Os 50 em 5 da Heineken
Em 2021, o Grupo Heineken fez o seguinte diagnóstico: a empresa só conseguiria se tornar a cervejaria número um do país se aumentasse também o número de consumidoras mulheres. Mas, para isso acontecer seria preciso começar o trabalho dentro de casa e aumentar a equidade de gênero dentro da própria companhia.
“Fizemos um compromisso público de aumentar o número de mulheres na liderança para 50% dentro de cinco anos. Isso porque entendemos que era preciso trabalhar o que a gente acredita de dentro para fora”, diz Jussara Calife, diretora de Trade Marketing e líder do grupo de equidade de gênero da cervejaria. Desde então, segundo dados obtidos com exclusividade por EXAME, a Heineken aumentou o número de mulheres em cargos de liderança acima de coordenação de 29% para 33%.
A mudança no modelo de distribuição da Heineken, que desde 2021 encerrou o contrato com a Coca-Cola e passou a ser responsável 100% pela entrega das bebidas que fabrica, ajudou a acelerar a agenda de equidade do grupo. Isso porque, para dar conta da nova operação, a Heineken cresceu em 20% o quadro de funcionários no último ano.
Somente para a área de vendas foram 2.400 pessoas contratadas. Destas, 24% das posições eram em nível de liderança. Além do comercial, a maioria das posições abertas eram para áreas de Distribuição e Logística, cujo histórico era de serem majoritariamente masculinas. “A indústria cervejeira como um todo, tradicionalmente, tem mais homens que mulheres. Porém, em algumas áreas, como as fábricas e operação, esse cenário é ainda mais desafiador. Então, resolvemos olhar para locais e departamentos que precisavam de um empurrão a mais e aproveitar a ocasião”, diz Carol Guido Steck, gerente sênior de Pessoas e Desenvolvimento Organizacional e Cultura da Heineken.
A Heineken, então, estruturou programas para contratar mulheres motoristas de caminhão e empilhadeiristas. Para isso, flexibilizou critérios como a necessidade de experiência na área ou habilitação para veículos pesados, o que afastaria potenciais candidatas do gênero feminino. Também permitiu que os vendedores utilizassem carro próprio ao invés de moto, como tradicionalmente era feito. “Mulheres habilitadas para moto são minoria no país, o que também limitava a atração delas para esses cargos”, diz Jussara.
De acordo com a executiva, além de atrair mais mulheres, o foco da cervejaria é formar as profissionais dentro da Heineken para que, no plano de sucessão, nunca faltem profissionais prontas para assumir posições de gestão no futuro. “Temos um cronograma do número de lideranças femininas que queremos alcançar por ano e, em 2022, os 33% que chegamos é exatamente o que esperávamos. A ideia não é só promover, mas fazer isso com sustentabilidade, garantindo que sempre existam mulheres preparadas para dar o próximo passo dentro da Heineken”, afirma.
Mulheres líderes crescem no Brasil
A Heineken é um exemplo de uma tendência, principalmente, entre as grandes empresas no Brasil: com o avanço da discussão sobre diversidade dentro das organizações, o número de brasileiras em cargos de liderança vem aumentando no país, ainda que a passos lentos.
Segundo levantamento da plataforma de empregos Vagas.com, obtido com exclusividade por EXAME, a representatividade feminina em posições gerenciais saltou de 45%, entre 1998 e 2018, para 50%, entre 2019 e 2022. Enquanto isso, a masculina apresentou uma queda de 55% para 50% no mesmo período.
Para chegar a esse número, o Vagas.com analisou os currículos cadastrados em sua plataforma entre 1998 e 2022. Os CVs foram divididos em dois grupos: perfis cadastrados entre 1998 e 2018, totalizando 14,6 milhões de documentos; e profissionais cadastrados entre 2019 e 2022, totalizando 6,1 milhões de documentos. Segundo Renan Batistela, especialista em Diversidade & Inclusão na Vagas.com, o intuito da quebra foi entender as diferenças entre duas gerações de cadastrados no site. Outro aspecto analisado pelo levantamento foi o nível de escolaridade. A presença feminina foi predominante em cursos de formação profissional, como é possível ver no gráfico abaixo:
O "degrau quebrado"
O avanço da representatividade em posições gerenciais é algo positivo porque a falta de mulheres em posições seniores, como CEOs e Vice-Presidentes, está diretamente relacionado ao desequilíbrio na ascensão feminina desde a base. Dados do relatório Women in the Workplace, realizado pela consultoria McKinsey, mostram que, para cada 100 homens que são promovidos de analistas para gerentes, apenas 87 mulheres recebem a mesma promoção.
