conservadores que gostariam de ver o Reino Unido mais integrado ao resto da Europa. Margaret Thatcher, a Dama de Ferro que governou os britânicos nos anos 80, teve a mesma postura isolacionista de Cameron.

Isso acabou sendo um fator determinante para sua queda abrupta e espetacular em 1989. Esse episódio tem sido lembrado entre os britânicos quando a atitude de Cameron é debatida na mídia.

Merkel e Sarkozy, ou Merkozy, como os jornais os têm chamado, estavam juntos para tentar dobrar pessoalmente Cameron. Mas isso não significa que as coisas estejam bem entre os dois. Não é à toa que o sobrenome de Merkel aparece na frente no apelido da dupla. Em tempos duros, fala mais alto quem tem mais dinheiro —  e, nesse caso, é Merkel.

A Alemanha é a maior economia europeia e, provavelmente, também a mais ajustada aos novos tempos. Os alemães têm um modelo econômico que guarda alguma similaridade com a fórmula vitoriosa chinesa: o país não se desindustrializou nas últimas décadas, ao contrário da maior parte das potências ocidentais, e tem um formidável superávit comercial.

Não bastasse isso, a Alemanha guarda uma disciplina fiscal exemplar. O fantasma da superinflação dos anos 20 está vivo na memória alemã. Em pouco tempo, naqueles dias, o mesmo dólar que valia 10 marcos passou a ser cotado na casa dos trilhões. Uma das consequências desse descalabro é que as portas acabaram se escancarando para a demagogia nacionalista e racista de Hitler.

Merkel, no apogeu de sua estampa maternal aos 57 anos, resistiu germanicamente a todas as pressões para que a Alemanha abrisse os cofres para socorrer os países em apuros. Por isso, passou a ser chamada de “Frau Nein” — senhora Não. 


Uma análise favorável do atual quadro é que o novo tratado europeu empurra todos os países rumo às mesmas virtudes econômicas da Alemanha. Para a Europa, é sem dúvida melhor parecer no conjunto com a Alemanha do que com a Grécia ou Portugal.

Mas, no lado menos brilhante das coisas, também os outros paí­ses têm seu fantasma — a Alemanha. Desde a era dos bárbaros, os alemães têm, de tempos em tempos, mostrado aos vizinhos um apetite voraz por brigar, conquistar e dominar.

 Hitler foi a última manifestação desse apetite, mas não a única, definitivamente, ao longo da história. O incômodo dos franceses com o predomínio de Merkel na parceria Merkozy pode se traduzir na derrota de Sarkozy nas eleições presidenciais de 2012.

Um anúncio da Renault que está no ar mostra o estado de espírito do francês médio. Ironicamente, a narração é acompanhada de legenda em alemão. Se o euro sobrevive ou não, está em aberto. Nas casas de apostas londrinas, tem crescido o número de gente que arrisca que não. 

Criado em 2002, o euro já nasceu com estranhezas. Foi acordado que as moedas teriam numa face um mapa da Europa e, na outra, algo que fosse da escolha de cada país. A Grécia, por exemplo, optou, nas moedas de 1 e 2 euros, por colocar um touro e uma jovem.

“Parece que é uma ode à harmonia entre homens e animais”, diz Mary Beard, professora de assuntos clássicos em Cambridge. “Mas na verdade é um rapto — Zeus, o Rei dos Deuses, transformado em touro voador, roubando a Princesa Europa, aterrorizada, de sua ci­dade natal.” A escolha grega pa­rece não fazer muito sentido — assim como muitas outras coisas numa moeda que amanhece em 2012 sem que ninguém saiba se chega a 2013.

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