Revista Exame

A ajuda que não ajuda o Haiti

Três anos depois do terremoto que destruiu o Haiti, o mundo descobriu que os bilhões arrecadados pela indústria das ONGs fazem mais bem a elas mesmas do que aos pobres


	Ajuda humanitária chega ao Haiti: ainda hoje 360.000 vivem em tendas no país
 (Win McNamee/Getty Images)

Ajuda humanitária chega ao Haiti: ainda hoje 360.000 vivem em tendas no país (Win McNamee/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 2 de fevereiro de 2013 às 08h44.

São Paulo - Nos últimos 40 anos, os países ricos direcionaram nada menos que 5 trilhões de dólares em ajuda humanitária no mundo. Num primeiro momento, a caravana do bem foi festejada como a solução para a pobreza e os flagelos na África, na Ásia e na América Latina.

O tempo passou e as promessas de um mundo livre de miseráveis não se concretizaram — ainda hoje 1,3 bilhão de pessoas vivem com menos de 1,25 dólar por dia. E a ajuda humanitária internacional, que movimentou cerca de 136 bilhões de dólares em 2011, passou a ser vista cada vez com mais descrédito.

O exemplo mais recente de que boas intenções e muito dinheiro não são suficientes vem do Haiti. Três anos depois do terremoto que destruiu o país e com 9 bilhões de dólares gastos em ajuda humanitária, o Haiti continua a viver sob o caos. 

Ainda hoje, 360.000 pessoas vivem em tendas em campos de desabrigados na capital, Porto Príncipe. Mais de 80% da população não tem acesso a água potável. Um livro publicado em janeiro, The Big Truck That Went By: How the World Came to Save Haiti and Left a Disaster Behind ("O caminhão que passou: como o mundo veio salvar o Haiti e deixou para trás um desastre", numa tradução livre), do jornalista americano Jonathan Katz, ilustra bem a triste realidade do país.

Katz foi correspondente da agência de notícias Associated Press durante quatro anos no Haiti e acompanhou os reforços de reconstrução. Seu relato é desalentador. Katz descreve a rotina burocratizada do trabalho humanitário, a falta de coordenação nas operações e o desperdício de dinheiro.

O jornalista cita o exemplo do americano Mike Godfrey, experiente funcionário da USAid, a agência americana para o desenvolvimento internacional. Nas semanas seguintes ao terremoto, Godfrey participou de longuíssimas reuniões para apresentar procedimentos burocráticos a voluntários que ficariam apenas algumas semanas no país. 


Maior desastre natural enfrentado pela Organização das Nações Unidas, o terremoto no Haiti também é o evento que mais arrecadou ajuda humanitária no mundo. Já foram angariados 13 bilhões de dólares, sendo que 9 bilhões foram desembolsados — os 4 bilhões restantes serão aplicados até 2020. O dinheiro arrecadado é quase o dobro do custo estimado da tragédia, de 7,8 bilhões de dólares.

"O grande problema do Haiti é que o país virou uma república de organizações não governamentais", diz a pesquisadora Vijaya Ramachandran, do Centro para o Desenvolvimento Global, de Washington. "As ONGs captam o dinheiro, mas não têm capacidade de coordenar a construção de rodovias ou de infraestrutura de energia."

Estima-se que mais de 1.000 ONGs operem no país hoje, com enorme sobreposição de atividades entre elas. Outro problema recorrente envolvendo as ONGs é a falta de transparência na aplicação dos recursos. De cada 100 dólares que elas gerem no país, apenas 2 dólares (sim, 2 dólares) são rastreados e sua aplicação é conhecida. Um convite ao desperdício e ao desvio de verbas.

O mundo das ONGs é extremamente heterogêneo. Há organizações sérias que sabem o que estão fazendo. Também há gente bem-intencionada que faz tudo errado. E há ainda a turma que se aproveita do drama alheio para faturar. No Haiti, o rapper celebridade Wyclef Jean, nascido no país e criado nos Estados Unidos, foi um dos que acabaram no terceiro grupo.


Sua fundação, a Yele Haiti, foi acusada de alocar no país apenas um terço dos fundos arrecadados. O cantor é uma figura tão popular no país que até foi cogitado que ele poderia concorrer à Presidência (a candidatura não foi para a frente porque Jean não era residente no Haiti). No fim do ano passado, a Inglaterra e a Irlanda suspenderam a ajuda humanitária a Uganda porque 15 milhões de dólares que deveriam patrocinar programas de desenvolvimento acabaram na conta-corrente do primeiro-ministro do país.

Indústria da filantropia 

A ajuda humanitária não é uma invenção do século 20 (a caridade religiosa nasceu praticamente junto com o cristianismo). A diferença é que nas últimas décadas ela se transformou num setor da economia global. Estima-se que existam 70.000 ONGs com atuação internacional.

O atual modelo de ajuda humanitária se popularizou no final dos anos 60 com a guerra civil de repressão a Biafra, Estado com pretensões separatistas ao sul da Nigéria. Biafra foi o primeiro conflito na África a ser televisionado. Os milhões de crianças espremidas entre a guerra e a fome comoveram o mundo e mobilizaram voluntários ao redor do planeta. 

Aí, o dinheiro começou a fluir. Até hoje, a África é o principal destino dos recursos da ajuda humanitária. Em 2011, as doações ao continente somaram 49 bilhões — 37% do total angariado.  Na Índia, onde a indústria da filantropia também prospera, há 3,3 milhões de entidades não governamentais nacionais — uma para cada 400 habitantes.

Esses dados têm levado a um número crescente de céticos quanto à eficiência da aplicação dos recursos. "A ajuda humanitária  não vai tirar nenhum país da pobreza", diz o ativista de direitos humanos David Rieff, que escreveu em 2002 o livro A Bed for the Night: Humanitarianism in Crisis ("Cama por uma noite: o humanitarismo em crise", numa tradução livre). "Apenas um governo estruturado com uma economia funcionando desenvolve um país." Sem isso, não há bilhões que resolvam as agruras dos países pobres. 

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