Falta d'água: um problema endêmico
A fila em frente ao escritório de credenciamento da ONU, na Rua 45, a poucos metros da sede das Nações Unidas em Nova York, se estendia por cerca de 10 metros quando a reportagem da EXAME chegou para buscar suas credenciais. Era uma terça-feira, no final de março. Uma hora e 45 minutos depois, tempo que demorou para completar o processo (e isso contando que a foto já estava no sistema), a multidão de diplomatas, ativistas e jornalistas aguardando para entrar nas dependências alcançava a Segunda Avenida, serpenteando por quase um quarteirão novaiorquino, e dos grandes.
No dia seguinte, teria início a Water Conference, o primeiro fórum de águas organizado pela entidade desde 1977. Durante três dias, o mundo se reuniu para debater um dos assuntos mais urgentes e negligenciados entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o de número 6: água e saneamento.
O cenário não é nada animador. De 11 indicadores estabelecidos para acompanhar as metas do ODS 6, cinco sequer contam com dados efetivos. E alguns precisam quadruplicar o desempenho se o mundo quiser resolver o problema. Segundo a ONU, 26% da população mundial, o equivalente a 2 bilhões de pessoas, não contam com acesso seguro a água potável. Quando se trata de saneamento, a situação é ainda pior: mais de 3,6 bilhões de pessoas, quase metade dos humanos no planeta, carecem de tratamento adequado de seus excrementos, o que agrava outro problema urgente em se tratando de água, a poluição, um dos catalisadores da endemia de falta d’água.
Para Gilbert F. Houngbo, presidente do conselho da UM Water e diretor-geral da Organização Mundial do Trabalho, o tempo não está do lado da humanidade nesse caso. “Devemos ser ambiciosos e acelerar as ações”, disse Houngbo.
Eficiência aumentou, mas é insuficiente
A boa notícia nessa enxurrada de negatividade, é que a eficiência no uso da água aumentou 9% no período pesquisado (entre 2015 e 2018). O melhor resultado veio da indústria, que elevou a eficiência em 15%, seguido do setor de agricultura, com 8%. É um sinal claro da importância do setor privado para o avanço do ODS 6.
Mesmo com o avanço, a ONU espera que a população sujeita à escassez hídrica irá dobrar até 2050, o que deve gerar prejuízos bilionários. Desde a última conferência das águas, estimasse que a economia global perdeu 700 bilhões de dólares em virtude de crises hídricas.
Por que não estamos pensando na escassez hídrica quando falamos de ESG?
Por Rubens Filho*
A sete anos do prazo final da Agenda 2030 instituída pela ONU com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), uma das agendas liga o sinal amarelo para vermelho: o ODS 06 – Água Potável e Saneamento. No 30º aniversário do Dia Mundial da Água (22 de março), a ONU promove a UN Water Conference (Conferência Mundial da Água) em Nova York (Estados Unidos) para propor agendas de ação com os Estados-membros, entidades da ONU, organizações da sociedade civil e setor empresarial. A Conferência ocorre de 22 a 24 de março dentro da sede da Organização das Nações Unidas, com mesas de discussões sobre os diferentes desafios e oportunidades mediadas por diversos países, incluindo o Brasil.
Aliás, quando falamos de Brasil, nossa perspectiva sobre o ODS 06 é questionável. Um dos temas do ODS 06 é a agenda do Saneamento, a qual progrediu de certa forma nos últimos anos com a aprovação do Marco Legal (Lei Federal nº 14.026/2020), ampliando a possibilidade de o setor privado aportar recursos financeiros e operar os serviços em locais historicamente negligenciados pelo poder público. Ainda há dúvidas sobre essa agenda e como ela se dará nos próximos anos, principalmente pela revisão de alguns pontos da lei prometida pelo novo governo federal. Dentro da Ambição 2030 proposto pelo Pacto Global da ONU no Brasil com a criação de Movimentos para acelerar os ODS, as 100 milhões de pessoas que queremos impactar no Movimento +Água são justamente aquelas que estão dentro da matemática de déficit de Saneamento ainda muito latente nos quatro cantos do país.
Contudo, temos um outro ponto de atenção fundamental em uma das agendas que promovemos dentro do Pacto Global: a gestão dos recursos hídricos liderada pelo setor empresarial. No último levantamento feito pelo Observatório 2030, uma iniciativa do Pacto Global da ONU no Brasil, a partir de dados de 82 empresas listadas na B3, participantes da nossa Rede como um todo, e que reportam os resultados nos padrões do Global Reporting Initiative (GRI), nos deixou preocupado: 59 empresas, das 82, relataram não mensurar os riscos de escassez hídrica do ponto de vista da quantidade disponível de água. E mais, quando se analisa os riscos do ponto de vista da qualidade de água, o número sobe para 67 empresas que não consideram. A cadeia de valor, em relação ao uso racional da água, não é considerada no engajamento de 83% das empresas.
