Revista Exame

Na era das novas habilidades, ou você muda ou vira obsoleto

As tecnologias disruptivas exigem de trabalhadores do mundo todo competências inusitadas

A rotina virou videogame: funcionários da Fiat emn Betim fazem treinamento que simula a operação da fábrica virtualmente | Leo Drumond / Nitro /

A rotina virou videogame: funcionários da Fiat emn Betim fazem treinamento que simula a operação da fábrica virtualmente | Leo Drumond / Nitro /

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Da Redação

Publicado em 24 de maio de 2018 às 05h00.

Última atualização em 24 de maio de 2018 às 12h00.

Na fábrica da Fiat em Betim, que completou recentemente 40 anos, os funcionários das linhas de montagem de veículos já não olham da mesma forma para as atividades rotineiras que compõem a jornada de trabalho. Desde o fim do ano passado, os operários se tornaram “gerentes” do jogo PlantX, que simula o ambiente de fábrica virtualmente e capacita os empregados em práticas de gestão da produção. Composto de dez fases, o jogo espelha uma fábrica real do grupo FCA, dono das marcas Fiat e Jeep no Brasil. Em uma das rodadas, o desafio do jogador é melhorar o fluxo de manutenção de uma máquina para reduzir o consumo de energia da fábrica. Conforme o processo de produção do carro evolui no ambiente virtual, os jogadores recebem relatórios de perdas ao final de uma jornada de trabalho simulada. Eles têm de investigar os problemas e tentar solucioná-los. A ideia inicial da Fiat com o PlantX era diminuir o número de horas de treinamento em salas de aula e otimizar o aprendizado. O jogo caiu no gosto dos profissionais, que passaram a fazer os treinamentos nos intervalos de turno e nos momentos de entrada e saída da jornada. Cerca de 8 000 funcionários já baixaram o jogo em celulares e notebooks, o que equivale a 65% dos operários das fábricas de Betim, de Goiana, em Pernambuco (que produz os veículos da marca Jeep), e da unidade da FCA em Córdoba, na Argentina. Os ganhos são notáveis: o uso da tecnologia digital está acelerando a capacitação.

Em cinco meses de adoção do aplicativo, os trabalhadores passaram a entender mais profundamente os erros e os desperdícios do processo produtivo e como é possível corrigi-los. “Quem está na operação sabe como organizá-la para economizar tempo nas diferentes fases de produção ou evitar que um motor funcione de maneira incorreta”, afirma o engenheiro Miguel Lorenzini, coordenador do projeto do PlantX.

Com o sucesso do jogo, criado em parceria com a Joy Street, empresa de Recife especializada em desenhar jogos para aprendizado, outras áreas da FCA também estão desenvolvendo soluções parecidas. Uma delas acabou de ser adotada pelo pessoal que trabalha nas concessionárias da montadora. Um aplicativo que funciona como uma rede social permite desde a comparação de preços de carros da marca com os da concorrência até a conexão em tempo real dos técnicos mais gabaritados das oficinas com os engenheiros da Fiat.

As mudanças trazidas pelas habilidades do século 21 — aquelas demandadas pelas tecnologias disruptivas, transformadoras de setores e negócios — também estão virando de cabeça para baixo a gestão dos profissionais. Estejam eles nas fábricas, nos escritórios ou mesmo nas lojas. Da contratação ao treinamento, passando pela remuneração e pelo desenvolvimento de novas competências, as empresas começam a incorporar outros jeitos de lidar com os funcionários.

“A indústria 4.0 depende basicamente de gente”, diz Rafael Lucchesi, diretor-geral do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). “Já começamos a ter outro tabuleiro no qual se substitui a rotina por tarefas de maior complexidade, que exigem capacidade de análise e interpretação de dados, gerando um enorme ganho de produtividade.” Isso porque a revolução trazida por essas novas tecnologias tem causado efeitos na economia como um todo.

Laboratório do Senai, em São Paulo: parceria com a GE para treinar técnicos em equipamentos de saúde | Germano Lüders

Se num primeiro momento a internet das coisas, a robotização, a inteligência artificial, a realidade aumentada, o big data e outras inovações estavam restritos às indústrias, rapidamente seus ganhos fizeram com que se espalhassem por outras áreas. Consigo, segundo os especialistas, trazem a exigência de novas habilidades, sobretudo as ligadas ao aprendizado ininterrupto, à resolução de problemas complexos, à criatividade, à multidisciplinaridade, à adoção da diversidade e à inteligência emocional.

