O historiador americano Michael Kimmage: a saída, mostra a história, é pela diplomacia — e não pela guerra (Divulgação/Divulgação)
Editor de Macroeconomia
Publicado em 26 de outubro de 2023 às 06h00.
Última atualização em 28 de outubro de 2023 às 12h44.
Em recente artigo para a prestigiada revista Foreign Affairs, Michael Kimmage, professor de história da Universidade Católica da América, argumentou, juntamente com sua colega Hannah Note, que as grandes potências globais — Estados Unidos, China, Europa e Rússia — vivem uma era de competição e distração. Com problemas graves domésticos, esses países perderam a capacidade de estabilizar as disputas regionais que pululam mundo afora, gerando vácuos de poder ao redor do globo. O ataque do grupo terrorista Hamas a Israel seria, em sua avaliação, um exemplo disso, especialmente pela decisão de atacar um país apoiado abertamente pelos Estados Unidos. “De certa forma, é um julgamento sobre o poder americano”, diz Kimmage, que também é pesquisador do think tank CSIS. “O Hamas julgou que os Estados Unidos são uma superpotência distraída.” Esse ambiente de instabilidade e caos entre ações pontuais pelo planeta preocupam. A história ensina, porém, que as motivações para a guerra não mudaram muito desde a antiguidade, argumenta Kimmage, e que a diplomacia já se provou como a saída para evitar a escalada dos conflitos.
Há dois grandes conflitos no mundo, a guerra na Ucrânia e a guerra entre Israel e o Hamas, além de choquess antigos. Você escreveu que o Oriente Médio pode “representar algo novo”. Como assim?
Antes de 1991, analisaríamos o Oriente Médio pelas lentes da guerra fria. Uma das principais questões seriam quais países estavam alinhados com os Estados Unidos ou com a União Soviética. Sempre houve outros fatores além desse conflito binário, mas essa seria uma das estruturas principais. Após 1991, o foco frequentemente estava nas dinâmicas dentro da região e no papel externo ou interno dos Estados Unidos. Os esforços diplomáticos mais recentes mostram que eles desempenharão um papel importante no conflito. Mas não tenho certeza se será decisivo. A Europa também não desempenhará um papel grande, pois não possui ativos militares na região. A Rússia tem ativos militares e relações com o Hamas, os palestinos, Israel e países da região, mas não deve ter grande influência. A China tem diversas relações econômicas com o Oriente Médio, mas quase nenhuma presença militar. O que surpreende, após 70 anos de análise do Oriente Médio sob a ótica das grandes potências, é a limitação que elas enfrentam. Não é que tenham desaparecido ou não desempenharão nenhum papel. Mas cada uma delas enfrenta um conjunto distinto de limitações, o que me leva a crer que a capacidade delas de controlar o conflito e resolvê-lo será limitada.
Como as atuais configurações geopolíticas, como as tensões entre Estados Unidos e China, moldam esses conflitos?
O catalisador que desencadeou o conflito em Israel tem raízes locais, e a resposta terá implicações geopolíticas que se estenderão além. No entanto, eu não colocaria os EUA no centro dessa história. É algo que pode se entender como um drama trágico grego. Se o conflito sair do controle e piorar, será ruim para para a China e para os EUA — e também para o Brasil, ao elevar preços de energia, causando inflação. Alguns dizem que o Oriente Médio é menos importante do que costumava ser nos últimos 20 anos. Mas é uma das grandes encruzilhadas do mundo. Se o conflito piorar, e Irã, Líbano e Hezbollah entrarem em ação, poderá ser potencialmente desastroso para a China e para os EUA.
Por que você diz isso?
Os Estados Unidos enfrentam uma série de problemas internos domésticos. A China passa por uma crise no mercado imobiliário e na economia. Nenhum dos países está bem posicionado para suportar choques externos. Teoricamente, Pequim e Washington deveriam cooperar para resolver o conflito — e aí a competição entra no caminho. Esse é um fator importante nesse conflito, pois ambos estão tão acostumados a competir que será difícil encontrarem uma solução comum. Por isso a ideia de tragédia vem à mente. Não acho que seja do interesse de nenhum dos países um grande problema. Mas seria surpresa se conseguissem cooperar para colocar o “gênio de volta na garrafa”.
Países do Oriente Médio passavam por um processo de normalização e negociação. Os ataques do Hamas congelaram essas negociações...