A segurança hídrica é um dos pilares quando se discute adaptação climática. Ao ver que o Brasil tem como base da matriz energética as hidrelétricas, ou seja, precisamos dos recursos hídricos para gerar energia. E nossa agricultura é uma das que mais exportam para o mundo e é altamente dependente da água para irrigação. O Manual de Usos Consuntivos da Água no Brasil – Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), de 2019, mostrou que 52% da demanda do uso da água do Brasil vem da irrigação da agricultura. Logo em seguida, com 24% da demanda do uso, temos o abastecimento urbano. Quando falamos de 2030, ainda há outro dado preocupante: o uso da água deve crescer em 24% até lá. Não esqueçamos que em 2021 passamos pela pior crise hídrica em 91 anos que afetou diretamente os reservatórios que abastecem as hidroelétricas.
Ao discutir ESG nas empresas, o “E” de environment ("meio ambiente" em português) talvez estejamos englobando muito pouco os riscos da escassez hídrica como resposta de adaptação para as mudanças climáticas. Há muita discussão do impacto líquido positivo em bacias sob estresse hídrico (net positivo da água, como alguns dizem) promovido por algumas empresas e instituições não governamentais, visando a redução do uso da água para consumo interno das plantas industriais e, como ponto central, a reposição das bacias hidrográficas com foco em promover uma recarga além do que foi tirado (gerando mais água, por isso “impacto positivo”). Esse é um primeiro, e importante, passo.
Pensar na resiliência das áreas de produção natural de água requer ir além dos muros. No Brasil, o uso da água subterrânea por vários setores, bem como os reservatórios superficiais, demanda ações das empresas para que suas operações não sejam prejudicadas no futuro, mas para que principalmente a quantidade e qualidade disponível para abastecimento humano não passe nem perto de ser um problema, como foi em parte do Nordeste durante 2012 a 2019, e no Sudeste entre 2013 e 2015.
*Rubens Filho é gerente de Água e Oceano do Pacto Global da ONU no Brasil
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“Há diversas maneiras de fazer capitalismo”. A frase, jogada despretensiosamente como se fosse óbvia, inicia uma linha de pensamento que conecta as estruturas de financiamento de projetos público-privados a estupros em Serra Leoa. Dita por Mariana Mazzucato, uma das economistas mais influentes do mundo, também resume o trabalho de ativistas e pensadores que buscam usar as finanças para resolver os grandes problemas da humanidade, como a endêmica falta d’água, realidade vivida por 2 bilhões de pessoas globalmente, segundo a ONU.
Mazzucato, professora da College University em Londres, está sentada ao lado de dois homens de terno. À sua esquerda, de gravata, está Tharman Shanmugaratnam, membro do parlamento de Cingapura, que já serviu como vice-primeiro-ministro e atualmente é conselheiro econômico do governo; à esquerda, sem gravata, Johan Rockström, professor da Universidade de Potsdam (que já deu as caras por aqui). Os três participam de uma conferência de imprensa na sede da ONU, em Nova York, durante a Conferência das Águas.
A dúvida se referia a números divulgados pela ONU na manhã desta quarta-feira, 22. Os dados mostram que o acesso precário à água, condição que afeta 26% da população global, tem dois grandes motivadores: o aumento da demanda em função do desenvolvimento econômico, estimado em 1% ao ano; e a poluição, resultado direto da pobreza. Ao mesmo tempo, entre 2015 e 2018, foi verificado um incremento de 9% em eficiência no uso da água, puxado, principalmente, pela indústria, que melhorou o indicador em 15%.
Diante dos fatos, não seria o caso de focar o debate na redução da pobreza e da desigualdade, e destravar os mecanismos de transferência de recursos dos países desenvolvidos aos países em desenvolvimento? Ao que parece, a humanidade sabe como gerenciar o recurso, a dificuldade está em democratizar o bem-estar e a qualidade de vida.
“Todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável têm ligação com a água, não apenas os óbvios”, afirmou Mazzucato. “Eles estão conectados. Inclusive o ODS 5, que trata da equidade de gênero”. Como exemplo, ela cita uma realidade enfrentada por mulheres em Serra Leoa, na África, que precisam deixar a segurança de suas casas para buscar água, às vezes por longas distâncias, e no caminho são estupradas.O financiamento da guerra como modelo para questões sociais
O termo “economia real” ganhou força recentemente, muito em função do momento turbulento na geopolítica, com a guerra na Europa e a pandemia. Ele é usado para resumir o motivo pelo qual políticas macroeconômicas, frequentemente, dão pouco resultado “na ponta”, ou seja, não mudam em nada a vida do ser humano comum, que é quem lida com as consequências práticas dos apertos de juros e das escaladas inflacionárias. Dar nome ao boi, no entanto, não faz dele um economista.
