Montadora na China: mesmo lá, o setor industrial perde peso relativo | Corbis/Getty Images / (Corbis/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 20 de outubro de 2017 às 05h55.
Última atualização em 20 de outubro de 2017 às 05h55.
A ninguém ocorreu chamar de descaçação o surgimento da sociedade agrícola, que poria fim à caça, à pesca e à coleta, nem de desagriculturação a Revolução Industrial. É estranho batizar a era que começa com um termo alusivo à era que termina. Só que a lógica tem sido quebrada nas referências ao redesenho econômico iniciado em meados do século passado, e ainda em curso, que deu ao setor de serviços um protagonismo espetacular. Há 20 anos sua fatia no PIB mundial era de 58%. Já está em 69%, e continua a subir. Como a liderança já pertenceu ao setor industrial, o fenômeno recebeu um apelido saudosista, desindustrialização, que é um duplo equívoco. Primeiro, porque o neologismo sugere a existência de um processo de desmonte industrial, e o avanço dos serviços não tem nada a ver com fechamento de fábricas. Segundo, porque a palavra desindustrialização virou bandeira de um discurso ideológico, para o qual a prosperidade das nações pede mais indústrias.
A composição do PIB lembra uma pizza cortada em três fatias, uma para cada setor econômico: agricultura, indústria e serviços — este último, para lá de abrangente, abriga segmentos variados como comércio, transporte, sistema financeiro, previdência, educação, saúde, software, turismo e pesquisa. A participação da indústria na economia global vem caindo há mais de 60 anos. Nos últimos 20 anos, foi de 21% para 15%. Baixou nas 30 maiores economias e em todos os continentes. Até Coreia do Sul e China, com desempenho admirável, já viram suas fábricas mais bem representadas na economia local. Há países que se destacam pelo crescimento momentâneo do PIB industrial, como Eslováquia, Eslovênia, Polônia e República Tcheca, mas, mesmo nesses quatro, o peso já foi maior.
O termo desindustrialização foi criado na academia especificamente para definir a redução relativa do setor industrial no PIB, espaço ocupado pelo PIB de serviços. Mas ele vem sendo usado, de forma generalizada, para tipificar todos os movimentos empresariais que envolvam racionalização de custos. No início do ano, a Whirlpool, que no Brasil é dona das marcas Brastemp e Consul, anunciou a transferência para a Polônia de uma fábrica improdutiva que funcionava na França. Pronto. A decisão virou exemplo de desindustrialização e tema do debate eleitoral entre Marine Le Pen e Emmanuel Macron. A discussão foi disparada na Austrália, depois que a Coca-Cola avisou que não fazia mais sentido manter uma unidade em Adelaide. No Japão, quando a Sharp comunicou que acabaria com a fábrica de LED em Hiroshima. Na Inglaterra, quando a Ford, que já fechou duas fábricas no país, informou que poderá encerrar as duas restantes. O anúncio ocorreu após o Brexit, movimento que tirou da zona do euro o país berço da Revolução Industrial.
Não é diferente no Brasil, onde a realidade econômica impõe às empresas atenção redobrada à gestão de custos. A L’Oréal decidiu fechar sua fábrica na Pavuna, no Rio de Janeiro? A Heineken vai acabar com a unidade de Horizonte, nas proximidades de Fortaleza? O grupo SEB, dono das marcas Arno, Panex e Rochedo, decidiu mudar para o Rio de Janeiro a fábrica do ABC paulista? A empresa de tubos plásticos Tigre acabou com a operação de Camaçari, na Bahia? Tudo vira exemplo de desindustrialização. Crescemos associando progresso à abertura de indústrias. Gostamos de linhas de montagem. Aprendemos a cha–mar os países mais ricos de “nações industrializadas”. Toda vez que recebemos uma notícia dessas, somos levados a achar que alguma coisa vai mal, ainda mais se escutamos que está em curso um processo chamado desindustrialização.
O economista inglês Thomas Malthus vislumbrava um colapso provocado pelo descasamento entre o aumento populacional e a oferta de alimentos, que não se confirmou. Os milhares de novos Malthus espalhados falam em colapso desencadeado pelo descasamento entre o aumento populacional e a oferta de empregos. Que só não vai se confirmar, dizem, se o mundo seguir o que pregam: mais investimentos na indústria. Não na economia em geral, note bem, mas especificamente na indústria. Num artigo recente, Paulo Skaf, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, definiu a indústria como “fundamental para o crescimento e o desenvolvimento do país”. Faltou pouco para repetir o economista francês François Quesnais, do século 18, que chamava a agricultura de “única forma de produzir riqueza”.
