A mãe da inflação
Por anos, a política argentina foi marcada por embates entre esquerda e direita. Neste ano, uma terceira opção mostrou força, embaralhando o cenário eleitoral. O candidato ultraliberal Javier Milei foi o mais votado nas primárias, em agosto, e aparece com chances reais de ser eleito.
Assim, a direita tradicional do país, que se reúne na coligação Juntos pela Mudança (JxC, na sigla em espanhol), passou a disputar com Milei o eleitorado insatisfeito com o governo atual, de esquerda, comandado por Alberto Fernández, que não disputa a reeleição.
Nas primárias, o partido de Milei, A Liberdade Avança, somou 30,21% dos votos. O JxC, da candidata Patricia Bullrich, teve 28,25%, e o grupo governista Unión por la Patria, que tem à frente Sergio Massa, atual ministro da economia, veio em terceiro, com 27,15%. O primeiro turno está marcado para 22 de outubro, e o segundo turno, caso ocorra, para 19 de novembro. A posse será realizada em 10 de dezembro.
Com isso, a tática do JxC é tentar mostrar que possui um plano sólido para tirar a Argentina da crise atual, que inclui inflação a 113% ao ano, forte queda do valor do peso e escassez de dólares. O partido planeja, caso vença a eleição, propor ao Congresso um pacote de medidas para tentar melhorar a situação econômica do país, tendo como objetivo principal zerar o déficit fiscal e, assim, conter o aumento de dívida pública que o governo acumula a cada ano.
"O déficit fiscal é a mãe, a razão profunda, da inflação. Então, estamos trabalhando para mandar um orçamento com déficit zero desde o primeiro momento, além de um plano para poder acabar com o cepo, para que a economia volte a fluir", diz à EXAME Daiana Molero, economista e candidata a deputada pelo JxC na cidade de Buenos Aires.
Cepo é o apelido de um conjunto de regras do governo que limitam o acesso e a saída de dólares na Argentina. Empresas e cidadãos só podem comprar ou movimentar dólares dentro de determinados limites. Para complicar, cada atividade, como viajar a turismo ou vender açoes, tem um limite e uma cotação diferente, o que acaba dificultando o investimento e o comércio exterior. Isso também abre espaço para a corrupção, pois funcionários públicos têm poder para liberar envios de remessas ou cotações mais favoráveis.
"Hoje faltam dólares mas ao mesmo tempo não entram dólares porque ninguém quer vir para a Argentina se depois não pode dispor de seus dólares e dividendos", aponta Molero
Outras medidas previstas pelo JxC incluem mecanismos pra proteger investimentos estrangeiros no país e uma reforma trabalhista, para facilitar contratações, além de medidas para simplificar burocracias e baixar custos para empresas.
No entanto, ela reconhece que os resultados podem demorar a surgir. "A inflação não vai ser de um dígito no primeiro ano. É um processo gradual, as medidas tomam tempo, mas haverá um plano para dar um rumo à sociedade. A Argentina está paralisada porque não se pode prever o que vai acontecer amanhã. Então vamos colocar ordem para que as pessoas possam começar a produzir, a vender ao exterior e as coisas irem se resolvendo."
Não à dolarização
Molero critica a proposta de Milei de dolarizar a economia argentina e abrir mão do peso. "O candidato que está defendendo isso não está sendo muito explícito porque não pode dar detalhes de como seria exatamente a medida, mas sabemos que dolarizar a economia não é recomendável porque dessa maneira ficamos com as mãos amarradas demais e depois você pode não ter como responder a choques externos. Tirar essa ferramenta de política monetária é perder liberdade e autonomia."
Sem moeda própria, um país não tem como agir de modo rápido em caso de crises, com medidas como aumentar ou diminuir a quantidade de dinheiro em circulação, emprestar dinheiro aos bancos ou desvalorizar a moeda local para favorecer exportações. Nos anos 1990, a Argentina adotou uma paridade de câmbio, de 1 peso por 1 dólar. A ideia deu bons resultados nos primeiros anos, mas o país começou a década seguinte em uma crise profunda, marcada pela renúncia do presidente Fernando de la Rúa, em 2001.
Outro ponto importante é que, para tornar o dólar a moeda oficial da Argentina, seria preciso ter uma grande quantidade de notas americanas à mão, algo escasso no pais. Assessores de Milei tem estimado que seriam necessários algo em torno de US$ 40 bilhões para fazer a mudança, e que parte desse dinheiro poderia vir dos próprios argentinos, que costumam ter dólares guardados como poupança. Outras opções seriam vender estatais e emitir títulos de dívida, mas há grandes dúvidas de que haveria grande interesse por esses títulos no mercado estrangeiro. Atualmente, a Argentina deve US$ 44 bilhões ao FMI, e tem tido grande dificuldade para honrar os pagamentos e cumprir as exigências do fundo.
Esperança de força no Congresso
A atual oposição argentina governou o país faz pouco tempo: de 2015 a 2019, o presidente Mauricio Macri teve a oportunidade de melhorar a economia, mas conseguiu poucos avanços. Molero diz que Macri teve dificuldades por ter sido vítima de várias "bombas" deixadas pelo governo anterior, de Néstor e depois Cristina Kirchner, que governaram de 2003 a 2015, e que o ex-presidente buscou reduzir subsídios, como na tarifas de energia, e que isso acabou alimentando a inflação. A retirada dos auxílios, embora tenha ajudado a reduzir o gasto público, fez os preços ao consumidor subirem.
Ela avalia ainda que a falta de apoio no Congresso dificultou o mandato do ex-presidente, e agora espera que o JxC possa ter situação melhor. "Macri teve um Congresso muito mais fraco do que o JxC pode ter hoje, se tudo sair bem. Poderemos ter maiorias e isso muda substancialmente sua força para tomar medidas. E temos muito mais províncias governadas pelo JxC, o que o deixa com muito mais musculatura política", diz a candidata.
No entanto, se os resultados das primárias se repetirem, nenhum partido terá maioria tranquila na Câmara. O JxC teria 106 deputados, 10 a menos que hoje. O Frente de Todos, de esquerda, passaria de 118 para 92. e o Libertade Avança, de Milei. iria de 2 para 38. Assim, a esperança do JxC é que a esquerda fique com poder reduzido para barrar medidas e que o partido de Milei tenda a apoiar medidas de cortes de gastos, algo alinhado às suas bandeiras. No entanto, há dúvidas sobre o quanto os aliados do candidato antissistema poderão querer ajudar o novo governo.
O JxC avalia que as primárias tiveram baixa participação de mulheres, e que Milei costuma ser mais votado entre os homens. Assim, outra tática é buscar atrair o eleitorado feminino, assim como reforçar que a diferença nas primárias foi pequena e pode ser recuperada. "Como fazemos para captar o voto de Milei que, em alguns casos, foi um voto de revolta, que é dizer 'olha, quero mostrar que você, hoje, não está me representando e quero dar um 'susto'? Como fazemos para dizer que aqui estão as soluções concretas e reais?. Estamos nesta estratégia, prontos para entrar em campo", diz Molero.
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Créditos
Rafael Balago
Repórter de macroeconomia
Foi correspondente em Washington, repórter e editor-assistente na Folha de S.Paulo e fez mestrado em jornalismo pela Universidade da Coruña (Espanha).