Para Mazzucato, a questão é como aplicar os recursos financeiros na solução do problema, o que pode parecer óbvio, mas, assim como há diversas maneiras de fazer capitalismo, há diversas maneiras de financiar a infraestrutura social de um país. Um cenário ruim é o que ela chama de preguiça e inércia no espaço público-privado, resultado de subsídios problemáticos e garantias mal definidas.
Uma solução para isso é tratar o desafio de resolver problemas sociais como se faz com a guerra. Em períodos de conflito, diz Mazzucato, recursos financeiros são alocados com a velocidade e o volume adequados para superar o inimigo – e geralmente, no caso dos perdedores, ultrapassam a capacidade de gastos da nação. Por que não fazer isso, em menor escala, para situações como crises de violência nas cidades e a falta de saneamento?
“O Brasil tem um exemplo de ‘outcome oriented budgeting’, em Porto Alegre”, diz ela, em referência ao modelo de orçamento focado em resultados, que foi utilizado pela capital gaúcha. Nesse modelo, os gastos e investimentos são organizados em torno de um problema específico, e não em setores generalistas, e a liberação dos recursos depende dos resultados alcançados. “A solução, como Shanmugaratnam vinha dizendo, é transformar o financiamento por concessão em financiamento por condição, em que o investimento na transformação dos setores é uma condição para as parcerias público-privadas.”
Como os bancos públicos podem beneficiar o Brasil
Antes de Mazzucato, Shanmugaratnam já havia ressaltado que o Brasil, com todos os seus problemas, também oferece soluções e serve de modelo. Entre elas, está a atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES). Bancos públicos, se bem utilizados, ajudam a evitar a preguiça e a inércia que acomete, frequentemente, o espaço público-privado.
Faltava apenas uma parte da pergunta a ser respondida: a melhora da eficiência no uso da água pode evitar que o planeta entre em crise pela falta desse bem tão valioso? “Nossos dados são claros ao mostrar que a eficiência, sozinha, não resolve”, disse Johan Rockström. Ao que parece, a humanidade, e o capitalismo, não vão se salvar sem aprender a compartilhar os bônus do crescimento econômico.
Privatizar ou não, eis a questão
Imagine não poder receber pessoas em casa. André Salcedo, diretor-presidente da Sabesp, enxerga nessas pequenas dificuldades o drama de quem não possui saneamento. “A pessoa não consegue reunir os parentes e amigos porque passa um esgoto a céu aberto na rua. É uma falta de dignidade e cidadania”, explica Salcedo.
O executivo viajou aos Estados Unidos para participar da Conferência das Águas da ONU, fórum de discussões que não era realizado desde 1977 -- esses 46 anos, por sinal, coincidem com o tempo de vida de Salcedo. “Muita coisa aconteceu nesse período, com a expansão das cidades, a favelização etc.”, afirma. “E esquecemos da água, até que ela ficou escassa.”
Hoje, diz o presidente da Sabesp, a água é um recurso escasso e é fundamental que todos os elos da cadeia estejam conscientes disso. Por elos da cadeia, entenda-se basicamente todas as empresas, governo, sociedade e qualquer stakeholder que dependa da água para viver, ou seja, tudo no planeta. A partir dessa constatação, Salcedo determina a grande meta da companhia, responsável por levar água a mais de 28 milhões de pessoas em 375 municípios.
“O importante é o resultado para a sociedade, o que independe da estrutura de controle”, afirma.
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, se elegeu a partir de uma plataforma econômica liberal, prometendo eficiência e um governo enxuto. Sua ascensão política aconteceu a partir do seu trabalho no Ministério da Infraestrutura do governo de Jair Bolsonaro, elogiado por diversas instâncias do setor privado pela celeridade com que conduziu obras e concessões.
Com esse background, era de se esperar uma certa pressão por privatizações, especialmente de uma companhia de economia mista em um setor aquecido, como a Sabesp. “Acredito que é uma operação que pode transcorrer no ano que vem”, afirmou Freitas ao ser questionado sobre o prazo para a privatização da empresa de Saneamento, há duas semanas. No final de fevereiro, o governador autorizou a contratação de estudos sobre a viabilidade financeira da desestatização.
