Lançamento de foguete da Blue Origin, de Jeff Bezos: a primeira viagem está marcada para 2018 (Blue Origin/AFP)
Cristiane Mano
Publicado em 7 de setembro de 2017 às 05h55.
Última atualização em 8 de setembro de 2017 às 12h40.
São Paulo — O engenheiro e empreendedor sul-africano Elon Musk decidiu investir na criação da montadora Tesla em 2003 com a proposta de produzir apenas carros elétricos. A ideia era lançar um veículo capaz de rodar pelo menos 500 quilômetros sem abastecer num momento em que o principal concorrente não fazia nem metade disso. E um dia produzir veículos acessíveis à classe média sem perder de vista o apelo do design. Todas essas pretensões, descritas num documento intitulado ironicamente “Plano secreto”, divulgado no site da companhia, tinham um ar quase quixotesco. Não faltou quem duvidasse de que um dia ele, de fato, pudesse representar qualquer ameaça à hegemonia centenária de companhias como General Motors e Ford. Eis que os fatos sobrepujaram qualquer ceticismo.
No dia 10 de abril, a Tesla conquistou, de maneira inédita, o posto de montadora mais valiosa dos Estados Unidos, com valor de mercado de 51 bilhões de dólares, meros, porém simbólicos, 2% à frente da avaliação da segunda colocada, a GM. No dia 31 de agosto, a distância entre as duas já havia aumentado para 10%, com a crescente valorização da Tesla. Musk prepara neste ano o lançamento de seu terceiro carro, o Model 3, com a promessa de oferecer até 2019 um pacote adicional capaz de torná-lo o primeiro veículo 100% autônomo do mercado. Entre os outros negócios de Musk estão a SpaceX, criada em 2002, que promete levar dois turistas americanos à Lua no final de 2018. E a startup Neuralink, nascida neste ano com o objetivo de conectar o cérebro humano a computadores para ampliar nossa capacidade cognitiva e de memória.
Musk não é o único empreendedor a ofuscar empresas tradicionais em setores estabelecidos e ao mesmo tempo disposto a desbravar, nas horas vagas, mercados completamente novos. Jeff Bezos, fundador da varejista online Amazon em 1994, tornou-se dono da maior fortuna do mundo em julho deste ano, à frente do lendário empresário Bill Gates, da Microsoft. O valor de mercado da empresa chegou a 480 bilhões de dólares, o dobro do registrado pela sexagenária varejista Walmart, dona de 11 695 lojas físicas espalhadas pelo mundo. Em dezembro, a Amazon começou a testar a entrega de produtos com o uso de drones autônomos, capazes de deixar pacotes de até pouco mais de 2 quilos na porta dos consumidores em menos de meia hora. Bezos revelou recentemente que vende o equivalente a 1 bilhão de dólares por ano de suas ações da Amazon para fomentar outro empreendimento, o Blue Origin, que, a exemplo da SpaceX, também deverá promover a primeira viagem turística ao espaço em 2018, com direito a um passeio de cerca de 40 minutos entre a decolagem e a aterrissagem.
Larry Page e Sergey Brin, criadores da holding Alphabet, controladora do Google e segunda empresa mais valiosa do mundo, atrás da Apple, já investiram mais de 7 bilhões de dólares nos últimos três anos em apostas como o balão que leva a internet para lugares remotos. Mais recentemente, Page afirmou ter outras frentes de investimentos por conta própria. Já dedicou, por exemplo, mais de 100 milhões de dólares de sua fortuna pessoal a startups que pretendem criar automóveis voadores.
Parte dessas histórias ainda soa a ficção científica. Mudanças radicais para o futuro, porém, já são realidade não apenas na agenda dos extravagantes magnatas do Vale do Silício como também em inúmeros estudos e projeções. Segundo previsões feitas pelo Fórum Econômico Mundial, encontro que ocorre todos os anos na cidade de Davos, na Suíça, a maioria dos representantes da elite empresarial e política no mundo projeta que, até 2025, 10% da frota de automóveis nos Estados Unidos não dependerá de motoristas para ir e vir. Outra estimativa: 30% do trabalho de auditoria no mundo será realizado por inteligência artificial. Cerca de 5% dos produtos de consumo, como brinquedos e utensílios domésticos, poderão ser impressos em vez de comprados fisicamente em lojas do mundo concreto. E, até lá, a maioria aposta que algum governo já terá coletado impostos usando a tecnologia blockchain .
