Fidel Castro: Presidente sul-africano agradeceu o líder cubano por sua ajuda na luta para derrubar o apartheid (Charles Platiau/Reuters)
Eduardo Salgado
Publicado em 9 de dezembro de 2016 às 05h55.
Última atualização em 9 de dezembro de 2016 às 10h17.
São Paulo – Formado em ciências sociais e jornalismo e doutor em geografia humana, Demétrio Magnoli é membro do Grupo de Análises de Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo. Ex-militante de esquerda nos anos 70, segue de perto a história do Partido dos Trabalhadores desde sua fundação, em 1980.
Na entrevista a seguir, Magnoli examina como o significado da Revolução Cubana foi mudando ao longo das décadas para os movimentos de esquerda na América Latina e especula sobre os efeitos que a morte de Fidel Castro, um de seus ícones históricos, terá sobre o processo de análise em curso no Brasil após a derrocada do governo de Dilma Rousseff. “Chegou a hora de a esquerda brasileira se olhar no espelho”, diz. Em sua opinião, os desafios são de duas ordens: fazer uma autocrítica do passado e definir como se organizar de agora em diante.
EXAME – De que forma a morte de Castro impacta a esquerda brasileira?
Demétrio Magnoli – Há dois efeitos. Um é mais imediato. Refiro-me a um último espasmo utópico. Vamos ver textos e declarações de como Fidel Castro mudou a história. Essa celebração do mito pode ser vista até mesmo na cobertura jornalística feita após sua morte, algo que aconteceu no Brasil e no exterior. Isso tudo é momentâneo. Mais adiante, a coisa se complica. Com a morte do último personagem utópico, virá o terrível encontro com a realidade.
Espero que a esquerda brasileira comece a falar sobre o que acontece em Cuba. Fale do significado das reformas econômicas cubanas, que são muito curiosas. Elas permitem que as pessoas invistam e empreendam, mas proíbem a criação de sindicatos e a liberdade de expressão. Cuba está fazendo uma transição de um comunismo selvagem para um capitalismo selvagem. A morte de Castro antecipa esse debate aqui. A esquerda brasileira perdeu um de seus grandes símbolos do passado e precisa começar a falar sobre o presente e o futuro.
EXAME – O senhor se refere ao processo de reflexão que alguns expoentes do PT e de outros partidos de esquerda têm defendido?
Demétrio Magnoli – Sim. Chegou o momento de a esquerda se olhar no espelho depois do fracasso dos governos petistas.
EXAME – O senhor considera que todas as administrações do PT falharam?
Demétrio Magnoli – Não me refiro a essa ou àquela administração. O que estou dizendo é que, depois de três governos e meio, a aventura do PT no Planalto terminou em depressão econômica e num escândalo político de grandes dimensões que gerou o impeachment de Dilma. É um fracasso histórico. Tanto é assim que o PT está tentando não se desmantelar.
EXAME – Em sua opinião, o que é mais provável?
Demétrio Magnoli – Ninguém sabe. Há aqueles, dentro e fora do PT, que querem criar um novo partido, algo na linha de um partido movimento, como o Podemos espanhol. Há outros, como Tarso Genro e Luiz Inácio Lula da Silva, que acham que a esquerda deve se reorganizar como uma frente ampla, como no Uruguai. Esses são os dois caminhos que estão em debate.
EXAME – Por que a esquerda não reconhece que a Revolução Cubana fracassou?
Demétrio Magnoli – Hoje é muito difícil uma pessoa dizer que defende Cuba por uma utopia. A única “utopia” que a ilha representa é a de uma ditadura. Até há algum tempo, alguém poderia argumentar que o poder absoluto do Partido Comunista era um escudo de proteção de um modelo social estatizado. Hoje esse governo social estatizado está desaparecendo por obra do próprio Raúl Castro. A utopia cubana equivale a um copo vazio. É por isso que os defensores do castrismo têm apelado cada vez mais para o passado.
Falam de Che Guevara e da época da guerrilha na Serra Maestra, que aconteceu há quase 60 anos. Por que a corrente principal da esquerda brasileira não reconhece isso? Porque seria reconhecer o próprio fracasso, reconhecer que suas crenças de décadas deram em nada. Há uma atitude de muita negação.
EXAME – Quais foram as circunstâncias que fizeram de Castro um dos grandes ícones latino-americanos?
Demétrio Magnoli – Embora sempre tenha sido irrelevante do ponto de vista econômico, Cuba foi extremamente importante no plano do imaginário político. Na segunda metade dos anos 50, a esquerda social-democrata europeia se desencantou, de maneira definitiva, com a União Soviética. Entre os motivos, vale citar a invasão soviética na Hungria e as denúncias dos crimes de Stálin. Com a Revolução Cubana em 1959, uma parte da esquerda mundial, mais especialmente a esquerda latino-americana, viu uma alternativa revolucionária, dinâmica e de futuro.
O movimento cubano criou uma nova utopia no momento em que a velha fenecia. A ideia da expansão da Revolução Cubana pela América Latina e pela África, com focos guerrilheiros, algo simbolizado na figura de Che Guevara, remoldou a esquerda latino-americana. Isso isolou nossa esquerda do desencanto com a União Soviética. Cuba virou uma caverna onde a esquerda da América Latina acabou se refugiando. Mais do que uma realidade, Cuba se transformou num mito.
EXAME – O que explica esse mito ter durado tantas décadas?
Demétrio Magnoli – Parte da explicação é sua posição geográfica. Cuba está a cerca de 100 quilômetros da costa americana. O fato de uma pequena ilha ter lançado uma bandeira de desafio à maior potência do mundo criou um romance sobre Cuba. Mesmo tendo durado tanto tempo, o mito da Revolução Cubana teve períodos distintos. Há dois personagens e duas metáforas. O personagem inicial foi Che Guevara. Ele está associado à metáfora do farol — à expansão da revolução pela América Latina.
Aqui no Brasil, um dos reflexos disso foram os rachas no Partido Comunista Brasileiro, a partir de 1964, que levaram a vários grupos de luta armada contra a ditadura militar. Não foi uma influência meramente ideológica. Foi organizacional. Mais tarde, após a morte de Che Guevara e a derrota da luta armada, começou outro período. Nessa segunda fase, o personagem passou a ser Castro, associado à metáfora da fortaleza. Cuba como um lugar assediado pelos Estados Unidos e que resiste.
No Brasil, a ala do PT ligada a José Dirceu e a figuras como Frei Betto, da Teologia da Libertação, é ainda profundamente leal ao castrismo. O próprio Lula estabeleceu uma relação próxima com Castro. Ou seja, o mito de Cuba exerceu influência inclusive sobre o PT.
EXAME – O senhor conseguiria apontar alguma política pública adotada durante as administrações do PT que tenha tido influência cubana, com exceção dos médicos cubanos?
Demétrio Magnoli – No começo do governo Lula, os embaixadores brasileiros em Havana eram ligados ao castrismo. Depois houve o financiamento do Porto de Mariel, em Cuba, pelo BNDES com participação da Odebrecht. A relação era realmente mais daqui para lá. O Bolsa Família, maior programa social dos anos do PT no Planalto, teve como origem formulações feitas no Banco Mundial durante os anos 90.
Não teve nada a ver com Cuba. É irrelevante se políticas públicas foram ou não inspiradas na ilha de Fidel. Não é esse o ponto. Falo do mito ordenador. O Lula não existe sem o PT, sem a história do partido nem sem o imaginário e o passado que cercam boa parte da esquerda brasileira.