Salcedo não se preocupa com essa questão. Ao assumir a Sabesp, garante o executivo, recebeu do governador autonomia para gerir a companhia, juntamente com a missão de elevar o nível de eficiência das operações. “Esse é meu papel. A decisão sobre privatizar cabe a quem tem as ações”, diz ele. O que não o impede de opinar sobre o papel do Estado. “O desafio do saneamento é tão grande, que demanda uma combinação entre o público e o privado. Em alguns lugares, onde não há viabilidade econômica para o setor privado, o Estado terá de atuar”, explica.
O exemplo que vem do Brasil
No segundo dia da Conferência, um grupo de 50 das maiores companhias globais anunciou, em Nova York, uma compromisso para acelerar as ações referentes ao cumprimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de número 6, que trata do acesso à água. Essas companhias operam em 130 países e empregam mais de 2 milhões de pessoas. A iniciativa foi batizada de Open Call for Water Action, e foi coordenada pelo Pacto Global da ONU, braço das Nações Unidas que congrega o setor empresarial.
“Precisamos de ações coletivas para assegurar que haverá água para todos num futuro próximo”, disse Sanda Ojiambo, CEO do Pacto Global. “As empresas são as maiores consumidoras de água, e é do interesse delas garantir que esse recurso seja gerenciado de maneira responsável, justa e sustentável.” O que pouca gente sabe, é que o Brasil inspirou em grande medida a criação desse compromisso.
Brasil serviu de benchmark
O Pacto Global da ONU no Brasil, parceiro institucional da EXAME, é o único a manter uma divisão específica para o ODS 6. Ela é chefiada por Rubens Filho, gerente de Água e Oceano do Pacto no Brasil. É também o único escritório da entidade a incluir o setor de saneamento na discussão. Isso se deve a dois motivos: as características do mercado brasileiro, em que as empresas têm um protagonismo maior em relação ao saneamento, e a importância do país no assunto águas, uma vez que o Brasil possui a maior reserva de água doce do mundo.
A plataforma de águas brasileira é composta de três metas: acesso à água potável, universalização do saneamento, e a recuperação de bacias hidrográficas. É essa última meta que, a partir do compromisso lançado em Nova York, se tornará global – e as empresas brasileiras que já assinaram os compromissos localmente estão elegíveis para entrar na iniciativa global.
Proteção de bacias hidrográficas
Globalmente, o compromisso prevê esforços para a preservação de 100 bacias hidrográficas ao redor do mundo, duas delas no Brasil. Também obriga as empresas a fazer investimentos em soluções climáticas baseadas na natureza, a implementar estratégias para escalar práticas de eficiência hídrica em suas cadeias, incrementar as estratégias de resiliência hídrica em suas operações, entre outros compromissos.
Saneamento é ESG na veia
André Salcedo, da Sabesp, destaca a importância da estratégia social, ambiental e de governança (ESG, na sigla em inglês). “Saneamento é ESG na veia”, se empolga o executivo. A parte ambiental é óbvia, manifesta no fato da Sabesp lidar com um recurso natural altamente impactado pelas mudanças climáticas e pela poluição.
A conferência da ONU trouxe preocupações adicionais nesse ponto: de 11 indicadores estabelecidos para acompanhar as metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6, que trata do acesso à água, cinco sequer contam com dados efetivos. E alguns precisam quadruplicar o desempenho se o mundo quiser resolver o problema.
Segundo a ONU, 26% da população mundial, o equivalente a 2 bilhões de pessoas, não contam com acesso seguro a água potável. Quando se trata de saneamento, a situação é ainda pior: mais de 3,6 bilhões de pessoas, quase metade dos humanos no planeta, carecem de tratamento adequado de seus excrementos, o que agrava outro problema urgente em se tratando de água, a poluição, um dos catalisadores da endemia de falta d’água.
Os dados conectam a questão ambiental com a social, que se manifesta de diversas formas na sociedade, desde a falta de dignidade de quem não conta com tratamento adequado para seus rejeitos, até questões sistêmicas envolvendo saúde pública.O presidente da Sabesp compara o saneamento a outras infraestruturas básicas, como saúde, segurança e educação, que também demandam grandes investimentos de longo prazo. E sugere ao poder vigente um olhar estruturado para a expansão das cidades, para se estabelecer um plano abrangente de segurança hídrica, que direcione os recursos financeiros disponíveis ao que realmente importa: o bem-estar da população.
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Créditos
Rodrigo Caetano
Editor ESG
Trabalhou como repórter e editor nas principais publicações de negócios do país. Venceu os prêmios Petrobras e Citi Journalistic Excellence. Atualmente, lidera a editoria ESG da Exame e apresenta o podcast ESG de A a Z.