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Em Weihai, cidade de quase 3 milhões de habitantes no extremo leste da China e à beira do Mar Amarelo, está instalada a SNBC, empresa que resume de muitas maneiras as atuais obsessões do país. A companhia fabricava caixas eletrônicos num país que, nos últimos anos, trocou o papel-moeda pelas carteiras virtuais dos smartphones.
Isso obrigou a SNBC, que fatura 380 milhões de dólares por ano, a especializar-se na produção de armários automatizados para delivery em condomínios residenciais e edifícios corporativos (em 2019, foram entregues 60 bilhões de encomendas na China, país com o maior e-commerce do mundo). Os compartimentos são acionados por código QR tanto por quem entrega o pacote quanto por quem o recebe. Mas o que impressiona no imenso complexo da SNBC, formado por seis edifícios modernos, é o número modestíssimo de funcionários.
No final de outubro do ano passado, a reportagem da EXAME visitou a fábrica da SNBC, cuja principal linha de produção tem 126 metros de extensão e apenas seis pessoas por turno na operação de máquinas que dobram, perfuram e cortam a laser chapas de metal. Há cerca de 100 robôs e máquinas automatizadas para produzir os armários da empresa. Para a maioria dos 80 humanos que trabalham nesse setor, restam tarefas como o manuseio de matéria-prima e a logística do chão de fábrica. Num país de 1,4 bilhão de pessoas que costuma ficar lotado onde quer que se vá, estar num lugar com tantos espaços vazios causa estranheza.
A fábrica inteligente da SNBC é o retrato de uma China obcecada em dominar as tecnologias do futuro. O país é o que mais compra robôs no mundo (154.000 foram instalados em 2018) e está construindo um império de empresas focadas em inteligência artificial. Tudo isso estava contemplado no plano Made in China 2025, do presidente Xi Jinping, que previa investir 300 bilhões de dólares na modernização de diversos setores da indústria, entre eles o de eletrônicos e o de carros da próxima geração.
Lançado em 2015, o plano nunca fluiu como os líderes chineses gostariam — sobretudo, pela guerra comercial com os Estados Unidos, iniciada em 2018, quando o presidente americano, Donald Trump, anunciou tarifas sobre uma série de produtos importados da China, e os chineses retaliaram na mesma moeda. A disputa caminhava para uma trégua no fim de 2019, mas veio o surto do novo coronavírus, e a briga entre as duas maiores potências do mundo ganhou nova escala. Trump chamou o novo coronavírus de “vírus chinês” e acusa Pequim de omitir dados sobre a real dimensão do número de vítimas e até de ter fabricado o vírus em laboratório.
O fato é que, quase quatro meses depois do início da pandemia, a China, embora ainda grogue, tenta se reerguer, enquanto os Estados Unidos continuam na lona. Até 17 de abril, os americanos representavam 31% dos casos confirmados e 23% das mortes por covid-19 no mundo. Os chineses respondiam, respectivamente, por 4% e 3% — fruto da mão pesada com que as autoridades lidaram com a pandemia, incluindo a imposição de um inédito cordão sanitário em Wuhan — cidade de 11 milhões de habitantes onde foram descobertos os primeiros casos do novo coronavírus — e o uso de tecnologia invasiva para rastrear infectados (tecnologia que, agora, inspira líderes mundo afora).
A pandemia obrigou o mundo a apertar o botão de pausa em boa parte das atividades econômicas. Religar esse botão não é simples, como mostra a China. Nos meses de janeiro, fevereiro e boa parte de março, dois terços da indústria pararam, as exportações caíram e o consumo despencou.
A conta veio, e bem alta: o produto interno bruto da China caiu 6,8% de janeiro a março em relação ao mesmo período do ano passado, a primeira contração no país desde 1976, ano da morte do líder Mao Tsé-tung e do fim da Revolução Cultural. A situação melhorou nas últimas semanas com a retomada das atividades. A montadora americana Tesla, que produz carros elétricos numa fábrica recém-inaugurada em Xangai, viu suas vendas crescer 450% em março, enquanto a venda de imóveis chegou a 8,6 milhões de metros quadrados, ante 2,3 milhões em fevereiro.
