Agricultura brasileira: a Embrapa fez parte do sucesso alcançado | Adriano Kirihara/Pulsar Imagens /
Da Redação
Publicado em 24 de maio de 2018 às 05h00.
Última atualização em 24 de maio de 2018 às 05h00.
Ninguém duvida da importância da Embrapa para a agropecuária brasileira. Nas últimas décadas, seus pesquisadores fizeram um trabalho que foi fundamental para o Brasil se converter na potência global do agronegócio que é hoje. Os estudos da estatal ampliaram o cultivo em terras tropicais e tornaram as lavouras competitivas e sustentáveis. O uso de microrganismos para captar o nitrogênio e nutrir as plantas, evitando um gasto exorbitante em adubação, é apenas um dos exemplos das soluções criadas em seus laboratórios. Com avanço atrás de avanço, foi possível até mesmo plantar no Cerrado, uma região de terras tidas como ruins para a atividade agrícola e que hoje lidera a produção de grãos no país. O sucesso do passado, porém, não é garantia de um futuro brilhante. Aos 45 anos de existência, a Embrapa vive um período de entressafra, ainda sem ter todas as respostas para os desafios que batem à porta.
A face mais evidente dessa fase difícil é o aperto das contas, apesar de a empresa receber 3,4 bilhões de reais por ano do governo federal. É um orçamento que cresceu 62% desde 2007 em valores ajustados pela inflação. O problema é que, nos últimos dez anos, o quadro de funcionários foi ampliado em mais de 1 000 pes-soas, para os 9 718 atuais. Os gastos com pessoal hoje tomam 84% do orçamento, bem acima, por exemplo, da fatia de 62% direcionada para pagar funcionários no serviço de pesquisa do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. É claro que uma empresa de pesquisa se faz com profissionais qualificados, cujos salários são altos, mas o fato é que a estrutura da Embrapa está pesando demais. “Os desembolsos com pessoal também são investimento em pesquisa”, diz Maurício Lopes, presidente da Embrapa. “Mas estamos promovendo uma reestruturação para reduzir a fatia do gasto com pessoal de 80% para 70% de nosso orçamento.”
A capacidade de investir da Embrapa é baixa. Nos últimos seis anos, a empresa teve contingenciados 690 milhões de -reais — desde 2012, com a desaceleração da economia, o governo segurou os recursos. Como as despesas com a folha são obrigatórias, a decisão prejudicou os investimentos. A rubrica recebeu 21 milhões de reais em 2017 — em 2010, a verba era de 409 milhões. Obras de melhoria das instalações estão paradas. É o caso da montagem, em Brasília, de uma estrutura nova para a Embrapa Quarentena, responsável por analisar sementes e materiais vindos de fora do país para evitar a propagação de doenças. A decisão foi tomada em 2010. Depois de oito anos e gastos 23 milhões de reais, nada de a obra acabar. Como os recursos não chegam na velocidade planejada, a previsão é que a estrutura estará pronta em 2020.
Com esse aperto, a pesquisa sofre. A Embrapa abriu apenas um edital para contratar novos projetos de pesquisa em 2016 e outro em 2017. Em alguns casos, só 70% dos recursos aprovados foram liberados. Consultada, a empresa afirma que não há atraso nas provisões de 1 041 projetos em andamento. Os pesquisadores, no entanto, mostram contrariedade com a situação. Em 2016, mais de 800 deles assinaram uma carta entregue à diretoria da Embrapa com propostas de soluções que vão desde integração de sistemas para diminuir a burocracia até a redução na interferência política. A diretoria respondeu, mas avançou pouco. O grupo montou a Associação Nacional dos Pesquisadores da Embrapa, com 450 associados. “Existe um distanciamento entre a diretoria e a prática de pesquisa diária que precisa ser superado”, diz a bióloga Juliana Dantas, escolhida para presidir a associação.
Em nada contribui para aplacar a insatisfação o fato de, diante da austeridade, a empresa ter anunciado uma unidade nova em Alagoas para estudar como o Brasil pode ampliar as exportações de produtos agropecuários de alto valor. Duas unidades já fazem esse trabalho. Os funcionários dizem que essa é uma ação política e que vai elevar os custos. A Embrapa alega que a unidade começará com uma equipe pequena (serão 36 funcionários no auge, em 2022, nem todos novos contratados) e contará com apoio financeiro de empresas e do governo de Alagoas. Outro episódio que acirrou os ânimos foi a demissão do pesquisador Zander Navarro, em janeiro, após publicar um artigo no jornal O Estado de S. Paulo em que criticava a atuação da empresa — a Justiça determinou sua recondução ao cargo, mas o julgamento final do caso será no ano que vem.
