Xi Jinping e Donald Trump: reunião neste mês para aparar arestas | Damir Sagolj/REUTERS
Da Redação
Publicado em 6 de junho de 2019 às 05h30.
Última atualização em 25 de junho de 2019 às 15h32.
Quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou que estava impedindo a chinesa Huawei de fazer negócios com empresas americanas, em meados do mês passado, o nome do historiador grego Tucídides veio à tona como um sinal de alerta para quem acompanha as relações sino-americanas. Autor dos relatos da Guerra do Peloponeso, Tucídides desenvolveu uma teoria que se provaria verdadeira em dezenas de conflitos armados ao longo dos séculos seguintes. Em seu livro, escrito há quase 2.500 anos, ele explicava por que Atenas e Esparta estavam destinadas a se enfrentar em um conflito fratricida, com perdas enormes para ambos os lados.
Para o historiador, toda vez que um poder em ascensão cresce a ponto de ameaçar o poder dominante, um conflito torna-se inevitável. Sua tese ganhou o nome de Armadilha de Tucídides e tem sido usada de forma assustadoramente frequente para explicar a decisão de Trump de adotar medidas tão duras contra a maior empresa de tecnologia da China.
Oficialmente, os Estados Unidos decidiram impedir a Huawei de fazer negócio com empresas americanas por alegadas questões de segurança. Os americanos afirmam que o gigante chinês tem criado compartimentos secretos em seus equipamentos de comunicação que permitiriam a Pequim não só espionar os dados que trafegam por esses aparelhos mas também usá-los como um cavalo de Troia para organizar ataques à infraestrutura civil e militar dos Estados Unidos e de outros países ocidentais. Conhecidos como backdoors, algo como “porta dos fundos secreta”, esses dispositivos de espionagem jamais foram comprovados pelos americanos ou pelos australianos, os primeiros a desconfiar que a China estaria criando um amplo sistema de espionagem por meio do fornecimento de equipamentos de comunicação.
A Huawei fechou 2018 como a terceira maior fabricante de celulares do mundo. No primeiro trimestre deste ano, ela ultrapassou a americana Apple e assumiu a segunda posição, atrás apenas da coreana Samsung. Além disso, no ano passado, a Huawei entrou no seleto grupo de empresas de tecnologia com faturamento superior a 100 bilhões de dólares. “Os chineses se tornaram competidores fortes não só pela evolução tecnológica, mas principalmente porque criaram um modelo de negócios muito eficiente”, diz Leonardo Trevisan, professor de relações internacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing, de São Paulo.
O bloqueio de Trump contra a Huawei veio em meio ao anúncio de mais uma escalada na guerra tarifária com a China. Os Estados Unidos decidiram sobretaxar em 25% produtos chineses em valor equivalente a 200 bilhões de dólares e ameaçam ampliar as barreiras sobre outros 300 bilhões. Apesar do avanço da Huawei no mercado de celulares, a venda de smartphones é a menor das preocupações de Washington. “A ideia de ver uma empresa como a Huawei, com inegáveis laços com o governo chinês, controlando grande parte de um mercado de infraestrutura de telecomunicações de crucial importância representa uma ameaça real à segurança dos Estados Unidos”, diz Jacob Shapiro, analista sênior da consultoria de riscos Geopolitical Futures. “Quanto mais fundo analisarmos a questão, mais veremos que os Estados Unidos sabem que não têm uma alternativa viável ao 5G e a outras tecnologias de telecomunicações que estão sendo claramente dominadas pelos chineses, em especial pela Huawei.”