Eles gostariam de voltar a isso — teoricamente. Mas outro ator é a opinião pública em países com grandes populações árabes que podem reagir de forma negativa ao que já aconteceu em Gaza. A tensão entre os Estados Unidos e a China é uma variável que não piora o conflito, mas torna difícil resolvê-lo. Além disso, há a relação entre Estados Unidos e Rússia, e aqui a geometria do conflito é difícil de entender. A Rússia joga em todos os lados no Oriente Médio, mantendo relações com o Hamas, Israel, Síria e Irã, mas não parece ter uma agenda clara — e uma cooperação Estados Unidos-Rússia é improvável. Também vivemos na era das redes sociais, o que incentiva reações emocionais rápidas por parte dos envolvidos nesse conflito. Isso é algo que os políticos em todo o espectro estão lutando para controlar. Por isso, me preocupo com a escalada que pode surgir a partir da opinião pública, das imagens e dos vídeos da terrível violência que vimos em ambos os lados desse conflito.
Em um artigo recente, você argumenta que vivemos uma era de grande competição e distração entre as maiores potências. Como assim?
O modelo de competição entre grandes potências é importante para entender a política externa americana. Trata-se da transição da Presidência de Barack Obama para a de Donald Trump. Antes de 2016, a frase-chave era a ordem internacional liberal — a visão de Obama. Trump tinha uma compreensão diferente e, por mais que fosse considerado uma figura caótica, acabou ganhando o argumento de que existem algumas grandes potências — com considerável tensão entre elas. A narrativa da política internacional passou a ser sobre como elas competem entre si. Isso começou a influenciar os gastos em defesa dos Estados Unidos e sua postura em relação à China, sobretudo após a guerra na Ucrânia. A missão passou a ser dissuadir a intervenção militar russa e impedir a China de atacar Taiwan. Esses se tornaram os principais focos da política externa. Para que tudo isso funcione, é necessário ter o tipo certo de gasto em defesa e a estratégia adequada. Mas o que enfatizamos é que todas as quatro grandes potências têm suas fraquezas.
Quais?
A Europa não está tão consolidada como uma grande potência. A China é uma superpotência econômica, mas tem iniciativas diplomáticas que não vão a lugar algum: tentou trazer paz à Ucrânia e mediar um acordo entre a Arábia Saudita e o Irã, com uma visão para o Oriente Médio. Não passaram de tentativas vazias. A Rússia está limitada pelo conflito com a Ucrânia. O melhor exemplo disso é o conflito étnico que acabamos de ver em Nagorno-Karabakh, entre a Armênia e o Azerbaijão. Os EUA estão distraídos em parte por seu alcance excessivo, mas também por sua política doméstica conturbada. A competição entre as grandes potências está presente, mas há uma ampla gama de atividades acontecendo fora do âmbito delas — de certa forma, contra a vontade delas.
A guerra entre Israel e Hamas se comunica com isso?
O conflito entre o Hamas e Israel é um exemplo disso: o que é notável na decisão do Hamas é que tiveram a coragem de desafiar Israel neste momento, sabendo que o país conta com o apoio dos EUA. De certa forma, é um julgamento sobre o poder americano. O Hamas julgou que os Estados Unidos são uma superpotência distraída. Talvez o Hamas esteja errado, mas é importantes considerar esse julgamento. E parece ser a situação atual. Isso é o que queremos dizer: as limitações das grandes potências no momento são resultado de suas distrações.
Você argumenta que a distração leva a “vácuos de poder” pelo mundo. Como funciona essa dinâmica?
É interessante comparar isso, porque tem alguma relevância para a situação no Oriente Médio, com golpes de Estado e agitações políticas nos últimos anos, especialmente no norte da África. A morte de Yevgeny Prigozhin e a revolta em junho de 2023 levaram os mercenários do grupo Wagner a agir na África. São agentes de instabilidade. A China tem ambições econômicas na região, mas não tem agenda mais ampla. Os EUA e a Europa adorariam ver a chamada ordem internacional liberal vigorando na África, mas têm sido ineficazes em lidar com situações reais — embaixadores europeus foram expulsos, por exemplo. A França, que teve um papel militar importante no norte da África, tem dificuldades para encontrar uma orientação. Os EUA, que participam de atividades de contraterrorismo ali, também não atuam de maneira coerente. Assim, todas as grandes potências estão presentes, com iniciativas e instrumentos de influência. Mas todas parecem igualmente incoerentes. Em uma era clássica de competição entre grandes potências, elas dividiriam o território e ergueriam suas bandeiras. Não é o que vemos.