“O que se nota é que há uma vontade grande dos chineses de gastar dinheiro assim que possível”, diz Daniel Lau, chefe de análises da China na consultoria Willis Towers Watson. Para ele, o aumento das vendas de carros e de imóveis é emblemático num país que ainda teme um repique do coronavírus. “Muitos chineses estão sentindo a necessidade de ter um carro próprio ou uma casa melhor para o caso de voltar ao isolamento se houver uma segunda onda de coronavírus.”
Apesar das incertezas, os sinais são de que a economia foi religada. “Mais de 80% dos trabalhadores voltaram aos postos e quase todos os negócios reabriram”, diz o economista Tommy Wu, da consultoria Oxford Economics. A cidade de Wuxi, na província de Jiangsu, é um polo metal-mecânico com milhares de pequenas e médias indústrias.
A Wuxi Precise, fabricante de peças para indústrias como a de equipamentos médicos e a de energia solar, é uma delas. No dia em que a EXAME visitou a fábrica da Wuxi Precise, a presidente e sócia da empresa, Mo Hua Chen, mostrou animada a mensagem que acabara de receber no smartphone: o governo de Wuxi convocava as empresas de manufatura para um novo concurso. Os melhores projetos de inovação e de aumento de eficiência poderiam ganhar um incentivo em dinheiro no valor de 5% das máquinas desejadas ou de 12% no caso de sistemas de automação.
“Há muita competição hoje por causa do aumento do nível de tecnologia e pela elevação dos custos trabalhistas na China”, disse Mo. A crise do coronavírus, porém, colocou em suspenso os planos de novos investimentos da Wuxi Precise. A empresa de quase 100 funcionários ficou um mês parada e as encomendas no início de abril registravam redução de 10%. “Houve um impacto pequeno, mas acredito que tudo ficará bem logo”, disse Mo, ao ser contatada novamente neste mês (dessa vez à distância, claro).
Após o tombo no primeiro trimestre, as previsões são que a economia chinesa se recupererá lentamente ao longo do ano. Segundo o Banco Mundial, no pior cenário, o PIB chinês poderá ter uma contração de 0,1% em 2020. No melhor cenário, poderá crescer 2,3%. Já o Fundo Monetário Internacional projeta um crescimento de 1,2% neste ano, acelerando para 9,2% em 2021 — desde que a pandemia fique sob controle. Embora as previsões para a China não sejam ruins, o problema é o resto do mundo.
[O FMI prevê para este ano uma contração na economia global de 3%, a pior desde a grande depressão da década de 1930. Para um país em que as exportações representam 18% do PIB, voltar a crescer no cenário atual será um desafio e tanto. Some-se a isso o fato de que, com o coronavírus, mais países devem buscar reduzir a dependência em relação aos chineses. “Há uma percepção de que depender de um só fornecedor não é uma boa ideia, mesmo que ele esteja em sua região”, diz Richard Baldwin, professor no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais em Genebra, na Suíça.
Esse cenário adverso para os chineses já vinha se desenhando antes mesmo da pandemia, por causa da guerra comercial com os Estados Unidos. Em 2013, do total de importações realizadas pelos americanos da Ásia, a China representava 67%. Na metade de 2019, essa fatia caiu para 56%. Do montante de 31 bilhões de dólares que os Estados Unidos deixaram de comprar da China, 46% foram absorvidos pelo Vietnã. Além disso, apesar da insistência de Trump em erguer um muro na fronteira com o México, os mexicanos tornaram-se em 2019 os principais parceiros comerciais dos americanos.
Os Estados Unidos não são o único país que deseja reduzir a dependência em relação à China. O governo do Japão, terceira maior economia do mundo, divulgou no início de abril um pacote de 2,2 bilhões de dólares para auxiliar empresas nipônicas na China que queiram transferir as atividades para outros países.
O analista Shinichi Seki, economista sênior do Japan Research Institute, em Tóquio, acredita que as empresas japonesas interessadas em vender ao mercado chinês, como as montadoras, tendem a permanecer na China. Mas as voltadas para a exportação cogitam sair do país. “Os custos de produção na China deixaram de ser baixos em relação aos do Japão porque incluem não só a mão de obra mas também o custo político, que está aumentando”, afirma Seki.