Não faltam evidências de que a história deixou de seguir um ritmo linear para avançar num compasso exponencial. O que rege o andamento dessa nova realidade é a Lei de Moore. Gordon Moore, cofundador da fabricante americana de processadores Intel, descobriu em 1965 que a eficiência dos computadores dobrava a cada dois anos pelo mesmo custo. Hoje, um simples celular tem capacidade de processamento superior à do supercomputador mais poderoso existente nos anos 80. Em seu livro Obrigado pelo Atraso, lançado no Brasil no fim de agosto, o jornalista americano Thomas Friedman faz uma comparação para tornar o conceito compreensível mesmo por quem não entende nada de tecnologia. Ele diz que, se a Lei de -Moore fosse aplicada aos carros, a versão mais moderna de um Fusca ano 1971 viajaria a 480 000 quilômetros por hora, custaria 4 centavos e seria tão eficiente que usaria um tanque de gasolina por toda a sua existência.
O alemão Klaus Schwab, organizador do Fórum Econômico Mundial, descreve o momento em que vivemos como fundamentalmente diferente das revoluções anteriores que mudaram a economia mundial, em dois aspectos: pela velocidade e pela abrangência das mudanças. Em seu livro A Quarta Revolução Industrial, Schwab conta o caminho percorrido pela humanidade até aqui. A primeira mudança radical ocorreu há 10 000 anos, com a domesticação de animais. A revolução agrária deu escala à produção de alimentos e foi seguida pela primeira etapa da Revolução Industrial, ainda no século 18, com o advento da estrada de ferro e da máquina a vapor. A segunda fase da Revolução Industrial teve início no século 19 e durou até o início do século 20, com a eletricidade e a linha de montagem, que tornou a produção em massa possível. A terceira Revolução Industrial começou em 1960, com a computação, e culminou na massificação da internet nos anos 90.
A quarta Revolução Industrial teve início neste século — e é a revolução digital. Para Schwab, nesta fase, inúmeras tecnologias, que vão do sequenciamento genético à nanotecnologia, das energias renováveis à inteligência artificial, vão mudar completamente a vida das pessoas num ritmo e com uma abrangência inéditos. “A questão para as empresas não é se elas serão afetadas pela disrupção. E sim quando a disrupção chegar, qual será a forma que terá?”, afirma.
Como mostra a linha do tempo descrita por Schwab, a disrupção em si não é a novidade. A ideia de destruição criativa foi apresentada pelo economista austríaco Joseph Schumpeter em 1942. No livro Capitalismo, Socialismo e Democracia, ele defende que o conceito é uma característica endêmica do capitalismo: a incessante destruição do que havia antes para criar o novo. A novidade, esmiuçada e celebrizada nos anos 90 pelo americano Clayton Christensen, da Universidade Harvard, é a velocidade com que novos concorrentes conseguem pegar de surpresa as empresas estabelecidas. No best-seller O Dilema da Inovação, de 1997, ele já afirmava que a dificuldade está em antecipar ou mesmo reagir a novas ameaças que vêm de direções inesperadas.
Para as empresas, o efeito ao longo das décadas tem sido implacável. De acordo com um estudo da consultoria americana McKinsey, a probabilidade de uma companhia perder a liderança de mercado num período tão curto quanto cinco anos é o dobro da observada 20 anos atrás. Há diversos exemplos emblemáticos de quem ficou pelo caminho. Um deles é o da extinta locadora de vídeos americana Blockbuster. Seus executivos tiveram a chance, em 2000, de comprar a então novata Netflix, startup criada três anos antes, por meros 50 milhões de dólares. Hoje, a empresa é uma multinacional em rápida expansão e vale 26 bilhões de dólares. É curioso notar que a proposta inicial da companhia era facilmente imitável. A Netflix surgiu com a oferta ilimitada de DVDs por uma assinatura mensal — algo que os concorrentes cobravam por unidade alugada por tempo determinado. No início, os vídeos eram enviados pelo correio. No entanto, segundo seu cofundador e presidente, Reed Hastings, a entrega digital sempre esteve nos planos. Era questão de tempo. Em 2002, os executivos da Blockbuster, rede que chegou a ter 9 000 lojas no mundo, descreveram a rival que continuava a crescer como “não financeiramente viável” e que representava apenas um “serviço de nicho”. Como mostra esta outra reportagem, a Netflix simboliza uma nova era da indústria do entretenimento.