Essa desigualdade, chamada pela Mckinsey de “degrau quebrado”, é responsável por deixar as mulheres “presas” em níveis mais baixos das organizações. “O maior obstáculo que as mulheres enfrentam no caminho para a liderança sênior é o primeiro passo para o cargo de gerente. Com mais homens em posições gerenciais há simplesmente menos mulheres para serem promovidas a diretoria”, escrevem os autores do relatório.
Para evitar que as profissionais fiquem estagnadas em níveis de entrada, o Grupo Pão de Açúcar, em que as mulheres já representam 52% do quadro, vem investindo em programas de capacitação para aumentar a ascensão feminina. Desde 2019, o varejista conta com um programa de desenvolvimento exclusivo para lideranças femininas. Com duração de seis meses, o programa já treinou 1.200 funcionárias do GPA sendo que, destas, 20% foram promovidas após a capacitação.
De acordo com Mirella Gomiero, Vice-Presidente de Recursos Humanos do GPA, os módulos são separados de acordo com o nível hierárquico das funcionários. “Queremos proporcionar, além da capacitação, momentos de conexão e networking. Ao ter colegas no mesmo nível, as profissionais podem compartilhar desafios em comum e trocar entre si, aumentando a sororidade”, diz a executiva.
Com previsão de abertura de 100 novas lojas em 2023, assim como a Heineken, o gigante varejista quer utilizar o processo de expansão para aumentar as mulheres em todas as posições dentro da companhia. “Nosso desejo é que 50% das novas posições sejam ocupadas por profissionais do gênero feminino. Aliado ao programa de treinamento temos um processo de mapeamento sucessório com a indicação formal de que sempre exista uma mulher indicada como potencial para cada posição. Tudo isso ajuda a aumentar a visibilidade das profissionais e contribui para o encarreiramento delas dentro da organização”, afirma Mirella. Com as práticas, desde 2020 o GPA aumentou de 36% para 38,2% o número de mulheres na liderança e a meta é alcançar 40% até 2025.
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Engajamento da liderança é fator chave
Um ponto em comum apontado pelas empresas ouvidas nesta reportagem foi a importância de engajar as lideranças na agenda de diversidade de gênero para colher resultados concretos. Na Pepsico, por exemplo, em que as mulheres representam 49% dos cargos de liderança, uma das ações principais foi o treinamento dos líderes. Em 2022, mais de 80% dos gestores da fabricante de alimentos participaram de iniciativas de capacitação sobre o tema.
“Nessa jornada, com certeza, duas ações se destacam: treinamentos e vivências para reduzir vieses inconscientes da liderança. Só assim conseguimos fazer com que a inclusão aconteça diariamente e os gestores diretos promovam um espaço seguro para os talentos se expressarem”, diz Thaisa Thomaz, diretora de talentos na PepsiCo Brasil.
Carol Guido Steck, da Heineken, conta que a participação ativa do CEO da cervejaria, Mauricio Giamellaro, foi essencial para quebrar a resistência dos funcionários homens da companhia. “Quando implementamos o programa, fazíamos lives em que os funcionários podiam fazer perguntas diretamente para o Maurício e, muitas vezes, ouvíamos coisas como: ‘mas, e agora? Os funcionários homens vão ser desligados? Ou não vamos crescer?’ E tínhamos de explicar que não era nada disso, que na verdade o que queríamos era que houvessem oportunidades para homens e mulheres crescerem”, diz.
Diversidade baseada em dados
Além do engajamento da liderança e metas representativas claras, segundo Amanda Aragão, sócia da consultoria de diversidade e inclusão Mais Diversidade, a estratégia de equidade de gênero — e de diversidade de modo geral — precisa ser apoiada por dados e métricas.