Com o quadro externo desfavorável, o caminho para a China pode ser apostar no consumo interno, que respondeu por 58% do PIB em 2019. Foi a grandeza desse mercado que levou a empresa de máquinas alemã Trumpf a se instalar no país há pouco mais de uma década. Metade do que ela produz hoje na fábrica de Taicang, cidade a 50 quilômetros de Xangai, segue para o próprio mercado chinês. Desde que a Trumpf chegou ao país, a demanda local tem se sofisticado e a participação da unidade chinesa no faturamento global de 4 bilhões de euros está se expandindo — dos atuais 25% deve alcançar 40% do total nos próximos anos. Foi a empresa alemã que instalou há menos de dois anos a linha da SNBC, companhia que aparece no início desta reportagem.
A Trumpf trata o projeto como sua grande vitrine no país. Mesmo com a paralisação e a expectativa da recessão global com a pandemia, a SNBC acabou de investir numa nova linha industrial, agora para produzir máquinas automáticas de vendas de lanches e bebidas, um investimento estimado em 75 milhões de dólares. “Por muito tempo, a China cresceu apenas por meio de investimento. A expectativa é que no futuro cresça devido ao aumento de produtividade”, diz Gang Yang, presidente da Trumpf China.
De fato, os esforços para a recuperação econômica do país podem esbarrar na atual falta de capacidade de investimento. Até agora, as medidas de incentivo anunciadas pelo governo chinês, correspondentes a 3% do PIB, parecem modestas em relação às de outros países — a ajuda de emergência da Alemanha é de cerca de 20% do PIB. “Isso reflete diferentes lições aprendidas da crise de 2008.
Os Estados Unidos e a União Europeia não querem repetir a falta de reação que tiveram, enquanto a China quer evitar o exagero que cometeu naquele momento”, afirma, em relatório, Arthur Kroeber, da consultoria de investimentos Gavekal, especializada em economia chinesa. Embora o banco central chinês tenha adotado medidas como o corte de taxas de depósito, sua postura na crise tem sido mais reativa. “Como de costume, a política fiscal deve focar os investimentos em infraestrutura. As tendências apontam para um aumento de 10%, mas pode chegar a 20%”, diz o relatório.
A questão é onde serão aplicados esses investimentos. “Em 2008, o governo se concentrou em projetos grandes, como ferrovias”, diz Fabiana D’Atri, economista do Bradesco especializada no mercado chinês. “Agora segmentos como o de mobilidade urbana devem ser o foco.” A situação do setor financeiro é outro obstáculo. Na crise anterior, segundo D’Atri, a saúde dos bancos estava mais robusta, o que permitiu um aumento expressivo do endividamento. “Hoje, muito em razão do que foi feito lá atrás, o risco é maior.”
Embora a crise force o governo chinês a rever uma série de planos, a expectativa de Sérgio Quadros, ex-executivo do Banco do Brasil responsável por abrir o escritório da instituição financeira em Xangai em 2014, é que o gigante asiático mantenha os planos de alcançar a liderança global, inclusive em relação ao projeto Rota da Seda — maior programa global de infraestrutura, lançado em 2013 e que prevê investimentos de mais de 1 trilhão de dólares entre Ásia, Europa, Oriente Médio e África. “É um processo lento e gradual, mas bem planejado pelos chineses”, diz Quadros.
“Os países são dependentes uns dos outros, então o processo de globalização vai continuar.” Ocupando o vácuo deixado pelos Estados Unidos, que estão focados nos problemas internos gerados pela pandemia, a China oferece ajuda internacional enviando máscaras, ventiladores e médicos. “Mas agora virá o grande teste, já que a China está sob pressão para oferecer assistência financeira aos países mais pobres atingidos pela doença”, diz Kelsey Broderick, analista da consultoria Eura—sia. “No entanto, se o governo chinês ceder nesse ponto, seus cidadãos vão questionar por que a China está ajudando outros países num momento em que sua própria economia está sofrendo.”
Com todas as dificuldades no front interno e externo, a China terá de rever suas metas e abandonar a obsessão pelo crescimento a qualquer custo. “Não acredito que o objetivo da China seja retomar as altas taxas de crescimento, mas manter o emprego, a produção e o consumo, e concentrar-se em reformas estruturais para reduzir a dívida”, diz o economista Parag Khanna, da consultoria FutureMap, de Singapura. “A partir de agora, a China deve buscar mais estabilidade do que crescimento. Essa é uma má notícia para as economias dependentes de exportação que estão acostumadas a vender para os chineses.” A China terá de aprender a lidar com a nova realidade pós-quarentena. E o mundo também.