Apartamentos no Bronx, em Nova York: a prefeitura cedeu o terreno, a iniciativa privada construiu e cobra aluguéis a preços mais baixos do que a média do mercado (Leo Branco/Exame)
Leo Branco
Publicado em 2 de agosto de 2018 às 05h13.
Última atualização em 2 de agosto de 2018 às 05h13.
O conjunto habitacional Arbor House, localizado numa rua pacata do Bronx, região periférica da cidade de Nova York, é um exemplo do que existe de mais eficiente na política habitacional da maior cidade dos Estados Unidos. Aberto ao público há cinco anos, o edifício está num terreno da prefeitura doado a um consórcio privado que, em troca, ergueu os 124 apartamentos e hoje aluga as unidades a preços abaixo da média de mercado. Um apartamento de 50 metros quadrados pode ser encontrado no Arbor House por 700 dólares por mês, metade da média do aluguel em habitações desse tipo na região. Por isso, os moradores são trabalhadores de baixa renda cadastrados pela prefeitura porque estavam à beira do despejo por não conseguirem pagar o aluguel no lugar onde moravam.
Apesar de voltado para a moradia popular, o Arbor House oferece amenidades que costumam ser encontradas só em condomínios de alto padrão no Brasil. Eis algumas: no térreo, uma academia tem esteiras, pesos e um tatame bem conservado. Num jardim externo, crianças e adultos podem brincar em balanços, bancos de girar e num enorme tabuleiro de xadrez pintado no chão da quadra com peças de madeira com 1 metro de altura. Na laje do 8o e do último andar, uma startup chamada SkyVegetables cultiva vegetais orgânicos para venda online.
Como parte da parceria público-privada que originou o prédio, a empresa também paga aluguel subsidiado para estar ali. “Em troca, parte da produção fica no hall, à disposição de quem quiser pegar uma vez por semana”, diz o estudante de relações internacionais Shacore Whitehead, de 31 anos, natural do Bronx e morador do Arbor House desde 2015, quando pediu baixa do Exército na Califórnia e voltou para Nova York. “Na minha situação, sem renda fixa, estava complicado achar um lugar para morar.”
Assim como Whitehead, milhares de nova-iorquinos pobres sofrem para conseguir um lugar acessível para morar. A cidade vive uma escassez histórica de moradias. Evidência disso é o número de sem-teto, que em 2017 bateu recorde em Nova York: 62.000 pessoas estavam nessa condição, 60% acima do patamar de 2011, segundo relatório da prefeitura. É um problema típico de uma cidade vítima do sucesso. Depois de perder quase 10% da população ao longo das décadas de 70 e 80 por causa da falta de empregos e da alta criminalidade, Nova York voltou a crescer nos anos 90, com uma economia renovada pela abundância de trabalho no mercado financeiro e, mais recentemente, em startups.
Atualmente, os 8,6 milhões de nova-iorquinos, maior contingente nos quase 400 anos da cidade, convivem com a menor taxa de desemprego desde 1976, quando começou a série histórica: 4,2% da população, registrada em março deste ano. Numa cidade com acidentes geográficos como rios e ilhas nas áreas onde estão os empregos, como Manhattan e Brooklyn, não foi possível manter o equilíbrio entre oferta e demanda por moradia. O resultado: os aluguéis subiram em média 3,9% ao ano desde 2010, segundo dados do Zillow, comparador online de preços de imóveis. Foi o dobro da expansão anual dos salários dos nova-iorquinos: 1,8%.
Por isso, o aluguel pesa muito no bolso de quem vive na cidade: 54% dos moradores gastam mais de 30% do salário com isso. São 4 pontos percentuais acima da média americana, que já anda inflacionada com a escalada nos preços de residências em polos de tecnologia, como São Francisco, Seattle e Boston, segundo o ApartmentList, outro comparador online de moradia. Encontrar um imóvel bom e barato é, hoje, uma verdadeira obsessão entre os nova-iorquinos. Não é à toa que anúncios de sites como ApartmentList e Zillow estão espalhados pelo metrô local, um dos mais movimentados do mundo.
Em troca, as construtoras se comprometem a dedicar uma parte das unidades do empreendimento a um regime de locação com preços fixados pela prefeitura. Para quem já vive na rua, o município ampliou o financiamento de abrigos geridos por entidades beneficentes. “O programa tem muitas ferramentas para atender a cada pedaço de um problema sem solução fácil”, diz o economista Mark Willis, professor de políticas habitacionais na Universidade de Nova York.
Embora ainda seja cedo para uma conclusão sobre a eficácia do programa, há algumas evidências de resultados positivos. O número de permissões de novos edifícios, que caiu de 17.000 em 2005 para 5.000 sete anos mais tarde, voltou a subir: no ano passado, 8.000 prédios tiveram a construção autorizada, boa parte deles com algum controle sobre os aluguéis por parte da prefeitura. Pela primeira vez desde a crise imobiliá-ria de 2008, a escalada do custo de locação na cidade vem dando uma trégua: no ano passado, os aluguéis caíram, em média, 3,7% em Nova York, segundo dados do Zumper, um site de busca de imóveis. Por fim, mesmo a notícia do número recorde de sem-tetos esconde um copo meio cheio. Nos últimos dois anos, a expansão do número de desabrigados foi a menor desde 2011. Caso fosse mantido o ritmo que vinha levando até 2015, a cidade teria hoje 10.000 moradores de rua a mais.