“Dados são essenciais porque você só trata uma questão se você tiver evidências de que, de fato, aquilo é um problema. Existem empresas que se você olhar a demografia no geral há um equilíbrio entre homens e mulheres, mas quando vamos para áreas ou cargos específicos fica claro que não há equidade. Isso você só consegue enxergar colocando uma lupa e olhando detalhamento como a força de trabalho é composta”, diz.
O uso de dados para apoiar as decisões relacionadas à diversidade é um dos pilares da estratégia do Mercado Livre. No gigante do e-commerce, as mulheres representam 39% dos cargos de liderança a partir de supervisão e 37% das posições em nível de diretoria. De acordo com Angela Faria, líder de Diversidade & Inclusão do Mercado Livre na América Latina, a empresa estabelece metas de acordo com a realidade das áreas.
“A ideia é sempre termos mais diversidade do que a média de mercado dentro das áreas porque acreditamos que isso é o que vai nos trazer um diferencial competitivo e inovação. Então, por exemplo, para a área de tecnologia, em que a representação feminina no mercado é 20%, temos 22% funcionárias na América Latina e 24% no Brasil", diz.
Por lá, os líderes são avaliados com pesquisas de clima para entender o quanto eles são ou não inclusivos. Segundo Angela, hoje, cerca de 92% da liderança do Meli é considerada inclusiva, número que aumentou 5 pontos percentuais entre 2021 e 2022. Aqueles que têm pontuação baixa recebem treinamentos e contam com um plano de ação para recuperar o desempenho, como uma espécie de Plano de Desenvolvimento Individual para diversidade.
“Para nós, mais do que treinamentos e mentorias, o que muda o jogo e avança a agenda de diversidade e inclusão são os dados. Porque isso é o que mais pesa nos processos de decisão. Não adianta treinar todos os líderes se um deles é quem mais precisa ser capacitado nessa questão. Precisamos olhar de forma granular para ser mais assertivos, seja em processos de treinamento, de promoção ou contratação”, afirma. A estratégia do Meli parece estar dando resultado e a empresa tem conseguido crescer também em posições de alta liderança. No último ano, o número de diretores cresceu 5% e o de vice-presidentes outros 4% na empresa de e-commerce.
Mas se o crescimento de líderes mulheres têm aumentado de modo geral, quando o assunto é alta liderança, casos como o Mercado Livre ainda são exceção. A mesma pesquisa do Vagas.com apontou que, apesar do equilíbrio registrado em cargos de gerência, as mulheres ainda preenchem menos vagas de direção. Entre 2019 e 2022, elas ocuparam 47% das posições contra 53% dos homens. A distância era maior de 1998 até 2018: 43% de participação feminina ante 57% masculina.
“Esses números são um exemplo claro do chamado teto de vidro, o conceito que trata das barreiras invisíveis que impedem as mulheres de atingir altas posições dentro das companhias. A raiz desse problema não está atrelado a um fator somente, mas a vários, como vieses inconscientes que muitas vezes fazem essas mulheres serem vistas como menos capazes e, consequentemente, pior avaliadas por superiores homens, por exemplo”, diz Amanda, da Mais Diversidade.
A especialista cita que as novas regras implementadas pela B3 e que passaram a exigir que as empresas listadas tenham, pelo menos, uma mulher e um representante de uma minoria em posições de conselho ou diretoria, devem ajudar a alterar o cenário também no alto escalão.
"As empresas listadas na bolsa são aquelas que deveriam ser pioneiras quando o assunto é governança, mesmo assim 60% delas não têm nenhuma mulher como diretor estatutário. Imagine, então, o cenário de pequenas e médias empresas, que não obedecem regras de transparência?", diz Amanda.
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Créditos
Luciana Lima
Repórter de Carreira
Formada pela PUC-SP, cobre mercado de trabalho e Recursos Humanos há sete anos. Foi editora-assistente da VOCÊ S/A e VOCÊ RH e repórter do Jornal Primeiramão. Na EXAME é Repórter de Carreira e apresentadora do podcast Entre Trampos.