O canadense Roger Martin, diretor da escola de gestão Rotman, da Universidade de Toronto, afirma que as empresas líderes tendem a pensar em novos produtos e serviços compatíveis com sua estrutura econômica. Mas não necessariamente os mais convenientes para os consumidores. Em sua obra mais recente, Competing Against Luck (“Competindo com a sorte”, numa tradução livre, sem versão para o português), publicada em outubro de 2016, Clayton Christensen defende justamente que as empresas, na hora de inovar, devem considerar o princípio que ele batizou de jobs to be done (“trabalhos a fazer”). Nada mais é do que pensar nas necessidades dos clientes para criar produtos e serviços. Ignorar essa regra e se manter apegada à própria estrutura foi um dos erros fatais que levaram à queda da americana Kodak nos anos 2000. Curiosamente, um grupo de engenheiros da empresa desenvolveu uma das primeiras câmeras digitais do mundo em 1975. A câmera pesava quase 5 quilos, a resolução era mínima e só fazia fotos em preto e branco. Os relatórios internos estimavam que o produto poderia se tornar viável num horizonte de 20 anos. No entanto, os anos se passaram e os executivos preferiram manter as estruturas existentes a romper com o passado. Como se sabe, a concorrência fez o negócio ruir. “Muitas vezes é preciso fazer hambúrgueres com suas vacas sagradas”, disse a EXAME o futurólogo e professor na Universidade Stanford Paul Saffo, após uma palestra na Singularity University, um dos mais procurados centros de estudos do impacto de novas tecnologias no mundo dos negócios, com sede no Vale do Silício.
É sob a perspectiva da capacidade de atender às aspirações e aos desejos dos clientes de hoje — e do futuro — que o potencial de sucesso das empresas tem sido medido. Isso explicaria casos de ascensão meteórica de companhias como a Tesla, que, mesmo produzindo apenas uma fração dos carros produzidos pela GM, tem conseguido superar seu valor de mercado por um perío-do. Os dois carros elétricos mais vendidos nos Estados Unidos são justamente os dois modelos da Tesla disponíveis, o sedã Model S e o esportivo Model X. As vendas da empresa crescem 70% ao ano, enquanto o mercado de automóveis americano estacionou. A Tesla, no entanto, vendeu 80 000 carros no ano passado. A GM vendeu 10 milhões. Ou seja, a companhia baseada em Detroit excede as vendas anuais da Tesla a cada três dias. Numa reportagem da conceituada revista americana The Atlantic, o retrato de Musk à frente da Tesla é comparado ao de Steve Jobs com o iPhone em 2007. Quando a primeira versão do aparelho da Apple foi lançado, naquele ano, a Nokia dominava o mercado com a venda de 400 milhões de unidades por ano. No primeiro ano, o iPhone vendeu uma fração insignificante: apenas 4 milhões. Nos anos seguintes, como se sabe, as posições se inverteram e até hoje a Nokia luta para se reerguer. No caso dos carros autônomos, ainda não está claro quem vai vencer a batalha. A americana Ford, a japonesa Nissan e a alemã BMW venderam 5 000 veículos elétricos em 2016. É cedo para dizer que a tecnologia da Tesla vai prevalecer. Mas a mensagem está dada: o mercado costuma apostar contra o poder de reação das grandes empresas habituadas à própria hegemonia.
A transformação de gigantes, de fato, nunca é indolor. O caso do conglomerado industrial General Electric mostra exatamente isso. Numa entrevista exclusiva a EXAME, Jeffrey Immelt, presidente do conselho de administração da companhia, conta como a GE passou a investir numa mudança radical de sua estrutura e de sua estratégia (pág. 56). A meta é deixar de ser uma empresa que só produz equipamentos industriais e se tornar capaz de fornecer dados aos clientes por meio de sensores conectados às suas máquinas. Longe de ser uma mudança trivial, é algo que está mexendo profundamente nas bases da companhia.
Pesquisas mostram que os próprios executivos fazem uma autocrítica. A percepção acerca da própria capacidade de usar as tecnologias emergentes piorou nos últimos dois anos. A proporção de executivos que afirmam que suas empresas estão prontas para usar novas tecnologias caiu de 66%, em 2014, para 52%, em 2016. Para a maioria deles, mudanças tecnológicas tornaram-se prioridade na agenda do presidente das empresas na última década. Em 2007, 33% das empresas afirmaram que esse era um tema prioritário para o principal executivo. A parcela cresceu para 68% em 2017, segundo um levantamento global realizado pela consultoria PwC. Há razões de sobra para isso. Além de fundamental para manter a própria sobrevivência, há um enorme potencial de ganho de produtividade em novas tecnologias, como a internet das coisas e a inteligência artificial. As duas despontam como as mais adotadas, no topo da prioridade de 63% e 54% das empresas, respectivamente. O objetivo das reportagens a seguir é jogar luz sobre esse novo mundo que se impõe com velocidade acelerada.