A parceria público-privada na solução de problemas habitacionais em Nova York marca uma ruptura com um hiperativismo estatal que deu muito certo em Singapura. No país asiático, sete em cada dez cidadãos moram em residências construídas por uma autarquia estatal, o conselho de habitação e desenvolvimento, HDB nas iniciais em inglês. Na tecnocracia gerenciada por um partido único, que é característica de Singapura, o HDB tem o poder de desapropriar terras para erguer moradias, bem como pressiona construtoras a manter custos de edificação baixos em troca de adiantamentos nas verbas da obra — algo essencial para o fluxo de caixa dessas empresas numa sociedade em que o governo controla praticamente toda a economia.
Numa realidade de democracia plena e economia mais diversificada, como a dos Estados Unidos, a mão forte da prefeitura nova-iorquina trouxe alguns reveses. Fundada em 1935, a autarquia da prefeitura sobre o assunto, a New York City Housing Authority (Nycha), gera 176.000 unidades habitacionais — um em cada 16 nova-iorquinos paga aluguel à Nycha. Isso explica por que 78% dos moradores da cidade vivem de aluguel, uma exceção numa sociedade aficionada da ideia de posse do imóvel, como a dos Estados Unidos — dois terços dos americanos têm casa própria.
A autarquia viveu o auge nos anos 50 e 60, quando construiu a maioria dos apartamentos. Durante o esvaziamento da cidade nas décadas seguintes, sofreu com cortes de verbas estaduais e federais e desde então opera com o dinheiro dos aluguéis, e praticamente só no vermelho. O resultado: faltam recursos até para a manutenção dos imóveis. Para reformar todas as unidades habitacionais da autarquia, seria necessário investir, segundo uma estimativa da prefeitura, 17 bilhões de dólares — cinco vezes o orçamento do próprio órgão.
Que lição a crise habitacional de Nova York tem a oferecer às cidades brasileiras? Por aqui, o déficit de moradias também desafia os gestores públicos. As estatísticas brasileiras sobre o tema são pouco precisas, mas fala-se que faltam cerca de 6 milhões de moradias para resolver problemas como as favelas, os cortiços ou as invasões de prédios abandonados — que, não raramente, causam tragédias como o desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, ocorrido no centro de São Paulo em maio, causando nove mortes. Segundo a Secretaria de Habitação de São Paulo, quase 1,2 milhão de famílias vivem em situação precária, das quais 830.000 em domicílios considerados inapropriados e que precisam de reformas. Outras 358 000 novas habitações têm de ser construídas. Se a mudança do quadro depender somente do orçamento municipal para habitação de 580 milhões de reais por ano, serão necessários 120 anos para zerar o déficit de moradia na maior cidade brasileira.
Na origem da crise habitacional está uma dependência quase total de uma solução só: o programa federal Minha Casa, Minha Vida, gerido pelo Ministério das Cidades em conjunto com a Caixa Econômica Federal, estados e municípios. O programa é bem-sucedido na entrega de moradias em escala. Desde o início, em 2009, perto de 3 milhões de residências foram construídas. O problema é que, formatado em Brasília e engessado de modo a se adequar ao máximo possível de prefeituras, o programa deixa de atender a demandas específicas, como a reforma de prédios abandonados em áreas centrais de metrópoles como São Paulo, algo que poderia evitar a proliferação de ocupações de edifícios na região.
Depender de uma solução com formato único também reduz a chance de inovação no padrão de construções. Além disso, abre caminho para obras mal planejadas para a realidade de determinada área ou mesmo executadas às pressas para contar votos. Num relatório de setembro de 2016, o Tribunal de Contas da União apontou problemas de construção em nove entre dez casas feitas pelo Minha Casa. Para completar, a dependência do programa cria um mau hábito em governos estaduais e municipais Brasil afora: creditar apenas à União a responsabilidade de buscar soluções para a habitação. “Os prefeitos brasileiros em geral não pensam nos problemas de moradia de suas cidades, como cortiços, moradores de rua ou favelas. Preferem esperar a oferta que vem da União”, diz a arquiteta e urbanista Elisabete França, professora na Universidade de São Paulo.
Há, no entanto, razões para acreditar que o Brasil caminha para adotar soluções mais descentralizadas contra a falta de moradias. Pouco antes do desabamento do prédio no centro de São Paulo, a prefeitura inaugurou a primeira reforma de um edifício comercial abandonado e que hoje abriga 120 famílias pagando aluguel. No âmbito estadual, São Paulo vem tentando desde 2012 criar uma parceria público-privada para erguer 3.000 moradias na Grande São Paulo, mas o projeto segue em passo lento. “Há ainda certo desinteresse e desconhecimento do mercado quanto a parcerias público-privadas na área de habitação”, diz Bruno Pereira, sócio da consultoria Radar PPP, especialista no tema. Após ajustes contratuais para atrair investidores, a expectativa é que o edital avance nos próximos meses. O metrô paulistano prevê ceder terrenos ociosos ao redor das estações à construção de moradias populares. São sinais de que o país está finalmente começando a construir alternativas para superar a falta de moradias.