“Mais que a forma e o trabalho em si, a tecnologia muda o conteúdo do trabalho”, afirma Patricia Feliciano, diretora de talentos e organização da consultoria americana Accenture. “Muitas tarefas já estão sendo automatizadas e, num prazo de dois anos, ficarão obsoletas.”

Não é exagero. A robotização de diferentes setores já é realidade — inclusive na área administrativa. Em vez de um funcionário de recursos humanos passar horas digitando os dados daquele monte de documentos exigidos de cada novo empregado contratado, softwares que agem como robôs inserem automaticamente as informações no sistema em frações de segundo. Essas ferramentas começam a ser testadas também para executar todas as tarefas burocráticas ligadas à contratação, como agendamento de exames, treinamentos e instalação do posto de trabalho.

É uma tendência que se repete no jurídico, em compras, no financeiro e em outros setores das empresas. Segundo a Accenture, são atividades às quais se dedicam 30% da força de trabalho global atualmente. Com o potencial de quase todo tipo de emprego ser afetado pelas novas tecnologias, os impactos serão imensos. Outra consultoria, a também americana McKinsey, fez uma pesquisa que estima que até 2030 o desenvolvimento e a implementação de tecnologias criarão de 20 milhões a 50 milhões de novos empregos em todo o mundo.

Na outra ponta, de 400 milhões a 800 milhões de indivíduos perderão o emprego (números como esses dão força nos congressos de alguns países europeus a propostas para a criação de impostos sobre a utilização em massa de robôs e de uma renda básica universal para os desempregados devido à tecnologia). Mas, entre a elite do mercado que vai abocanhar os novos empregos do futuro e aqueles indivíduos que vão sofrer na pele a extinção de seu posto de trabalho, há um contingente enorme que vai se adaptar: de 75 milhões a 375 milhões de pessoas devem mudar de categoria ocupacional e aprender novas habilidades, dependendo da velocidade na adoção dessas novas tecnologias.

Surgem, portanto, desafios de bom tamanho para as empresas. Um deles é atrair o profissional que já tem o perfil multidisciplinar exigido pelas novas tecnologias. Mas talvez o mais importante seja treinar a força de trabalho acostumada a uma rotina implantada no início do século 20 a agir de acordo com as necessidades do século 21. Trata-se de um desafio imenso para qualquer país. Aqui, é uma tarefa hercúlea.

O Brasil, que ainda não erradicou o analfabetismo — em 2017, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística contabilizava quase 12 milhões de analfabetos, enquanto boa parte do mundo civilizado erradicou os iletrados no século 19 —, precisa rapidamente dar a seus trabalhadores, que nem sequer conseguem competir no presente com os pares estrangeiros, as habilidades que serão exigidas no futuro.

De acordo com um levantamento da escola de negócio Insper, de São Paulo, e da consultoria americana Oliver Wyman, em 1994, um trabalhador no Brasil gerava cerca de 25 000 dólares de riqueza por ano. O valor equivalia a 31% da produtividade americana na época, de 82 000 dólares. De lá para cá, a distância aumentou. Em 2016, ano mais recente com dados disponíveis, o brasileiro produziu o equivalente a apenas 25% do que o americano gerava. Enquanto a riqueza criada por trabalhador aqui foi de 30 000 dólares, a contribuição de cada empregado americano chegou a 121 000. Quando comparada à média da -OCDE, o clube dos paí-ses mais ricos, nossa produtividade relativa caiu de 38% para 34% no mesmo perío-do.

O retrocesso ocorreu mesmo com o fato de a escolaridade no Brasil ter dobrado desde os anos 90, indo da média de quatro para quase oito anos de estudo. Sim, melhoramos, mas os outros continuaram avançando. Enquanto na década de 90 os cidadãos de 15 anos ou mais dos países ricos tinham, em média, nove anos de estudo, agora acumulam 11 anos de capacitação.

O atraso educacional brasileiro se reflete diretamente na formação da força de trabalho. Uma pesquisa inédita da Accenture mostra que 78% dos trabalhadores aqui têm qualificação considerada média ou baixa. São essas pessoas as mais vulneráveis num momento de transição tecnológica. Por essa razão, um em cada quatro empregos corre o altíssimo risco de ser automatizado no país até 2020, de acordo com a Accenture.