A Embrapa ainda tem de superar um desafio mais difícil: definir qual será o futuro de sua pesquisa. Essa reflexão não é uma exclusividade sua. Em todo o mundo, a pesquisa pública em agricultura precisa ser repensada. Um estudo do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos mostra que, de 1990 a 2014, o investimento privado na área cresceu de 5 bilhões para 16 bilhões de dólares no mundo, principalmente após os preços das commodities dispararem nos anos 2000. É claro que a maior parte dos desembolsos é feita nos países desenvolvidos, mas 28% dos recursos são destinados a estudos com foco nas condições de plantio em países emergentes. No Brasil, o investimento das multinacionais na pesquisa agropecuária avançou mais de sete vezes no período. O estudo americano é enfático: é necessário ajustar o portfólio público de pesquisa para que seja complementar, em vez de expulsar as empresas dessa atividade.
Por aqui, a Embrapa sempre fez de tudo um pouco, com presença forte em muitos mercados. No entanto, as multinacionais acabaram avançando bastante nas grandes culturas, como a soja e o milho, que são mais rentáveis, desenvolvendo novas variedades e dominando a venda de sementes. “Não vamos direcionar recursos escassos para áreas em que o setor privado está, mas isso não quer dizer que estamos saindo da pesquisa em determinadas culturas”, diz Lopes. A ideia, é claro, gera um novo embate, dessa vez com os produtores. Eles lamentam o recuo da Embrapa na venda de sementes num momento em que o setor privado passa por uma consolidação. “Se a estatal estivesse atuante, desenvolvendo novas variedades, isso traria mais concorrência, reduziria os preços e a agricultura seria mais competitiva”, diz o executivo de uma associação relacionada à soja.
O fato é que o setor privado consegue ser mais eficiente nas pesquisas em que tem interesse. Até hoje, a Embrapa não conseguiu levar ao mercado uma série de produtos. O caso que mais repercute é o do feijão transgênico. Ele começou a ser desenvolvido em 2000 e custou 13,5 milhões de reais. Todas as autorizações e testes ficaram prontos em 2016. No ano passado, os laboratórios da estatal produziram 20 toneladas de sementes básicas, guardadas no Distrito Federal, e fizeram uma reunião em outubro para decidir sobre o lançamento. Os técnicos disseram que não havia impedimentos. A direção da empresa decidiu não lançar: o feijão transgênico só se defende de uma praga chamada mosaico dourado, porém não é eficaz quanto a outra, o carlavírus. De acordo com os técnicos, essa não é uma boa justificativa. Mas a direção diz que pode haver prejuízos legais e comerciais.
Um meio apontado pelos especialistas para a Embrapa levar mais pesquisa ao mercado é fazer parcerias com empresas. Algumas regras inerentes ao setor público atrapalham. “Há questões como os acordos feitos só passarem a valer depois da publicação em Diário Oficial, o que torna demorado o fechamento de contratos”, diz Geraldo Berger, diretor de regulação da multinacional Monsanto. A própria Monsanto já sofreu na pele: demorou tanto para fechar com a Embrapa um acordo de licenciamento comercial de um algodão resistente a pragas que, quando as discussões evoluíram, a própria empresa já tinha lançado uma tecnologia melhor. Tempo e dinheiro foram perdidos. A Embrapa tem 2 800 soluções prontas e 1 900 em desenvolvimento. Mas, quando analisado o licenciamento de tecnologia, fatura apenas 11 milhões de reais em 1 000 contratos com empresas. Uma solução que tem tardado a sair é a criação da subsidiária Embrapatec, um braço que não teria as regras de empresas públicas para firmar contratos com o setor privado. A ideia tramita desde 2012 no Congresso.
Algumas medidas estão sendo tomadas para tentar tirar a Embrapa das dificuldades. Desde 2017, caiu de 46 para 42 o número de unidades da empresa e de 15 para seis o de áreas administrativas na sede, em Brasília, com corte em funções gratificadas. Uma segunda etapa de cortes deve vir, desta vez para as unidades. Mas isso é considerado pouco. Os pesquisadores querem mais autonomia para fechar acordos e convênios. A diretoria não deve atender ao pleito por temer pela segurança jurídica, e promete integrar áreas afins para reduzir custos. Segundo EXAME apurou, a associação dos pesquisadores pediu um assento no grupo que formula a reestruturação e não foi atendida. Eles acusam a direção de ser centralizadora, enquanto o comando da empresa diz que todos foram ouvidos (foi distribuído um formulário aos funcionários). Na última etapa da reestruturação, ainda em negociação com o governo, um plano de -demissão incentivada deve ocorrer em 2019.
A Embrapa foi a principal responsável pelo salto de produtividade nas lavouras brasileiras desde 1989. A cada 10% a mais desembolsado em pesquisa, o campo produziu 2,5% a mais na mesma área. “A produtividade deve continuar a crescer 3% ao ano no país até 2030”, diz José Garcia Gasques, coordenador-geral de Estudos no Ministério da Agricultura. “Mas isso depende do fato de a Embrapa continuar a ter um fluxo constante e crescente de recursos direcionados à pesquisa.” Para o seu próprio bem, e para o do país, a Embrapa precisa sair da entressafra.