Na madrugada: o pianista Chick Corea e seu grupo em ação no Blue Note de Nova York | Jack Vartoogian/Getty Images /
Da Redação
Publicado em 8 de novembro de 2018 às 05h32.
Última atualização em 8 de novembro de 2018 às 05h33.
Comecei a ouvir música muito tarde em minha vida. Nasci em família de classe média baixa, criado no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Vinil, então, era luxo prescindível, fitas cassetes pirateadas do vinil alheio demandavam acesso ao três em um que ficava no meio da sala de estar do diminuto apartamento de 60 metros quadrados onde cresci com meus dois irmãos, avô, pai e mãe, e me lembro que podia ouvir música apenas à noite, quando todos fossem dormir. Como consequência, cresci ouvindo MPB de resistência, que era o que meu pai ouvia quando viajávamos esporadicamente para a praia, “bate e volta” de Passat garantido a todos um domingo por mês.
Enquanto meus amigos ouviam rock ou metal, eu me contentava com o blues. Não porque tivesse o gosto mais refinado, mas porque um pouco mais adiante CDs de blues começaram a ser encartados nos jornais dominicais em fascículos. À parte uma ou outra música dos Beatles ou do Michael Jackson que chegava pela TV, meus ouvidos eram dominados por Geraldo Vandré, Gal e Lee Hooker. Deixei a música para trás e me dediquei aos estudos e ao trabalho. Nunca me passou pela cabeça que eu construiria palcos. Preferia a companhia dos livros.
Em uma das minhas primeiras viagens para a gringa, recém-egresso da faculdade de engenharia e tendo por amigos tardios jornalistas e fotógrafos, um amigo me leva até a Tower Records e me coloca diante da sessão de jazz da loja de discos. Eu tinha lhe pedido que me mostrasse um pouco de jazz, um estilo que então me parecia tão erudito, apreciado por humanistas refinados. Como engenheiro, queria um pouco da sofisticação intelectual de meus amigos, que então pareciam ser muito mais inteligentes do que eu era. No meu colo caíram quatro CDs: Time Out, do Dave Brubeck, Kind of Blue, de Miles Davis, Soultrane, de John Coltrane, e Chameleon, do Herbie Hancock. “Se for ouvir jazz, começe por aí”, disse meu amigo.
Obedeci e comprei os quatro objetos, apesar da dor que eles me causaram no bolso. No primeiro momento veio a estranheza, algo parecia desconexo, a música parecia não fazer nenhum sentido ou não falar coisa com coisa. Eu queria gostar, porque, afinal de contas, ouvir jazz era para as almas refinadas, mas não conseguia. Me sentia estúpido. Confessei ao meu amigo que não tinha entendido nada, que tudo soava como cacofonia. Ele riu e me pediu para dar aos álbuns outra chance, que escutasse mais uma vez. E mais uma vez escutei. E então outra. E nunca mais parei.
Alguns anos depois, eu tinha montado uma biblioteca de arquivos de jazz gigantesca, pirateando MP3s pelo Napster e entrando em clubes de trocas de arquivos de álbuns em alta fidelidade, ouvindo tudo no meu iPod o dia todo. Formei meu gosto, meu cérebro quase arrebentou ouvindo Mingus, criei meus desafetos (desculpa, Baker, mas sua melancolia edulcorada nunca me pegou). Primeira viagem pra Nova York, eu nervoso, porque queria conhecer todos os clubes de jazz que a cidade tinha para me oferecer. Era o momento da graduação. Porque ouvir um disco de jazz é o mesmo que ver um animal taxidermizado num museu de zoologia. Instrutivo, mas nada se compara a ver o animal selvagem em seu habitat, entre os seus. Eu queria safári musical, e Nova York oferecia os mais lindos habitats de jazzistas.
Deixei o Blue Note para a madrugada. O clube no Greenwich Village não é o mais antigo nem o mais tradicional. O Carnegie Hall, por exemplo, é de 1891, e por lá passaram não só os jazzistas da melhor estirpe, de Billie Holiday a Benny Goodman, mas lendas como Tchaikovsky e Beatles. Mas trata-se de um prédio enorme, com três salões. O Blue Note foi o primeiro clube intimista, uma casa de jazzistas e para jazzistas por causa das famosas late sessions.
O Blue Note era uma catedral, mas queria as horas mais próximas do alvorecer, porque jazzistas são animais notívagos. Me lembro de ter conseguido uma mesa quase diante do palco, a ponto de os perdigotos do trompetista e as gotas de suor que saltavam de sua testa respingarem em minha bota. Naquele palco os animais mais lindos haviam tocado: Dizzy Gillespie, Sarah Vaughan, Ray Charles, para citar alguns. Fiquei parafusado naquela cadeira, em transe estático por 3 horas. Nunca mais fui o mesmo. Algo dentro de mim tinha quebrado e se reconfigurado.
Quase 15 anos depois dessa fatídica noite, o empresário Luiz Calainho liga para mim e dispara à queima-roupa: vou levar o Blue Note para São Paulo e quero você como sócio. Ele já havia inaugurado a filial carioca do clube, em agosto do ano passado. Perdi um beat da minha respiração, mas imediatamente retomei o fôlego e lhe perguntei: “Calainho, que honra. Mas onde?” “No shopping X.” “Não, Calainho, Blue Note em shopping não dá. Posso dar uma sugestão? O Conjunto Nacional.”
Sobrevoando a Avenida Paulista existe uma espécie de mansão no Conjunto Nacional, que já abrigou a Casa Fasano e serviu de palco para ninguém menos do que Nat King Cole. Estava abandonada havia anos. Eu namorava o lugar havia muito tempo, tentando imaginar o que caberia ali. Obviamente que o Blue Note.
Fiquei um ano em negociação, a mais difícil de minha vida. Foram dezenas de fechadas de porta na cara, telefonemas, reuniões, documentos, garantias, enfim, mas eu sabia que tinha de ser lá, porque o palco do Blue Note não era apenas na Paulista, a mais amada das avenidas paulistanas: a própria avenida estaria à altura dos artistas mais talentosos de nosso tempo. A Avenida Paulista seria nossa residente, estaria à altura das almas mais geniais de nosso tempo que se apresentariam no nosso habitat. Porque uma selva de pedra pede animais de aço.