Outro tanto, correspondente a quase metade dos postos no mercado de trabalho brasileiro, tem chance considerada média de seguir o mesmo caminho (veja quadro na pág. 93). O prognóstico não ajuda os 14 milhões de pessoas sem ocupação no momento. “O emprego da base da pirâmide será inteiramente dizimado ou terá os salários comprimidos”, diz o economista Glauco Arbix, professor na Universidade de São Paulo e pesquisador do Observatório de Inovação e Competitividade do Instituto de Estudos Avançados.

Maxwel Lidogério: ex-empacotador de supermercado, ele virou desenvolvedor de software com a ajuda de uma startup de finanças | Omar Paixão

O risco do atraso

O problema de uma força de trabalho despreparada não se resume a quem vai ter ou não emprego no futuro — o que não é pouca coisa na esfera individual —, mas se o país será capaz de fazer a transição para uma economia digitalizada. “Sem a qualificação da mão de obra, a implementação da indústria 4.0 não acontecerá na velocidade necessária e corre-se o risco de não se tirar o atraso da produtividade brasileira”, afirma o alemão Bjorn Hagemann, sócio da McKinsey e líder da prática de indústrias avançadas para a América Latina. Estudos da consultoria apontam que, em algumas áreas, a implantação das tecnologias ligadas à indústria 4.0 poderia representar ganhos de produtividade de 200% no Brasil.

Diante de tantos desafios e oportunidades que a inovação disruptiva coloca ao mercado de trabalho, algumas instituições já estão se mexendo. O Senai, que treinou mais de 2 milhões de jovens no país em 2017, começou a oferecer neste ano cursos de big data, inteligência artificial, robótica, computação em nuvem, segurança digital, manufatura aditiva e internet das coisas, entre outros. Três programas diferentes, entre eles o curso Explorando o Big Data, passaram a ser ministrados em oito estados e a entidade prepara outras unidades para ofertá-los no restante do país. Uma das empresas que querem aproveitar a nova abordagem do Senai perante a indústria do futuro é a fabricante americana de equipamentos médicos GE Health-care.

“Na área de imagens, todos os anos há novos produtos, usos, aplicações e métodos de diagnósticos de altíssima tecnologia”, diz Marcos Corona, diretor da GE Healthcare para a América Latina. “Isso representa um grande desafio em relação à educação para uma cadeia complexa, como a de saúde.” Assim, para treinar técnicos, tecnólogos, médicos e engenheiros de soft-ware, além de pessoal de manutenção, a GE fez uma parceria com o Senai na qual simuladores permitem operações virtuais de equipamentos, entre outros aprendizados. A empresa investiu 300 000 reais em um laboratório com esses equipamentos numa escola do Senai em São Paulo. A GE usa ainda uma série de aplicativos para cada especialidade da medicina, tutoriais de procedimentos e uma plataforma online de atendimento remoto acessada por mais de 1 200 alunos em treinamentos que duram 2 000 horas-aula.

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O uso das tecnologias 4.0, porém, vai além do treinamento e se transforma na aquisição de novos jeitos de trabalhar. Nesse formato, as especializações de cada empregado são complementadas por quem tem outro tipo de conhecimento. Oriundo do mercado financeiro, Gustavo Muller deparou com um novo habitat ao criar a Monkey Exchange, um marketplace de recebíveis. No mundo das startups, pessoas de várias tribos criam e trabalham em conjunto, até dar forma ao projeto. Desenvolvedores, especialistas em usabilidade e audiência, designers, vendedores, sócios e o próprio usuário dividem necessidades e soluções. “O desafio é, na hora de ganhar escala, manter a mesma qualidade de quando o projeto está na fase inicial”, diz Muller.

Por essa razão, a Monkey passou a patrocinar meetups, como são chamados os encontros nos quais desenvolvedores dividem suas descobertas com outros profissionais de tecnologia. “Existe uma cultura de compartilhamento de conhecimento e, depois de passar meses trabalhando num projeto, é meio natural difundir esse aprendizado”, afirma Felipe Adorno, vice-presidente de tecnologia da Monkey Exchange, que criou os encontros da startup. Como os dele, há muitos meetups ocorrendo de maneira gratuita em São Paulo diariamente.

Os organizados por Adorno recebem a cada edição mensal cerca de 80 pessoas, interessadas especificamente em desenvolvimento Java, uma linguagem de programação e plataforma computacional. Eles acontecem em lugares variados, como a escola de codificação Digital House, e em corporações, como a filial brasileira da sueca Ericsson, fabricante de equipamentos de telecomunicações. “Temos a visão da startup, mas é muito legal entender as necessidades das empresas grandes”, afirma Muller.