Em toda parte, empresários, sindicalistas, acadêmicos e economistas defendem uma ação governamental para conter a redução do setor industrial em seus países. Intensificam-se as pressões pela adoção de políticas restritivas, de novas barreiras protecionistas e de um Estado mais intervencionista — receituário que, na opinião dos militantes industrialistas, poderia restaurar o velho ambiente fabril que, ao que tudo indica, está saindo da vida para entrar na história. Impressionados, os políticos repetem o mantra. Na campanha presidencial americana, Hillary Clinton e Donald Trump falavam em desindustrialização o tempo todo. Prometiam recuperar fábricas que se foram, reter as que pensam em se mudar e atrair fábricas novas, além de criar mais postos de trabalho industriais. “Temos de nos proteger da pilhagem de outros países, que fabricam nossos produtos, roubam nossas companhias e destroem nossos empregos”, disse Trump após a vitória.
É preciso tomar cuidado com afirmações nesse campo. E a primeira precaução é entender que há um truque matemático muito do sem-vergonha por trás desse alarmismo. Toda vez que fazemos contas com porcentagens, o grande segredo é a escolha da base de cálculo. Por exemplo: 20%, em si, não quer dizer nada. Pode ser muito ou pouco, depende do número a que está ligado. Se estiver ligado a 1 real, dá 20 centavos. Se estiver ligado a 100 000 reais, dá 20 000 reais. Pela porcentagem seca, como vimos, o peso da indústria no PIB mundial, atualmente em 15%, já foi 21% há 20 anos. Mas o PIB mundial de 1995 era 30 trilhões de dólares. E o PIB de 2015, 78 trilhões. Ora: 21% de 30 dá 6,3. E 15% de 78 dá 11,7. Em números absolutos, a produção industrial dos últimos 20 anos aumentou de 6,3 trilhões de dólares para 11,7 trilhões. Como falar em desindustrialização se o setor cresceu 85%?
Esconder o número absoluto e operar escorado em porcentagens tem sido uma arma poderosa do lobby industrial. Há crescimento real em praticamente todos os setores industriais: alimentos, bebidas, carros, roupas, remédios, eletrônicos. Nos últimos 40 anos, a produção anual de petróleo dobrou; a de energia elétrica cresceu 130%; a de aço, 160%; a de automóveis triplicou. Um dos maiores indicadores da saúde da indústria é a produção de embalagens, que cresce ano a ano. A geração de riqueza da indústria no mundo dobrou nos últimos 15 anos. A produção industrial não está caindo. Está subindo. Só não acompanha a velocidade de expansão do setor de serviços.
Vale a pena ver um exemplo prático dessa corrida. A divisão de equipamentos médicos da GE lançou o Revolution ACTS, um tomógrafo de alta resolução, comercializado no Brasil a 690 000 reais. A cada venda, esse é o valor adicionado ao PIB industrial. Só que, ao entrar em funcionamento, o aparelho adiciona 866 000 reais por ano ao PIB de serviços. São 266 000 reais de custo operacional, 120 000 de manutenção e 480 000 com exames. Ou seja, para cada 1 real adicionado ao PIB industrial, o aparelho somou 1,25 real ao PIB de serviços. Considerados todos os setores industriais, a cada 1 real produzido pela indústria mundial, o setor de serviços movimenta 4,60 reais. Daí porque, ainda que a indústria cresça, os serviços crescem mais. Segundo o Banco Mundial, o setor de serviços já representa mais de 50% do PIB em 121 de 150 países analisados — e mais de 70% do PIB em 34. No Brasil, 72%. Na Europa, a média é 74%. Nos Estados Unidos, 80%.
A agricultura passou por isso. Em 1820, representava 65% do PIB mundial; atualmente, 5%. Nesse período, o PIB global subiu 127 vezes: de 605 bilhões de dólares para 77 trilhões de dólares. E 5% de 77 trilhões é mais de 6 vezes todo o PIB de 1820. No mundo real, a agricultura de 5% faz por 7,5 bilhões de pessoas o que a de 65% não fazia por 1 bilhão: derrubar a 10% a taxa de pobreza extrema que na época atingia 95% dos habitantes. Nos últimos 60 anos, a população mundial dobrou e a produção de comida quadruplicou. Em 100 anos, o preço dos alimentos caiu pela metade, e o tempo para retirar 1 real da terra caiu de 90 minutos para menos de 3. Nos países de agricultura mais avançada, há um trator onde havia quatro animais puxando arado em 1900. A sociedade industrial, que aumentou a renda per capita mundial em 20 vezes, fez mais pelo campo do que os 10 000 anos de vigência da sociedade agrícola.
Só em Bangladesh
Os primeiros a lamentar a queda da indústria no PIB foram os países mais ricos, com renda per capita acima de 10 000 dólares, que perderam fábricas para os mais pobres. Nos Estados Unidos, a indústria já empregou 25 de cada 100 trabalhadores. Hoje emprega dez. No Reino Unido, o peso da manufatura caiu pela metade em poucas décadas. Depois de atingir os mais ricos, a queda do setor industrial no PIB alcançou as economias com renda per capita inferior a 3 000 dólares. No México, mais da metade da mão de obra estava empregada na indústria em 1980. Agora, pouco mais de um terço. O Sudeste Asiático, que se industrializou de 1960 a 2005, também entrou na roda. A Indonésia acaba de atingir o menor patamar de produção industrial em duas décadas. No sul da Ásia, o único país com crescimento industrial é Bangladesh. Na Índia, a indústria perdeu 7 pontos no PIB em dez anos. Na África, a participação média da indústria é de 11%. Já foi 17% em 1990. As reduções deram lugar aos serviços.