O que verdadeiramente está em jogo, portanto, é o domínio da tecnologia 5G, que promete revolucionar as comunicações globais. Pelo menos dez vezes mais rápida do que o 4G (em laboratórios, essa velocidade chegou a ser 250 vezes maior), a rede 5G vai permitir que o controle remoto de automóveis, os robôs cirúrgicos e uma infinidade de aplicações saiam do campo de testes e invadam a vida cotidiana. Na área militar, a rede super-rápida promete transformar o controle de equipamentos a distância. “Os chineses, que estão muito à frente de qualquer competidor, decidiram apostar nesse segmento como forma estratégica, e a proximidade da Huawei com o governo chinês, de fato, é preocupante para os Estados Unidos”, diz Arthur Barrionuevo Filho, ex-secretário de Desenvolvimento Tecnológico do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Nenhuma empresa do mundo domina de forma tão ampla a tecnologia 5G quanto a Huawei. Hoje a companhia já é dona de 35% das redes de nova geração na Europa e promete oferecer um leque variado e competitivo de produtos quando as redes 5G se popularizarem mundo afora. “Nossas tecnologias 5G estão pelo menos dois anos à frente das de nossos concorrentes e nos manteremos líderes globais por muitos anos”, disse, de forma desafiadora, o quase sempre recluso criador e presidente da Huawei, o ex-oficial do Exército Chinês Ren Zhengfei. “Nós temos sido atacados pelos Estados Unidos não porque somos uma ameaça à segurança deles, mas porque nossas estações de 5G não precisam de torres nem usar guindastes ou obras caras. Elas têm o tamanho de uma maleta”, disse Zhengfei em uma rara entrevista a jornais chineses.
A decisão americana de proibir suas empresas de fazer negócio com a Huawei tem como objetivo exatamente frear a expansão da companhia chinesa no mercado internacional de 5G. Embora o mercado global de celulares seja de extrema importância para a Huawei, ela realiza quase 50% de suas vendas no mercado interno chinês. Além disso, a proibição de o Google, por exemplo, continuar oferecendo atualizações de seu sistema operacional Android aos celulares da Huawei parece ser um problema relativamente fácil de ser contornado. Na China, aplicativos como o Google Maps e o YouTube já são proibidos. Há quem garanta, ainda, que a Huawei está próxima de lançar o próprio sistema operacional.
Por outro lado, o calcanhar de Aquiles da Huawei parece ser o desenvolvimento de semicondutores. Hoje, a China consome 60% da oferta global desses componentes, mas produz apenas 13%. Os semicondutores são fundamentais para a produção dos chips que garantem o sucesso ou o fracasso de qualquer equipamento eletrônico. A Huawei tem uma fábrica de semicondutores, mas ainda é extremamente dependente dos produtos feitos nos Estados Unidos e na Inglaterra. A companhia vinha formando estoques preventivos desde que os Estados Unidos decidiram banir a também chinesa ZTE no ano passado. Mas estoques não duram para sempre. “As empresas chinesas, em geral, têm se desenvolvido de forma rápida”, diz Louis Kuijs, chefe do departamento de economia asiática da consultoria Oxford Economics. “O problema é que, em áreas de tecnologia essencial, como os semicondutores avançados, a China continua muito atrás dos Estados Unidos e de outros países ocidentais.”
Por ora, o governo chinês não demonstra apetite para uma retaliação à altura da medida de banimento da Huawei anunciada por Trump. Parece mais decidido a conter a fúria americana e encontrar maneiras de não despertar novos inimigos. O próprio presidente da Huawei afirmou esperar que o governo chinês não aplique sanções contra sua competidora principal, a Apple. No dia 26 de junho, Trump e o presidente Xi Jinping se encontrarão em Osaka, no Japão, na reunião do G20. Os dois vão discutir a questão da Huawei, e Trump já declarou que as coisas podem mudar de rumo caso haja um acordo mais amplo. Independentemente do que seja decidido no Japão, para quem acompanha as relações entre a China e os Estados Unidos, o ataque contra a Huawei foi um sinal importante de que a teoria do grego Tucídides estaria, mais uma vez, começando a ganhar forma.
Em um relatório enviado a clientes após a decisão de Trump de bloquear a Huawei, o investidor americano Ray Dalio, presidente do Bridgewater Associates, maior fundo de hedge do mundo, com uma carteira de mais de 150 bilhões de dólares, alertou para o que pode estar por vir. “Está claro agora que a guerra entre os Estados Unidos e a China não se limita a uma disputa comercial. Uma porta foi aberta para outros tipos de guerra”, disse Dalio. É aguardar as cenas do próximo capítulo.