Foi num desses encontros que Maxwel Lidogério, em 2015, então com pouco mais de 18 anos de idade, apareceu, querendo saber mais de Java. Morador de Cidade Tiradentes, bairro no extremo leste de São Paulo, ele havia sido empacotador na Casa Negreiros Supermercados durante um programa de Jovem Aprendiz. Esperto, tornou-se o “menino do sistema” da rede paulistana, falando ao dono que entendia do assunto. Lidogério havia feito um curso de logística numa escola técnica, achando que seguiria a profissão do pai, e lá descobriu que gostava mesmo de tecnologia.

Um amigo falou sobre os meetups, e Max, como é conhecido, apareceu numa das reuniões da Monkey. Pouco tempo depois, foi contratado e logo foi considerado um dos melhores desenvolvedores da empresa. Tão bom que foi levado por um concorrente, mas acabou voltando porque gostava do clima e do desafio. Como é comum em startups, nem sempre tem de enfrentar a 1 hora e meia de trânsito entre Cidade Tiradentes e o bairro de Pinheiros, onde está o coworking em que fica a Monkey. Às vezes, trabalha a semana inteira em casa. “Além de programar, trabalhando numa fintech aprendi a investir e também entendo mais sobre negócios e logística”, diz Max, que hoje tem 21 anos e estuda análise e desenvolvimento de sistemas na Fatec, uma faculdade pública de tecnologia.

Segundo Muller, vice-presidente da startup, esse perfil de profissional com múltiplas visões do negócio — uma exigência maior, em várias áreas — é raro. “Nos Estados Unidos, os profissionais de tecnologia vão além de sua área de atuação. Eles entendem de desenvolvimento do produto, conseguem fazer a valoração do negócio e sabem fazer um pitch para vender sua ideia”, diz. “Aqui é bem mais difícil achar pessoas com esse perfil.”

Fábrica da Tesla, nos Estados Unidos: os robôs não conseguiram evitar defeitos em portas e vazamentos nos carros lá produzidos | Noah Berger/Reuters

Para os especialistas, o trabalhador multidisciplinar demandado pela indústria 4.0 é um artigo escasso em qualquer lugar do mundo. Uma pesquisa da OCDE indica que 50% das empresas na América Latina não conseguem encontrar trabalhadores qualificados para lidar com as novas tecnologias, em comparação com 36% de média em outros países. Dois em cada cinco jovens na região não estudam nem trabalham e 55% dos trabalhadores estão na economia informal, sem nenhum tipo de estímulo à qualificação. “A carência de mão de obra em tecnologia é global, bem como a preocupação em treinar os trabalhadores na multidisciplinaridade”, afirma Arbix, da USP.

Não é a primeira vez que o temor da obsolescência aflige os seres humanos. Mas, toda vez que uma nova tecnologia se impôs no passado, as pessoas se adaptaram — ainda que com uma dose de sofrimento para quem estava envolvido no processo.  Sim, muita gente ainda vai sofrer com as dores do progresso tecnológico. É no mínimo curioso, porém, ver que até quem está na fronteira da inovação tem enfrentado perrengues prosaicos na relação homem versus máquina.

Recentemente, a montadora americana Tesla constatou a necessidade de ter humanos em fábricas de carros completamente robotizadas, depois de adiar sucessivas vezes a entrega do volume prometido ao mercado de unidades do Tesla Model 3, seu carro elétrico básico. Isso porque 90% dos carros saídos de sua linha de montagem apresentaram defeitos, como portas que não fecham direito, vazamentos e peças soltas. Elon Musk,  fundador da montadora que pretendia ser a mais eficiente do mundo, usou sua conta do Twitter em abril para fazer um mea-culpa.

“A excessiva automação na Tesla foi um erro — precisamente, um erro meu. Os humanos estão sendo subestimados”, escreveu Musk na rede social. O equilíbrio entre automação e trabalho humano vem sendo testado há um bom tempo pela japonesa Toyota, criadora do processo produtivo de manufatura enxuta, um passo anterior à indústria 4.0. Ela é uma das montadoras que mais investem em automação e uma das que menos demitem. E na empresa japonesa, veja só, menos de 10% dos carros apresentam defeitos de pós-fabricação. Novamente, estamos diante de um novo mundo aberto a explorações. 

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