A tentativa de silenciar opiniões, marca registrada da cultura do cancelamento atual, nos priva da oportunidade de evoluir nossas compreensões (Getty Images/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 8 de outubro de 2020 às 05h06.
Última atualização em 11 de fevereiro de 2021 às 16h14.
Em setembro, o mundo perdeu uma de suas mais potentes e suaves vozes: a juíza da Suprema Corte americana Ruth Bader Ginsburg. Potente e suave são adjetivos raramente justapostos para descrever uma personalidade, mas necessários para captar a singularidade dessa mulher alçada à Suprema Corte dos Estados Unidos aos 60 anos de idade, desafiando, ao longo de sua extraordinária vida, o sexismo, o etarismo, o antissemitismo e todas as expectativas contrárias a uma mulher, filha de imigrantes judeus estabelecidos no Brooklin, com senso de humor, delicadeza, firmeza e uma incontornável habilidade de influenciar.
Ruth Bader Ginsburg nos ensinou pelo exemplo a discordar com leveza, civilidade e inarredável coragem. Discordar da visão dominante, das pressões onipresentes, da tendência de escolher o poder em detrimento da influência. Não que não tenha ousado galgar as posições de poder. De fato, foi apenas a segunda mulher a conquistar um lugar entre os juízes da Suprema Corte americana e acreditava que “as mulheres pertencem a todos os espaços em que as decisões são tomadas”. Mas sua influência transcendeu e muito seu espaço de poder, tendo se tornado um ícone pop aos 87 anos de idade. Seu fascínio alcançou tanto aqueles que se viam representados em suas decisões quanto os que dela discordavam. Notabilizou-se como uma voz distinta, singular, corajosa e, apesar de tudo isso, respeitada e admirada por pessoas de todos os lugares no espectro ideológico. Ela entendia como ninguém o efeito lento mas inexorável da influência. “Os votos dissidentes falam para uma era futura. Não é simplesmente dizer: ‘Meus colegas estão errados e eu faria isso desta forma’. Mas os maiores votos dissidentes tornam-se opiniões do Tribunal e, gradualmente, com o tempo, seus pontos de vista tornam-se a opinião dominante”, disse.
Longe de concordar com todas as suas posições, a minha admiração por ela é forjada na essencialidade desse legado agora, quando mais precisamos.
Esse é o meu aspecto preferido do legado da notória RBG, como era conhecida. Ela exemplificou, ao longo de sua carreira, a importância da liberdade de expressão e da criação de espaço para o livre embate de ideias. A busca da justiça e da verdade é, afinal, uma empreitada mais nobre e permanente do que a imposição da força. A tentativa de silenciamento das opiniões, marca registrada da cultura do cancelamento que empobrece o momento no qual vivemos, nos priva da oportunidade de evoluir nossas compreensões e de explorar a oportunidade do confronto entre a verdade e o erro. Se isso é verdade na arena pública, é verdade também nas empresas. Todos nós já ouvimos o business case da diversidade e inclusão: a noção de que, ao incluirmos grupos diversos, ampliamos o leque de perspectivas, levando as empresas, em última análise, a melhores decisões e à inovação. No entanto, o efeito benfazejo da diversidade e da inclusão só se concretiza quando de fato catalisa aquele marcador de diversidade menos óbvio, não atrelado aos determinantes demográficos mais visíveis: a diversidade de perspectivas e opiniões. Em outras palavras, proponho que deveríamos, na tentativa de revitalizar a cultura nas organizações, monitorar o sucesso ou o insucesso de nossos esforços pela medida em que tal cultura acolhe nosso anseio pela liberdade num ambiente de pertencimento. Afinal, como nos lembra RBG: “Uma Constituição, por mais importante que seja, não significará nada, a menos que as pessoas anseiem por liberdade”. O que vale para a Constituição também vale para os pactos que permeiam as relações em uma empresa.
O debate sobre a substituição da juíza se estabelece como uma arena de discórdia em um país marcado pela polarização. A indicação para sua posição tem o potencial de alterar o equilíbrio entre conservadores e liberais na Suprema Corte na iminência de uma eleição presidencial. Talvez seja esta uma oportunidade singular para que a democracia americana resgate seu potencial mediador dos conflitos sociais. Fico imaginando quanto o país que se identifica como a maior e mais bem-sucedida experiência democrática será capaz de resgatar e aplicar a este momento a noção fundamental de que a democracia é sobre mediação de conflitos, sobre respeito à diversidade, sobre espaço para a diferença.
Para tanto, o melhor tributo ao legado da juíza é resgatar como ela gostaria de ser lembrada: “[Como] alguém que usou todo o talento que tinha para fazer seu trabalho da melhor maneira possível. E para ajudar a reparar as divisões em sua sociedade e tornar as coisas um pouco melhores por meio do uso de qualquer habilidade que ela tivesse”.
Uma história reflete todo o poder e suavidade das relações humanas que podem nos resgatar dos extremismos: a longa amizade entre a juíza e o juiz conservador Antonin Scalia, seu colega de Suprema Corte. Certa vez, Scalia comprou duas dúzias de rosas para presentear a amiga em seu aniversário. Ao ver as rosas, o juiz Jeffrey Sutton perguntou: “Que vantagem essas rosas lhe trouxeram? Cite apenas um caso significativo de votação 5 a 4 em que você conseguiu o voto da juíza Ginsburg”. Scalia respondeu: “Algumas coisas são mais valiosas do que votos”.