Pela lógica da desindustrialização, deve-se evitar tudo o que derruba a participação da indústria no PIB. Esquecem-se seus defensores que muitas vezes a queda decorre de avanços empresariais bons para a companhia e para o consumidor. Em 2012, a produtividade das montadoras brasileiras foi de 22 carros por funcionário. Mantida a produtividade dos tempos do milagre econômico, de sete carros por funcionário, cada veículo vendido adicionaria mais valor ao PIB industrial. Só que custaria tão caro que reduziria as vendas e fecharia as fábricas. Pela lógica da desindustrialização, deveríamos vaiar, não aplaudir a brasileira WEG, uma das maiores fabricantes de motores do mundo. Afinal, abriu unidades de produção em 11 países, incluindo Índia e China. Se a WEG tivesse ficado em solo pátrio, em vez de gerar 10 000 empregos no exterior e 19 000 no Brasil, já teria fechado as portas ou sido vendida.
O processo é natural. Quanto mais rico fica o país, menor é o peso da agricultura. De 154 países catalogados pelo Banco Mundial, em apenas 20 a agricultura ainda representa mais de um quarto do PIB. Em comum, são 20 países que não enriqueceram. Quanto mais rico fica um país, menor também será a presença de indústrias, pelo simples fato de que as pessoas demandam serviços. Toda mudança produz vítimas e gera angústia. Nem todas as pessoas adaptadas ao momento anterior se adaptam ao novo momento.
Há sinais fortes de que o mundo “desindustrializado” é um lugar melhor do que era antes. A renda per capita vem subindo. O IDH, que mede o grau de desenvolvimento econômico e a qualidade de vida, também. Na comparação com 1990, as pessoas vivem mais, têm mais acesso a serviços básicos, e há mais crianças na escola. Os países mais ricos, agora bem menos industrializados, têm taxas de desemprego mais baixas do que no passado. Nos Estados Unidos, a taxa de desemprego é menor agora, quando sua indústria automobilística detém 12% do mercado mundial, do que nos anos 50, quando detinha 80%. De acordo com o Banco Mundial, o crescimento do setor de serviços contribui mais para a redução da pobreza do que contribuiu o crescimento da agricultura e da indústria.
O mesmo vale para o Brasil, cuja presença da indústria de transformação no PIB é a mais baixa da história: 11,4%. Em 1985, no auge, representava 21,8%. Só que, no período, o PIB cresceu seis vezes: de 222 bilhões para 1,8 trilhão de dólares. Fazendo as contas, veremos que, em faturamento, a indústria brasileira quadruplicou de tamanho. A produção física também registra marcas notáveis. Em 1985, as montadoras produziram 960 000 veículos. Em 2012, antes da crise econômica, 3,3 milhões. A indústria de alimentos, responsável por quase 20% das exportações e por 1,6 milhão de empregos diretos, faturou 614 bilhões de reais no ano passado. Quase o triplo do que faturava há 30 anos. A energia instalada e a produção de petróleo triplicaram. Nos últimos dez anos, período em que a população brasileira cresceu 12%, o crescimento acumulado da produção de bebidas beira 50%. Estamos mais ricos, econômica e socialmente, com queda na mortalidade infantil, no analfabetismo, e com o aumento na renda per capita, no número de universitários, no tamanho da classe média.
O empresário australiano tem queixas sobre seu país. O empresário francês também. O americano, o inglês, o italiano. Não há lugar onde o empresário não tenha reparos a fazer. O empresário brasileiro também reclama. E não reclama sem motivos. O ambiente de negócios nacional é realmente adverso. O governo trata mal o empreendedor, o sistema tributário é caro e confuso, e a burocracia beira a insanidade. Falta infraestrutura, a qualidade da mão de obra deixa a desejar, os contratos são frequentemente desrespeitados e as regras mudam demais. Não por outro motivo, apesar de sermos uma das dez maiores economias do mundo, figuramos lá embaixo no ranking criado pelo Banco Mundial para monitorar o ambiente de negócios dos países. Esquecem-se os industrialistas apenas que os entraves atingem a todos, não apenas a turma da linha de montagem. O Brasil tem 4,5 milhões de empresas, das quais 10% são indústrias e 7% agro. As demais, serviços. Todas sofrem com a indiferença das autoridades com o empreendedor. O problema no Brasil não é o “des” de desindustrialização. Esse a gente supera. O “des” que o empresário precisa combater é o de desprezo, desestímulo e desânimo.
Eduardo Oinegue é jornalista. Foi redator-chefe da revista VEJA e diretor de redação de EXAME