Em seu livro sobre a guerra na Ucrânia, você fala sobre uma nova instabilidade global. Como é essa nova ordem internacional?
A guerra na Ucrânia se assemelha a um conflito da guerra fria, no sentido de que o país está dividido: de um lado a Rússia, do outro a Ucrânia e países ocidentais. Mas é fundamentalmente diferente dos conflitos da época, especialmente os da Europa. É muito mais fluida, violenta; é mais uma guerra real. O nível de confrontação é muito alto. É preocupante quando se considera que os EUA e a Rússia são potências nucleares. O estranho sobre a guerra fria, pelo menos na Europa, é que ela era estabilizadora. Na maior parte do tempo, o cenário europeu estava congelado. Agora está descongelado, e temos algo parecido com uma guerra real. Nenhum dos lados consegue realmente resolvê-la em seus termos. Será assim por um longo período. É desanimador ver a instabilidade agora no Oriente Médio — outra situação difícil de resolver. Em vez desses grandes blocos que se espalham pelo mundo e competem entre si, temos o oposto: uma dinâmica de caos que surge. Me parece a situação na Ucrânia, e me preocupa essa dinâmica em outros lugares.
Onde?
Armênia e Azerbaijão, por exemplo. O Oriente Médio agora. Em uma perspectiva global, Mianmar, Sahel e outros conflitos que têm ocorrido e são muito importantes, mas não recebem a atenção da mídia como Israel. É uma história maior do que só esses dois países. Podemos resumir isso como a era de conflitos sem solução. Conflitos insolúveis, bastante ativos e perigosos, em oposição à guerra fria, que parecia ser “resolvível” em alguns momentos.
Vivemos um mundo mais propenso à guerra?
Ainda vivemos na era nuclear. Para não exagerar no argumento, os EUA e a China competiram intensamente nos últimos anos, mas não entraram em guerra direta. A Rússia e os Estados Unidos têm estado em desacordo desde 2014 e não foram diretamente à guerra. Biden está muito preocupado com isso: é por isso que não enviará soldados americanos à Ucrânia. Putin, à sua maneira, também tem preocupações sobre não escalonar o conflito com os EUA. Seguimos limitados pelos medos e ansiedades da era nuclear. Mas, desde a década de 1990, encontramos maneiras de globalizar muitas coisas, como comércio, comunicações, tecnologias. Grande parte da globalização foi positiva, mas agora temo que estejamos descobrindo maneiras de globalizar a guerra. Quantos pequenos conflitos podem ocorrer antes de se tornarem algo equivalente a uma guerra mundial? Não estamos lá, não queremos exagerar. Mas, de alguma forma, a globalização parece estar ligada a um tipo de militarismo moderno, e isso é uma grande preocupação. Uma coisa que sabemos sobre a globalização é sua incrível velocidade. Podemos aplaudir isso quando se trata de um iPhone. Quando se trata de ação e tensão militar, é algo a se contemplar.
Como nosso momento se assemelha a outros períodos históricos?
Não é algo novo. Ao escrever meu livro, recorri à obra A Guerra do Peloponeso, de Tucídides [historiador grego]. Era um guia maravilhoso para entender o que vivemos nos últimos dez anos. Há muitos paralelos estruturais entre a Guerra do Peloponeso e a guerra na Ucrânia. E o mais importante é a genialidade de Tucídides para entender a natureza humana, a combinação de medo, inveja, egoísmo e desejo de poder que leva as pessoas à guerra. Podemos aprender essa lição sobre onde estão as verdadeiras fontes da guerra na natureza humana e não nos iludir sobre os perigos do mundo em que vivemos. Com a guerra fria, podemos aprender que a guerra poderia coexistir com a diplomacia e um grau de negociação. Precisamos voltar a isso, para falar sobre a crise na Ucrânia e impedir que se torne nuclear. A história nos ensina que há essa capacidade diplomática. Na era nuclear, não é um luxo, é necessidade absoluta. Espero que em Pequim, Moscou e Washington a imaginação diplomática continue viva e que a noção de compromisso não seja vista como equivalente a fraqueza.